Capítulo 13: "Amélia"




Nos dias que se seguiram, Amélia piorou. Parece que se abateu sobre ela a mesma enfermidade da mãe. Apesar de ainda jovem e forte, Amélia se prostrou na cama e pouco se levantava de lá. Não havia gemidos, mas apenas uma frouxidão nos músculos e uma vertigem, numa dificuldade enorme para se levantar da cama, de onde saía apenas amparada pelo marido ou por Cecília.
Cecília agora se viu com a responsabilidade de gerenciar a casa, cuidando das refeições do avô e dos cuidados com Amélia.
Cássio, pegando o automóvel do sogro emprestado, levou Amélia até Curuajubá, conduzindo-a ao médico da cidade para uma consulta. Mas o Doutor não conseguiu identificar a doença. E Amélia não quis ficar ali, apesar das recomendações médicas, e pediu insistentemente ao marido que a trouxesse de volta à Fazenda. Fazer o que na cidade? O médico nem descobriu sua enfermidade... Melhor passar os dias na Fazenda, rodeada dos entes queridos.
A viagem de volta foi ainda mais fatigante para a jovem senhora cuja saúde se deteriorava a olhos vistos. Todos pensaram: “Será que Amélia vai ficar acamada, e vai sofrer com essa longa doença misteriosa, da qual ninguém descobre o que é, como sofreu a mãe?” Mas certamente Amélia não passaria tanto tempo assim, porque piorava a cada minuto.
Cássio se viu cada vez mais angustiado, pensando se fizera o correto, atendendo o pedido da esposa e trazendo-a de volta. Em Curuajubá, todavia, a esposa teria alguma assistência médica, caso ela piorasse. Mas, como socorrer a mulher ali, na Fazenda? O que fazer numa situação dessas?
Foi chamado às pressas o Vigário de Acemira que ainda levou dois dias para chegar. Era um Sábado à tarde quando o Vigário chegou, e vendo o estado de Amélia, tomou-lhe logo a confissão.
Não deu sequer tempo do Vigário voltar à cidade. Naquela mesma noite, Amélia febril delirou a madrugada toda. E o Vigário ficou para ajudar no que fosse preciso. Colocaram-lhe na cabeceira da cama uma vela, e o sacerdote sentando ao seu lado, rezou um terço e aplicou-lhe a extrema-unção. Cássio permanecia ao seu lado o tempo todo.
Amélia não resistiu. Do lado de fora, uma repentina ventania na escuridão da noite sacudia as árvores, perturbando os pássaros que nelas procuravam abrigo. Do seu quarto, onde Cecília retirara-se para descansar um pouco, a menina ouviu o revoar de pássaros – que perturbados pelo vendaval, mudaram-se para algum lugar mais longe, num grande alarido que se perdeu na distância.
Levantou-se e foi ao quarto da tia. Aproximou-se do corpo de Amélia e ajoelhando-se à cabeceira da cama, persignou-se diante do corpo já sem vida. Envolveu-a num abraço sem consolo e chorou a perda.

Domingo apesar de ensolarado, amanheceu pálido, sem cores, sem luz e sem perfume para aquela família. Getúlio, muito abalado mandou recado à vizinhança: Haveria Missa de corpo presente para Amélia às onze horas daquela manhã.
Compareceram todos agregados e os fazendeiros da região. Compareceu inclusive a família de Heitor – um grupo de pessoas que não nasceram ali, uma família que a pouco tempo tinha chegado das terras próximas à divisa com o Rio de Janeiro, para possuir a herança de seus avós, cujas terras eram vizinhas da Fazenda Águas Frias. Não coube tanta gente na Capela, então Getúlio providenciou bancos do lado de fora e em volta do Cruzeiro, e assim, naquela manhã, todos repartiram com ele aquela dor imensa, incurável.
Sim, uma dor incurável que puxou Getúlio bem devagar para dentro de sua própria cova também.
Daquele dia em diante, Getúlio nunca mais foi o mesmo. O olhar tornou-se perdido, distante e turvo, e o semblante triste. Emudeceu, respondendo a todos com monossílabos “sim” e “não” quase sempre.
Estava com seu corpo ali, mas permanecia ausente de espírito. Perdeu todo o interesse sobre a lavoura, o gado e quaisquer outras coisas. Nem mesmo à Capela subia agora, limitando-se a observar de longe as Missas, sentado na varanda que dá vistas para a Capela.
