Nos
dias que se seguiram, Amélia piorou. Parece que se abateu sobre ela
a mesma enfermidade da mãe. Apesar de ainda jovem e forte, Amélia
se prostrou na cama e pouco se levantava de lá. Não havia gemidos,
mas apenas uma frouxidão nos músculos e uma vertigem, numa
dificuldade enorme para se levantar da cama, de onde saía apenas
amparada pelo marido ou por Cecília.
Cecília agora se viu com a responsabilidade de gerenciar a casa,
cuidando das refeições do avô e dos cuidados com Amélia.
Cássio, pegando o automóvel do sogro emprestado, levou Amélia até
Curuajubá, conduzindo-a ao médico da cidade para uma consulta. Mas
o Doutor não conseguiu identificar a doença. E Amélia não quis
ficar ali, apesar das recomendações médicas, e pediu
insistentemente ao marido que a trouxesse de volta à Fazenda. Fazer
o que na cidade? O médico nem descobriu sua enfermidade... Melhor
passar os dias na Fazenda, rodeada dos entes queridos.
A viagem de volta foi ainda mais fatigante para a jovem senhora cuja
saúde se deteriorava a olhos vistos. Todos pensaram: “Será que
Amélia vai ficar acamada, e vai sofrer com essa longa doença
misteriosa, da qual ninguém descobre o que é, como sofreu a mãe?”
Mas certamente Amélia não passaria tanto tempo assim, porque
piorava a cada minuto.
Cássio se viu cada vez mais angustiado, pensando se fizera o
correto, atendendo o pedido da esposa e trazendo-a de volta. Em
Curuajubá, todavia, a esposa teria alguma assistência médica, caso
ela piorasse. Mas, como socorrer a mulher ali, na Fazenda? O que
fazer numa situação dessas?
Foi chamado às pressas o Vigário de Acemira que ainda levou dois
dias para chegar. Era um Sábado à tarde quando o Vigário chegou, e
vendo o estado de Amélia, tomou-lhe logo a confissão.
Não deu sequer tempo do Vigário voltar à cidade. Naquela mesma
noite, Amélia febril delirou a madrugada toda. E o Vigário ficou
para ajudar no que fosse preciso. Colocaram-lhe na cabeceira da cama
uma vela, e o sacerdote sentando ao seu lado, rezou um terço e
aplicou-lhe a extrema-unção. Cássio permanecia ao seu lado o tempo
todo.
Amélia não resistiu. Do lado de fora, uma repentina ventania na
escuridão da noite sacudia as árvores, perturbando os pássaros que
nelas procuravam abrigo. Do seu quarto, onde Cecília retirara-se
para descansar um pouco, a menina ouviu o revoar de pássaros – que
perturbados pelo vendaval, mudaram-se para algum lugar mais longe,
num grande alarido que se perdeu na distância.
Levantou-se e foi ao quarto da tia. Aproximou-se do corpo de Amélia
e ajoelhando-se à cabeceira da cama, persignou-se diante do corpo já
sem vida. Envolveu-a num abraço sem consolo e chorou a perda.
Domingo apesar de ensolarado, amanheceu pálido, sem cores, sem luz e
sem perfume para aquela família. Getúlio, muito abalado mandou
recado à vizinhança: Haveria Missa de corpo presente para Amélia
às onze horas daquela manhã.
Compareceram todos agregados e os fazendeiros da região. Compareceu
inclusive a família de Heitor – um grupo de pessoas que não
nasceram ali, uma família que a pouco tempo tinha chegado das terras
próximas à divisa com o Rio de Janeiro, para possuir a herança de
seus avós, cujas terras eram vizinhas da Fazenda Águas Frias. Não
coube tanta gente na Capela, então Getúlio providenciou bancos do
lado de fora e em volta do Cruzeiro, e assim, naquela manhã, todos
repartiram com ele aquela dor imensa, incurável.
Sim, uma dor incurável que puxou Getúlio bem devagar para dentro de
sua própria cova também.
Daquele dia em diante, Getúlio nunca mais foi o mesmo. O olhar
tornou-se perdido, distante e turvo, e o semblante triste. Emudeceu,
respondendo a todos com monossílabos “sim” e “não” quase
sempre.
Estava com seu corpo ali, mas permanecia ausente de espírito. Perdeu
todo o interesse sobre a lavoura, o gado e quaisquer outras coisas.
