Capítulo 9: "Adriana"




Maurício enfim conversou com o pai e pediu a ele se poderia voltar à pequena cidade Acemira, onde se mudaram no dia que vieram de São Paulo. Houve muita consternação por parte da família, mas estava à vista de todos que Maurício não fora feito para o trabalho da roça. Os tempos mudam – considerou Alécio – e vai que ele consegue mesmo algum serviço na Prefeitura, ou nalgum mercado ou armazém da cidade. Talvez num emprego desses, conseguisse um dinheiro extra, que pudesse lhe sustentar e também pagar algum curso, talvez até sobrasse alguns tostões para mandar aos pais de vez em quando... Mas é difícil a decisão de deixar um filho sair de casa. Todavia, Alécio conversou com as poucas amizades que fez na cidade – pelo pouco tempo que ali viveu – e arranjou um serviço experimental para Maurício num pequeno comércio à beira do lago, cuja vista era para o outro lado da margem, onde a poucos quilômetros ficavam as terras de Getúlio. Alugou um pequeno cômodo na cidade e para lá despachou o filho, sob a promessa que jamais passaria dois finais de semana sem cruzar o lago e aparecer na casa dos pais para todos juntos almoçarem em família, como sempre fizeram. Marina chorou muito, mas outra vez, deixou que a decisão de Alécio tivesse prioridade sobre as suas vontades.

Adriana já tinha visto Cecília algumas vezes.
Gostava de participar dos mutirões com seu pai e seus irmãos. E na grande reunião que se dá após o trabalho, reunidos todos no terreirão da Sede, Adriana e Cecília faziam suas refeições sentadas lado a lado sobre a mureta da varanda, vez por outra participando das conversas. E Adriana tinha por Cecília um certo afeto, um sentimento de simpatia e um desejo de se tornar sua amiga, apesar de ser apenas a filha de um agregado.
Muito próxima de Maurício, apesar de ser mais nova, tinha por ele um instinto maternal, protetor. Socorria-o sempre dos irmãos mais velhos e sempre foi cúmplice de seu irmão nas travessuras da infância e pré-adolescência. Andava tristonha porque a presença do irmão lhe fazia falta. E preocupava-se com a qualidade de vida que seu irmão levava, morando sozinho agora, lá em Acemira.
E assim, quando se realizou o último mutirão daquele ano, Maurício não compareceu. Cecília notando a falta no terreirão na hora das refeições, perguntou para Adriana:
__Teu irmão não veio, né? Está adoentado? Não o vejo nem mesmo cruzando a estrada junto com seus irmãos, cada vez que eles descem até o Arraial... Ele está bem?
__Está sim – disse Adriana – papai mandou-o de volta a Acemira, e arranjou-lhe um serviço no Bar do Josias, aquele bar que fica defronte o lago... O Maurício tem ideia fixa de voltar para São Paulo, coitado, mas o papai não quer, minha mãe morreria de tristeza também. Mas ele é determinado e sonhador. Disse que mesmo que não se mude para a Capital, ele vai lutar e vai estudar como puder, e vai melhorar de vida; e quem sabe um dia vai comprar uma casa na cidade. E quer levar todos nós para lá, se isso der certo. Mas apesar de morar sozinho, ele está bem e sempre aparece lá em casa! Papai o fez prometer que não passaria quinze dias sem vir aqui nos visitar. Acho que Domingo próximo ele vem.
__Vem a pé? – perguntou Cecília curiosa.
__Sim, vem a pé. Não tem outro jeito né? Poderia vir pela estrada que faz o caminho pelo lado da Serra... mas sem possuir um cavalo, não tem condições de dar toda essa volta. Então ele pega emprestado o barco do Josias e atravessa o lago, e infelizmente, só pode fazer isso a pé – respondeu Adriana.
Acemira só tinha um caminho por terra, pois os rios que formaram um lago à sua volta, circulando-a como um bonito colar, deixaram-na ilhada, sem saídas – exceto pela única estrada que percorria o alto do espigão e seguia para o lado do nascente do Sol, fazendo voltas e mais voltas até que num ponto distante se encontrava com aquela estrada que serpenteava descendo a Serra – a mesma estrada que os filhos de Getúlio tomavam, quando levavam a safra até a Cooperativa de Curuajubá – a dois dias de viagem (eram quatro dias para ir e voltar, conduzindo carros de bois). Quem quisesse vir de Acemira – onde Maurício estava, até as terras de Getúlio seguindo pela estrada, deveria fazer uma longa e cansativa viagem de aproximadamente quatro horas a cavalo, em marcha de trote rápido.
Mas atravessando o lago de barco, ele aportava do outro lado da margem a apenas meia légua do Arraial; esse era o caminho mais curto, pois do Arraial até a Sede eram mais uma légua de distância. E da Sede até o casebre de Alécio, percorria-se outra légua, completando assim uma caminhada de quinze quilômetros – quando se considera a légua como uma distância de seis quilômetros cada.
__Teu irmão me prometeu uma redação. Diz o Leandro que ele escreve muito bem, e eu fiquei curiosa... e aqui na roça a gente não tem muita coisa para ler... Mas certamente já se esqueceu do pedido, pois agora vive na cidade e, com certeza, leva uma vida mais animada do que a nossa, aqui nesse buraco de terra... – lamentou Cecília.
