Maurício
enfim conversou com o pai e pediu a ele se poderia voltar à pequena
cidade Acemira, onde se mudaram no dia que vieram de São Paulo.
Houve muita consternação por parte da família, mas estava à vista
de todos que Maurício não fora feito para o trabalho da roça. Os
tempos mudam – considerou Alécio – e vai que ele consegue mesmo
algum serviço na Prefeitura, ou nalgum mercado ou armazém da
cidade. Talvez num emprego desses, conseguisse um dinheiro extra, que
pudesse lhe sustentar e também pagar algum curso, talvez até
sobrasse alguns tostões para mandar aos pais de vez em quando... Mas
é difícil a decisão de deixar um filho sair de casa. Todavia,
Alécio conversou com as poucas amizades que fez na cidade – pelo
pouco tempo que ali viveu – e arranjou um serviço experimental
para Maurício num pequeno comércio à beira do lago, cuja vista era
para o outro lado da margem, onde a poucos quilômetros ficavam as
terras de Getúlio. Alugou um pequeno cômodo na cidade e para lá
despachou o filho, sob a promessa que jamais passaria dois finais de
semana sem cruzar o lago e aparecer na casa dos pais para todos
juntos almoçarem em família, como sempre fizeram. Marina chorou
muito, mas outra vez, deixou que a decisão de Alécio tivesse
prioridade sobre as suas vontades.
Adriana já tinha visto Cecília algumas vezes.
Gostava de participar dos mutirões com seu pai e seus irmãos. E na
grande reunião que se dá após o trabalho, reunidos todos no
terreirão da Sede, Adriana e Cecília faziam suas refeições
sentadas lado a lado sobre a mureta da varanda, vez por outra
participando das conversas. E Adriana tinha por Cecília um certo
afeto, um sentimento de simpatia e um desejo de se tornar sua amiga,
apesar de ser apenas a filha de um agregado.
Muito próxima de Maurício, apesar de ser mais nova, tinha por ele
um instinto maternal, protetor. Socorria-o sempre dos irmãos mais
velhos e sempre foi cúmplice de seu irmão nas travessuras da
infância e pré-adolescência. Andava tristonha porque a presença
do irmão lhe fazia falta. E preocupava-se com a qualidade de vida
que seu irmão levava, morando sozinho agora, lá em Acemira.
E assim, quando se realizou o último mutirão daquele ano, Maurício
não compareceu. Cecília notando a falta no terreirão na hora das
refeições, perguntou para Adriana:
__Teu irmão não veio, né? Está adoentado? Não o vejo nem mesmo
cruzando a estrada junto com seus irmãos, cada vez que eles descem
até o Arraial... Ele está bem?
__Está sim – disse Adriana – papai mandou-o de volta a Acemira,
e arranjou-lhe um serviço no Bar do Josias, aquele bar que fica
defronte o lago... O Maurício tem ideia fixa de voltar para São
Paulo, coitado, mas o papai não quer, minha mãe morreria de
tristeza também. Mas ele é determinado e sonhador. Disse que mesmo
que não se mude para a Capital, ele vai lutar e vai estudar como
puder, e vai melhorar de vida; e quem sabe um dia vai comprar uma
casa na cidade. E quer levar todos nós para lá, se isso der certo.
Mas apesar de morar sozinho, ele está bem e sempre aparece lá em
casa! Papai o fez prometer que não passaria quinze dias sem vir aqui
nos visitar. Acho que Domingo próximo ele vem.
__Vem a pé? – perguntou Cecília curiosa.
__Sim, vem a pé. Não tem outro jeito né? Poderia vir pela estrada
que faz o caminho pelo lado da Serra... mas sem possuir um cavalo,
não tem condições de dar toda essa volta. Então ele pega
emprestado o barco do Josias e atravessa o lago, e infelizmente, só
pode fazer isso a pé – respondeu Adriana.
Acemira só tinha um caminho por terra, pois os rios que formaram um
lago à sua volta, circulando-a como um bonito colar, deixaram-na
ilhada, sem saídas – exceto pela única estrada que percorria o
alto do espigão e seguia para o lado do nascente do Sol, fazendo
voltas e mais voltas até que num ponto distante se encontrava com
aquela estrada que serpenteava descendo a Serra – a mesma estrada
que os filhos de Getúlio tomavam, quando levavam a safra até a
Cooperativa de Curuajubá – a dois dias de viagem (eram quatro dias
para ir e voltar, conduzindo carros de bois). Quem quisesse vir de
Acemira – onde Maurício estava, até as terras de Getúlio
seguindo pela estrada, deveria fazer uma longa e cansativa viagem de
aproximadamente quatro horas a cavalo, em marcha de trote rápido.
Mas atravessando o lago de barco, ele aportava do outro lado da
margem a apenas meia légua do Arraial; esse era o caminho mais
curto, pois do Arraial até a Sede eram mais uma légua de distância.
E da Sede até o casebre de Alécio, percorria-se outra légua,
completando assim uma caminhada de quinze quilômetros – quando se
considera a légua como uma distância de seis quilômetros cada.
__Teu irmão me prometeu uma redação. Diz o Leandro que ele escreve
muito bem, e eu fiquei curiosa... e aqui na roça a gente não tem
muita coisa para ler... Mas certamente já se esqueceu do pedido,
pois agora vive na cidade e, com certeza, leva uma vida mais animada
do que a nossa, aqui nesse buraco de terra... – lamentou Cecília.