Cecília agora, mais do que nunca precisava se dedicar ao avô e às coisas domésticas da Sede.

E Maurício não pôde comparecer à casa dos pais naqueles próximos quinze dias, como tinha sido combinado. O patrão viajou e deixou-o encarregado dos negócios. Sobrecarregou-lhe o serviço e as responsabilidades, e com medo de, por qualquer motivo, atrasar-se na Segunda-feira, preferiu Maurício não visitar os pais como era de costume. Mandou somente um recado através das professoras que atravessaram de batelão, avisando que somente visitaria a casa de seus pais quando o patrão retornasse.
Ali na Escola Rural, chegando a professora e passando o recado adiante, qualquer menino se encarregaria de avisar seus pais. Era assim que funcionava o sistema de recados...
Foram quarenta e cinco dias de ausência, quarenta e cinco dias terríveis para aquelas pessoas do outro lado do lago, dos quais Maurício nem sequer suspeitou o que estava acontecendo. Havia um isolamento total entre aquelas terras do Arraial e o lado de cá, onde Acemira se assentava. Por conta do litígio de terras que havia entre Acemira e Curuajubá acerca do Arraial e das terras que o circundava, situação que se complicava ainda mais por causa da opinião dividida entre a população de Acemira e a opinião dos autóctones do outro lado do lago, alguns querendo pertencer à Acemira e outros não – essa terra – que por esse motivo era quase considerada como “terra de ninguém”, mantinha-se isolada e pouca notícia mandava de si para a cidade.
Ali em Acemira, ninguém soube que Amélia morreu – exceto aqueles mais chegados ao Vigário, que souberam de sua retirada num fim de semana até a Fazenda.
E então, ao cabo de um mês e meio, outra vez Maurício cruzou o lago sobre o barco, pondo-se a caminho em direção à casa dos pais – dessa vez porém, levava consigo a redação.

Maurício fora observador e muito criativo desde mesmo a pequena infância, na Capital Paulista. Gostava de observar e analisar por todos ângulos possíveis, qualquer situação e qualquer coisa que lhe viesse diante do olhar e lhe chamasse atenção, mesmo aos cinco anos de idade – o que lhe proporcionou lembranças nítidas daquele tempo. Lembranças da primeira infância as crianças geralmente esquecem, mas o rapaz mantinha as suas – embora poucas – bem preservadas, justamente por causa de seu dom peculiar de observação.
E a presença singular de um cactus velho e solitário ao lado da porteira da Sede, num lugar de terras secas e poeirentas, já havia lhe chamado a atenção. E resolveu usá-lo como tema da redação.
Eis o título de sua redação: “O Cactus”
Na redação Maurício descreveu minuciosamente todo mecanismo de sobrevivência de um cactus – em especial aquele tipo de cactus que estava plantado ao lado da porteira da Sede. Mas o rapaz não se deteve aí. Quis fazer sobre o assunto um bonito paralelo entre a resistência do cactus e o sentimento de amor. Mostrou a persistência do cactus que sobrevivia mesmo nas mais hostis situações, quando o Sol inclemente castiga a Terra aniquilando todas as formas de vida, e esta planta vai armazenando para si as mínimas gotículas de água e até mesmo o sereno, conseguindo sobreviver enquanto todas as outras plantas já morreram, aguardando pacientemente a chuva.
Nesse paralelo, Maurício citou o sentimento do Amor: comparava Maurício a persistência do cactus com a perenidade do amor verdadeiro, que mesmo longe, solitário, sem cuidados, sem notícias, ou sem esperanças, continua sobrevivendo, se valendo das gotículas de lembranças e das imaginações – de coisas acontecidas, ou não. E enquanto os demais sentimentos morrem – inclusive a esperança, o amor segue sobrevivendo. E como o cactus, o amor vive sempre a esperar a próxima chuva que vai cair – uma chuva de redenção que talvez jamais caia.
E foi uma redação falando sobre esses fatos, que Maurício levou dentro do embornal, lacrado num envelope.



Era de manhã e Alécio estava em pé ao lado do Ipê plantado junto à porteira, espetando uma caveira de boi no mourão da cerca, quando Narciso chegou.