Então Adriana, lembrando-se daquele dia em que os dois conversavam ao lado do cactus perto da porteira, respondeu:
__Bom, realmente a vida deve ser mais agitada por lá, mas se ele prometeu, ele não esqueceu. Ele vai escrever. Pode até ser que não escreva por esses dias e até mesmo que nem lhe entregue pessoalmente, porque meu irmão parece um bicho-do-mato, é um rapaz muito tímido. Não fez amizade na Escola com os meninos e muito menos com as meninas! Morre de vergonha e evita lugares onde há concentração de pessoas, principalmente de mulheres. Meus outros irmãos já paqueram as meninas dos agregados nas festas de quermesse e no Arraial, quando vão de bando até lá. Mas o Maurício... Aquele, coitado, não sei quando vai arranjar uma namorada, pois nem consegue olhar para as meninas, quanto mais falar com elas! Então, por causa dessa timidez dele, se eu fosse você não esperaria tão cedo aquela redação que lhe prometeu. Mas esteja certa que um dia qualquer ele fará. E quando fizer, você vai ler. Maurício é firme no que promete.
Então Cecília fez o convite:
__Eu sei que o tio Narciso não tem muita amizade com seu pai, Adriana, mas não leve por mal minha família. Meu avô sempre considerou muito bem as pessoas que trabalharam com ele e respeita muito o seu pai. E eu queria que você de vez em quando aparecesse aqui na casa do vovô. Tia Amélia faz umas quitandas deliciosas e quase não vem ninguém da minha idade aqui na Sede. Nem mesmo as minhas primas têm aparecido por aqui ultimamente... Também estão arranjando seus namoricos com os meninos das outras fazendas, já namoram até mesmo o Luizinho e o Davi – filhos do Silvério, e se esquecem de vir na casa do avô. Eu passo a semana toda aqui, gosto muito de ajudar tia Amélia e ela é como se fosse minha própria mãe, mas não tenho ninguém da minha idade para conversar.
Então Adriana falou:
__Obrigado, Cecília. Vou falar com meus pais, e se permitirem, eu venho sim. Tenho muita simpatia por você, e olha, nunca levamos por mal a tua família – apesar da briga do Narciso com meu pai – saiba você que meu pai tem uma grande admiração pelo Sr. Getúlio, inclusive sempre diz lá em casa que é tratado por ele como se fosse um filho. Na verdade, meu pai enxerga o teu avô como se fosse um segundo pai para ele! Provavelmente ficarão muito contentes com seu convite, e se deixarem, eu apareço aqui na Sede de vez em quando sim.
Adriana e Cecília tornaram-se amigas, e passaram a frequentar juntas a casa da Sede e também o casebre do Ipê, onde morava a família de Maurício.
Cecília estava feliz: Nunca estivera antes em casa de agregados, e não tinha nenhuma ideia de como a vida era levada ali, nem o que as pessoas faziam para sobreviver com tão pouco.
Adriana não cabia em si de contentamento; toda vez que visitava Cecília na casa do avô, pedia-lhe que pusesse alguns discos para tocar no Gramofone. Apesar da precariedade das gravações daquela época, a menina adorava ouvir as músicas, imaginando como a tecnologia avançava, sendo capaz de guardar as vozes e melodias num disco tão fino!
Numa dessas visitas, Cecília revelou:
__Gostaria muito de aprender a música, Adriana, pois tenho vontade de criar minhas próprias canções. É algo estranho de se pensar, principalmente para uma moça que nasceu e vive na roça... Mas é o que sinto vontade de fazer! Porém, aqui na Fazenda é impossível... As pessoas por aqui sabem tocar apenas “de ouvido”, não conhecem as notas. Falei isso ao teu irmão, um dia, e ele me respondeu dizendo que só na cidade grande eu poderia aprender. Ele também me falou do desejo de se mudar para São Paulo... Você acha, Adriana, que um dia ele volta para lá?
Adriana notou que no fundo, a pergunta ocultava alguma preocupação, mas não conseguiu discernir o que era. Adriana então respondeu:
__Maurício é muito ligado à família, se bem que nos surpreendeu com esse pedido que fez ao papai! Sendo o mais acanhado dos irmãos, foi também o único que se arriscou sair de casa na tentativa de uma sorte melhor. Todavia, não acredito que ele tenha coragem de ir embora para longe de casa. Pois morando em Acemira, papai o fez prometer que sempre estaria aqui, a nos visitar. A não ser que haja um motivo forte demais, que o faça abandonar tudo e se mudar para longe! E com certeza, para ele é mais importante viver com pouco – porém viver perto da família – do que ir embora para ganhar a vida, mas vivendo longe de casa. Não acredito que ele vá embora daqui, não sem um grande motivo.
Cecília demonstrou no olhar um ar mais aliviado...
Adriana prosseguiu, sorrindo divertida:
__E quanto a música, Cecília, se um dia sentir a inspiração das musas, crie com ela uma canção! Coloque letra e melodia, sem se preocupar com as notas. E se não souber a melodia, crie apenas a letra, deixe a melodia comigo!
E assim, em contato com a família de Alécio, Cecília teve a oportunidade de aprender um pouco sobre a personalidade de Maurício – aquele menino tão calado, mas que ela considerava de uma inteligência brilhante, e que a fascinava cada vez mais. E a família de Maurício também aprendeu amar Cecília, essa menina de coração tão dócil, que os tratava por igual, mesmo vivendo uma vida tão diferente de toda aquela pobreza!