Nem mesmo à Capela subia agora, limitando-se a observar de longe as
Missas, sentado na varanda que dá vistas para a Capela.
Cecília agora, mais do que nunca precisava se dedicar ao avô e às
coisas domésticas da Sede.
E Maurício não pôde comparecer à casa dos pais naqueles próximos
quinze dias, como tinha sido combinado. O patrão viajou e deixou-o
encarregado dos negócios. Sobrecarregou-lhe o serviço e as
responsabilidades, e com medo de, por qualquer motivo, atrasar-se na
Segunda-feira, preferiu Maurício não visitar os pais como era de
costume. Mandou somente um recado através das professoras que
atravessaram de batelão, avisando que somente visitaria a casa de
seus pais quando o patrão retornasse.
Ali na Escola Rural, chegando a professora e passando o recado
adiante, qualquer menino se encarregaria de avisar seus pais. Era
assim que funcionava o sistema de recados...
Foram quarenta e cinco dias de ausência, quarenta e cinco dias
terríveis para aquelas pessoas do outro lado do lago, dos quais
Maurício nem sequer suspeitou o que estava acontecendo. Havia um
isolamento total entre aquelas terras do Arraial e o lado de cá,
onde Acemira se assentava. Por conta do litígio de terras que havia
entre Acemira e Curuajubá acerca do Arraial e das terras que o
circundava, situação que se complicava ainda mais por causa da
opinião dividida entre a população de Acemira e a opinião dos
autóctones do outro lado do lago, alguns querendo pertencer à
Acemira e outros não – essa terra – que por esse motivo era
quase considerada como “terra de ninguém”, mantinha-se isolada e
pouca notícia mandava de si para a cidade.
Ali em Acemira, ninguém soube que Amélia morreu – exceto aqueles
mais chegados ao Vigário, que souberam de sua retirada num fim de
semana até a Fazenda.
E então, ao cabo de um mês e meio, outra vez Maurício cruzou o
lago sobre o barco, pondo-se a caminho em direção à casa dos pais
– dessa vez porém, levava consigo a redação.
Maurício fora observador e muito criativo desde mesmo a pequena
infância, na Capital Paulista. Gostava de observar e analisar por
todos ângulos possíveis, qualquer situação e qualquer coisa que
lhe viesse diante do olhar e lhe chamasse atenção, mesmo aos cinco
anos de idade – o que lhe proporcionou lembranças nítidas daquele
tempo. Lembranças da primeira infância as crianças geralmente
esquecem, mas o rapaz mantinha as suas – embora poucas – bem
preservadas, justamente por causa de seu dom peculiar de observação.
E a presença singular de um cactus velho e solitário ao lado da
porteira da Sede, num lugar de terras secas e poeirentas, já havia
lhe chamado a atenção. E resolveu usá-lo como tema da redação.
Eis o título de sua redação: “O Cactus”
Na redação Maurício descreveu minuciosamente todo mecanismo de
sobrevivência de um cactus – em especial aquele tipo de cactus que
estava plantado ao lado da porteira da Sede. Mas o rapaz não se
deteve aí. Quis fazer sobre o assunto um bonito paralelo entre a
resistência do cactus e o sentimento de amor. Mostrou a persistência
do cactus que sobrevivia mesmo nas mais hostis situações, quando o
Sol inclemente castiga a Terra aniquilando todas as formas de vida, e
esta planta vai armazenando para si as mínimas gotículas de água e
até mesmo o sereno, conseguindo sobreviver enquanto todas as outras
plantas já morreram, aguardando pacientemente a chuva.
Nesse paralelo, Maurício citou o sentimento do Amor: comparava
Maurício a persistência do cactus com a perenidade do amor
verdadeiro, que mesmo longe, solitário, sem cuidados, sem notícias,
ou sem esperanças, continua sobrevivendo, se valendo das gotículas
de lembranças e das imaginações – de coisas acontecidas, ou não.
E enquanto os demais sentimentos morrem – inclusive a esperança, o
amor segue sobrevivendo. E como o cactus, o amor vive sempre a
esperar a próxima chuva que vai cair – uma chuva de redenção que
talvez jamais caia.
E foi uma redação falando sobre esses fatos, que Maurício levou
dentro do embornal, lacrado num envelope.