__Senhor Alécio, precisamos conversar – Narciso foi logo dizendo, sem ao menos cumprimentá-lo com um “bom dia”.
__Mandarei um empregado hoje à tarde para recolher a vaca que meu pai deixou aqui! – prosseguiu dizendo Narciso.
Alécio parou o que estava fazendo, e medindo o homem que sequer desceu do cavalo, respondeu:
__Porque faz isso, senhor Narciso? Há tantas vacas no pasto, e até melhores do que esta!
Narciso insistiu:
__Se não mando buscar, sou obrigado a ceder uma vaca para cada agregado que há na Fazenda. É tratamento igual a todos, senhor Alécio!
__Mas foi teu pai que a mandou para cá. Devia deixar ele tomar a decisão! Mas o motivo não é igualdade no tratamento – respondeu Alécio, que sempre soubera da implicância de Narciso. E prosseguiu:
__Mas tudo bem; cada um de nós, no final recebe aquilo que merece. Se eu mereço isto, que seja assim. Mas não se preocupe; o teu pagamento também logo vem.
Narciso então respondeu:
__Papai está doente. Quem toma as decisões agora, sou eu.
Picou esporas na ilharga do cavalo, fustigando-o com o chicote e se foi, enquanto Alécio continuou ajeitando a caveira de boi no mourão da cerca.
Dizem que uma caveira de boi espetada próximo à entrada da casa – de preferência no mourão que sustenta a porteira – ajuda a espantar o mau agouro e protege a casa do mau-olhado, do quebrante, vento virado e de outras doenças causadas por ele. Alécio não acreditava nisso, mas como diziam os mais antigos: “É melhor prevenir, do que remediar”.
Momentos depois, ao chegar em casa, Narciso recebeu a notícia: Sua melhor vaca leiteira, que estava prenha, já quase nos dias de parir um bezerro, morreu durante a noite – ofendida por uma cobra cascavel. Imediatamente Narciso ordenou que um empregado fosse à casa de Alécio e trouxesse de lá a outra vaca.

Vindo de Acemira, ao passar defronte a porteira da Sede, Maurício percebeu que havia uma fita negra enrolada sobre as travessas horizontais. Portas e janelas da grande casa estavam fechadas e não viu nenhum sinal de pessoas ali. Tudo quieto, silencioso, a chaminé não fumegava, os carros de bois estacionados paralelamente embaixo das árvores frondosas que ficam além do terreirão, agora também vazio. Percebeu que algo muito triste ocorrera naqueles dias em que esteve ausente. Não se deteve ali, mas com passos rápidos avançou os próximos seis quilômetros até a casa de seus pais.
Lá chegando, notou o ar triste de todos, o que sua irmã veio logo explicando:
__É Maurício, tivemos uma tristeza esses dias: Amélia, filha do Getúlio adoeceu e faleceu. Foi tudo muito rápido, nem dá para acreditar. Foi enterrada no Cemitério do Arraial.
Maurício ouviu tudo aquilo espantado, incrédulo, e comentou:
__Pois é, ao passar diante da porteira da Sede percebi que algo estranho havia acontecido. Não há sinal de pessoas na casa e na porteira tem uma faixa de tecido preto enrolada. Pensei até que fosse o Getúlio, por causa da idade...
__Então, meu irmão. O velho está muito mal. Não quer se alimentar e ontem mesmo levaram-no para casa de um dos filhos. Se melhorar, ele volta à Sede. Cecília retornou à casa de Irene, sua mãe. E o Narciso aprontou outra das suas: Veio aqui em casa e tomou a vaca que Getúlio deu ao papai... Estamos sem leite agora.
Então Maurício abriu o embornal e lá de dentro tirou o envelope fechado contendo a redação. Mostrou-o a Adriana e disse assim:
__Aqui está a redação que prometi a Cecília. Não tinha eu ideia dessa infelicidade e escrevi no papel coisas alegres. Mas agora, nessa situação, creio que Cecília não achará graça em mais nada daquilo que escrevi aí. Todavia, não sei quando a vejo outra vez, então deixo com você o envelope, e se puder entregar, faça-me esse favor. Só não entregue a ninguém mais, somente a ela.
__Sim, Maurício. Farei o possível para entregar. Vai ser mais difícil agora, pois na casa do avô eu sempre ia, mas agora está fechada. E na casa da mãe dela eu nunca fui. Além disso, papai qualquer hora vai arranjar serviço em outro lugar e quando isso acontecer, iremos todos embora. Você não precisará mais vir aqui para nos ver. Nos encontraremos em família em outro lugar... Todavia, entregarei à Cecília, assim que puder. – respondeu Adriana.