Então Adriana, lembrando-se daquele dia em que os dois conversavam
ao lado do cactus perto da porteira, respondeu:
__Bom, realmente a vida deve ser mais agitada por lá, mas se ele
prometeu, ele não esqueceu. Ele vai escrever. Pode até ser que não
escreva por esses dias e até mesmo que nem lhe entregue
pessoalmente, porque meu irmão parece um bicho-do-mato, é um rapaz
muito tímido. Não fez amizade na Escola com os meninos e muito
menos com as meninas! Morre de vergonha e evita lugares onde há
concentração de pessoas, principalmente de mulheres. Meus outros
irmãos já paqueram as meninas dos agregados nas festas de quermesse
e no Arraial, quando vão de bando até lá. Mas o Maurício...
Aquele, coitado, não sei quando vai arranjar uma namorada, pois nem
consegue olhar para as meninas, quanto mais falar com elas! Então,
por causa dessa timidez dele, se eu fosse você não esperaria tão
cedo aquela redação que lhe prometeu. Mas esteja certa que um dia
qualquer ele fará. E quando fizer, você vai ler. Maurício é firme
no que promete.
Então Cecília fez o convite:
__Eu sei que o tio Narciso não tem muita amizade com seu pai,
Adriana, mas não leve por mal minha família. Meu avô sempre
considerou muito bem as pessoas que trabalharam com ele e respeita
muito o seu pai. E eu queria que você de vez em quando aparecesse
aqui na casa do vovô. Tia Amélia faz umas quitandas deliciosas e
quase não vem ninguém da minha idade aqui na Sede. Nem mesmo as
minhas primas têm aparecido por aqui ultimamente... Também estão
arranjando seus namoricos com os meninos das outras fazendas, já
namoram até mesmo o Luizinho e o Davi – filhos do Silvério, e se
esquecem de vir na casa do avô. Eu passo a semana toda aqui, gosto
muito de ajudar tia Amélia e ela é como se fosse minha própria
mãe, mas não tenho ninguém da minha idade para conversar.
Então Adriana falou:
__Obrigado, Cecília. Vou falar com meus pais, e se permitirem, eu
venho sim. Tenho muita simpatia por você, e olha, nunca levamos por
mal a tua família – apesar da briga do Narciso com meu pai –
saiba você que meu pai tem uma grande admiração pelo Sr. Getúlio,
inclusive sempre diz lá em casa que é tratado por ele como se fosse
um filho. Na verdade, meu pai enxerga o teu avô como se fosse um
segundo pai para ele! Provavelmente ficarão muito contentes com seu
convite, e se deixarem, eu apareço aqui na Sede de vez em quando
sim.
Adriana e Cecília tornaram-se amigas, e passaram a frequentar juntas
a casa da Sede e também o casebre do Ipê, onde morava a família de
Maurício.
Cecília estava feliz: Nunca estivera antes em casa de agregados, e
não tinha nenhuma ideia de como a vida era levada ali, nem o que as
pessoas faziam para sobreviver com tão pouco.
Adriana não cabia em si de contentamento; toda vez que visitava
Cecília na casa do avô, pedia-lhe que pusesse alguns discos para
tocar no Gramofone. Apesar da precariedade das gravações daquela
época, a menina adorava ouvir as músicas, imaginando como a
tecnologia avançava, sendo capaz de guardar as vozes e melodias num
disco tão fino!
Numa dessas visitas, Cecília revelou:
__Gostaria muito de aprender a música, Adriana, pois tenho vontade
de criar minhas próprias canções. É algo estranho de se pensar,
principalmente para uma moça que nasceu e vive na roça... Mas é o
que sinto vontade de fazer! Porém, aqui na Fazenda é impossível...
As pessoas por aqui sabem tocar apenas “de ouvido”, não conhecem
as notas. Falei isso ao teu irmão, um dia, e ele me respondeu
dizendo que só na cidade grande eu poderia aprender. Ele também me
falou do desejo de se mudar para São Paulo... Você acha, Adriana,
que um dia ele volta para lá?
Adriana notou que no fundo, a pergunta ocultava alguma preocupação,
mas não conseguiu discernir o que era. Adriana então respondeu:
__Maurício é muito ligado à família, se bem que nos surpreendeu
com esse pedido que fez ao papai! Sendo o mais acanhado dos irmãos,
foi também o único que se arriscou sair de casa na tentativa de uma
sorte melhor. Todavia, não acredito que ele tenha coragem de ir
embora para longe de casa. Pois morando em Acemira, papai o fez
prometer que sempre estaria aqui, a nos visitar. A não ser que haja
um motivo forte demais, que o faça abandonar tudo e se mudar para
longe! E com certeza, para ele é mais importante viver com pouco –
porém viver perto da família – do que ir embora para ganhar a
vida, mas vivendo longe de casa. Não acredito que ele vá embora
daqui, não sem um grande motivo.
Cecília demonstrou no olhar um ar mais aliviado...
Adriana prosseguiu, sorrindo divertida:
__E quanto a música, Cecília, se um dia sentir a inspiração das
musas, crie com ela uma canção! Coloque letra e melodia, sem se
preocupar com as notas. E se não souber a melodia, crie apenas a
letra, deixe a melodia comigo!
E assim, em contato com a família de Alécio, Cecília teve a
oportunidade de aprender um pouco sobre a personalidade de Maurício
– aquele menino tão calado, mas que ela considerava de uma
inteligência brilhante, e que a fascinava cada vez mais. E a família
de Maurício também aprendeu amar Cecília, essa menina de coração
tão dócil, que os tratava por igual, mesmo vivendo uma vida tão
diferente de toda aquela pobreza!