Era de manhã e Alécio estava em pé ao lado do Ipê plantado junto
à porteira, espetando uma caveira de boi no mourão da cerca, quando
Narciso chegou.
__Senhor Alécio, precisamos conversar – Narciso foi logo dizendo,
sem ao menos cumprimentá-lo com um “bom dia”.
__Mandarei um empregado hoje à tarde para recolher a vaca que meu
pai deixou aqui! – prosseguiu dizendo Narciso.
Alécio parou o que estava fazendo, e medindo o homem que sequer
desceu do cavalo, respondeu:
__Porque faz isso, senhor Narciso? Há tantas vacas no pasto, e até
melhores do que esta!
Narciso insistiu:
__Se não mando buscar, sou obrigado a ceder uma vaca para cada
agregado que há na Fazenda. É tratamento igual a todos, senhor
Alécio!
__Mas foi teu pai que a mandou para cá. Devia deixar ele tomar a
decisão! Mas o motivo não é igualdade no tratamento – respondeu
Alécio, que sempre soubera da implicância de Narciso. E prosseguiu:
__Mas tudo bem; cada um de nós, no final recebe aquilo que merece.
Se eu mereço isto, que seja assim. Mas não se preocupe; o teu
pagamento também logo vem.
Narciso então respondeu:
__Papai está doente. Quem toma as decisões agora, sou eu.
Picou esporas na ilharga do cavalo, fustigando-o com o chicote e se
foi, enquanto Alécio continuou ajeitando a caveira de boi no mourão
da cerca.
Dizem que uma caveira de boi espetada próximo à entrada da casa –
de preferência no mourão que sustenta a porteira – ajuda a
espantar o mau agouro e protege a casa do mau-olhado, do quebrante,
vento virado e de outras doenças causadas por ele. Alécio não
acreditava nisso, mas como diziam os mais antigos: “É melhor
prevenir, do que remediar”.
Momentos depois, ao chegar em casa, Narciso recebeu a notícia: Sua
melhor vaca leiteira, que estava prenha, já quase nos dias de parir
um bezerro, morreu durante a noite – ofendida por uma cobra
cascavel. Imediatamente Narciso ordenou que um empregado fosse à
casa de Alécio e trouxesse de lá a outra vaca.
Vindo de Acemira, ao passar defronte a porteira da Sede, Maurício
percebeu que havia uma fita negra enrolada sobre as travessas
horizontais. Portas e janelas da grande casa estavam fechadas e não
viu nenhum sinal de pessoas ali. Tudo quieto, silencioso, a chaminé
não fumegava, os carros de bois estacionados paralelamente embaixo
das árvores frondosas que ficam além do terreirão, agora também
vazio. Percebeu que algo muito triste ocorrera naqueles dias em que
esteve ausente. Não se deteve ali, mas com passos rápidos avançou
os próximos seis quilômetros até a casa de seus pais.
Lá chegando, notou o ar triste de todos, o que sua irmã veio logo
explicando:
__É Maurício, tivemos uma tristeza esses dias: Amélia, filha do
Getúlio adoeceu e faleceu. Foi tudo muito rápido, nem dá para
acreditar. Foi enterrada no Cemitério do Arraial.
Maurício ouviu tudo aquilo espantado, incrédulo, e comentou:
__Pois é, ao passar diante da porteira da Sede percebi que algo
estranho havia acontecido. Não há sinal de pessoas na casa e na
porteira tem uma faixa de tecido preto enrolada. Pensei até que
fosse o Getúlio, por causa da idade...
__Então, meu irmão. O velho está muito mal. Não quer se alimentar
e ontem mesmo levaram-no para casa de um dos filhos. Se melhorar, ele
volta à Sede. Cecília retornou à casa de Irene, sua mãe. E o
Narciso aprontou outra das suas: Veio aqui em casa e tomou a vaca que
Getúlio deu ao papai... Estamos sem leite agora.
Então Maurício abriu o embornal e lá de dentro tirou o envelope
fechado contendo a redação. Mostrou-o a Adriana e disse assim:
__Aqui está a redação que prometi a Cecília. Não tinha eu ideia
dessa infelicidade e escrevi no papel coisas alegres. Mas agora,
nessa situação, creio que Cecília não achará graça em mais nada
daquilo que escrevi aí. Todavia, não sei quando a vejo outra vez,
então deixo com você o envelope, e se puder entregar, faça-me esse
favor. Só não entregue a ninguém mais, somente a ela.