E naquele mesmo dia voltou Maurício para Acemira, triste pelos últimos acontecimentos daqueles dias, pela morte de Amélia e pela infelicidade que se abateu sobre aquela família, pesaroso pelo fato de seus pais terem de se mudar dali e decepcionado por não ter visto Cecília.
Realmente, o coração de Maurício começou a pender para esses lados da terra, cujo lugar e pessoas agora ocupavam boa parte de sua atenção e de seus pensamentos. Já enxergava o lugar com outros olhos e seu desejo de mudar-se para a Capital Paulista pouco a pouco foi perdendo a urgência dentro de si. Maurício já não tinha mais tantos planos de ir embora, apesar de suspeitar que ali naquelas terras não havia para ele nenhuma chance de conquistar aquilo que seu coração começava a pedir... Afinal, Maurício era um simples filho de agregados. Ou pior, era o filho de um futuro ex-agregado... O que valeria ele, diante dos olhos de Cecília?
Seu pai levava-o na garupa até a margem do lago, onde estava o barco. O trajeto foi percorrido em total silêncio; Alécio estava preocupado e Maurício sabia disso.
Quando o velho se calava assim, é porque alguma nuvem pesada nublava seus pensamentos. Era um homem de fibra, sempre otimista, mas quando as coisas pesavam demais, o velho se calava. Havia uma família para cuidar. Embora os filhos já estivessem todos criados, Alécio ainda sentia-se responsável pelo destino deles, pois ao mudar-se para o interior de Minas, sua vida regrediu muito. Sentia-se culpado de tudo isso, sabendo que por causa de sua decisão, hoje seus filhos não teriam mais a chance de serem doutores, mas apenas simples camponeses, filhos de um agregado prestes a ser expulso da terra. Pois, ainda que fossem pobres, um dia eles moraram na cidade grande, e apesar das chances mínimas de dar aos filhos um bom estudo, sempre haveria a possibilidade de algum deles se destacar nas escolas públicas paulistas e conseguir algum diploma que valesse a pena... Eram novos tempos; um gaúcho de São Borja, também chamado “Getúlio”, chegou à Presidência do País. E estava sendo bom para a Educação, que se modernizou bastante na última década, trazendo à população mais pobre e carente uma chance de estudar... Mas ali, naquele lugar, ou na pequenina Acemira, ir além do Estudo Primário se tornou algo definitivamente impossível.
Os filhos nunca o culpavam por isso, é claro. Sempre adoraram o pai e a mãe que tinham, e apesar das dificuldades que passavam, com certeza preferiam a vida calma do interior à vida estressante e perigosa da cidade grande. Mas assim mesmo, Alécio sentia o peso daquela decisão que tomou em tempos atrás, quando colocou toda família dentro de um ônibus e se mudaram para uma cidade que não os conhecia e que não os desejava ali, pois “forasteiros” não eram vistos com bons olhos na cidade de Acemira e nem nas terras circunvizinhas.
Mas isto era uma situação normal! Naqueles tempos remotos e atrasados, as pessoas do interior se protegiam de novos costumes, de novas culturas, até mesmo de novas religiões. Eram pessoas de sítios, pessoas rurais. Gente simples e pacata, sem vontade nenhuma de mudar seu modo de viver. O progresso chegava ali aos arrastos, e até mesmo a tecnologia era vista com desconfiança.
Atitudes como a de Getúlio, por exemplo, que mandou trazer um Gramofone do Rio de Janeiro, sempre deixavam os vizinhos alarmados, assombrados. Outro exemplo: quando houve a festa na Igreja Matriz de Acemira, com a intenção de angariar recursos e trazer um Cravo Alemão para o Coral, teve inclusive a resistência férrea dos chefes de família mais tradicionais da cidade! “Aquilo era muita novidade. Talvez fosse até coisa do Diabo” alegavam os mais radicais.
Eram rudes camponeses, enraizados na sua cultura mais tradicional, e tinham medo das novidades. Por causa disso, tinham medo do contato com as “pessoas de fora” e tinham medo de qualquer mudança na rotina da vida que esses forasteiros – muitas vezes com ideias estranhas, tão diferente das suas – por acaso pudessem trazer.
Eram os costumes dos camponeses daquele lugar, naquela época... Quase uma xenofobia... Mas não era só em Acemira: era assim em todos os lugares.
Era a vida.
E Maurício despedindo-se do pai, entrou no barco.