__Sim, Maurício. Farei o possível para entregar. Vai ser mais
difícil agora, pois na casa do avô eu sempre ia, mas agora está
fechada. E na casa da mãe dela eu nunca fui. Além disso, papai
qualquer hora vai arranjar serviço em outro lugar e quando isso
acontecer, iremos todos embora. Você não precisará mais vir aqui
para nos ver. Nos encontraremos em família em outro lugar...
Todavia, entregarei à Cecília, assim que puder. – respondeu
Adriana.
E naquele mesmo dia voltou Maurício para Acemira, triste pelos
últimos acontecimentos daqueles dias, pela morte de Amélia e pela
infelicidade que se abateu sobre aquela família, pesaroso pelo fato
de seus pais terem de se mudar dali e decepcionado por não ter visto
Cecília.
Realmente, o coração de Maurício começou a pender para esses
lados da terra, cujo lugar e pessoas agora ocupavam boa parte de sua
atenção e de seus pensamentos. Já enxergava o lugar com outros
olhos e seu desejo de mudar-se para a Capital Paulista pouco a pouco
foi perdendo a urgência dentro de si. Maurício já não tinha mais
tantos planos de ir embora, apesar de suspeitar que ali naquelas
terras não havia para ele nenhuma chance de conquistar aquilo que
seu coração começava a pedir... Afinal, Maurício era um simples
filho de agregados. Ou pior, era o filho de um futuro ex-agregado...
O que valeria ele, diante dos olhos de Cecília?
Seu pai levava-o na garupa até a margem do lago, onde estava o
barco. O trajeto foi percorrido em total silêncio; Alécio estava
preocupado e Maurício sabia disso.
Quando o velho se calava assim, é porque alguma nuvem pesada nublava
seus pensamentos. Era um homem de fibra, sempre otimista, mas quando
as coisas pesavam demais, o velho se calava. Havia uma família para
cuidar. Embora os filhos já estivessem todos criados, Alécio ainda
sentia-se responsável pelo destino deles, pois ao mudar-se para o
interior de Minas, sua vida regrediu muito. Sentia-se culpado de tudo
isso, sabendo que por causa de sua decisão, hoje seus filhos não
teriam mais a chance de serem doutores, mas apenas simples
camponeses, filhos de um agregado prestes a ser expulso da terra.
Pois, ainda que fossem pobres, um dia eles moraram na cidade grande,
e apesar das chances mínimas de dar aos filhos um bom estudo, sempre
haveria a possibilidade de algum deles se destacar nas escolas
públicas paulistas e conseguir algum diploma que valesse a pena...
Eram novos tempos; um gaúcho de São Borja, também chamado
“Getúlio”, chegou à Presidência do País. E estava sendo bom
para a Educação, que se modernizou bastante na última década,
trazendo à população mais pobre e carente uma chance de estudar...
Mas ali, naquele lugar, ou na pequenina Acemira, ir além do Estudo
Primário se tornou algo definitivamente impossível.
Os filhos nunca o culpavam por isso, é claro. Sempre adoraram o pai
e a mãe que tinham, e apesar das dificuldades que passavam, com
certeza preferiam a vida calma do interior à vida estressante e
perigosa da cidade grande. Mas assim mesmo, Alécio sentia o peso
daquela decisão que tomou em tempos atrás, quando colocou toda
família dentro de um ônibus e se mudaram para uma cidade que não
os conhecia e que não os desejava ali, pois “forasteiros” não
eram vistos com bons olhos na cidade de Acemira e nem nas terras
circunvizinhas.
Mas isto era uma situação normal! Naqueles tempos remotos e
atrasados, as pessoas do interior se protegiam de novos costumes, de
novas culturas, até mesmo de novas religiões. Eram pessoas de
sítios, pessoas rurais. Gente simples e pacata, sem vontade nenhuma
de mudar seu modo de viver. O progresso chegava ali aos arrastos, e
até mesmo a tecnologia era vista com desconfiança.
Atitudes como a de Getúlio, por exemplo, que mandou trazer um
Gramofone do Rio de Janeiro, sempre deixavam os vizinhos alarmados,
assombrados. Outro exemplo: quando houve a festa na Igreja Matriz de
Acemira, com a intenção de angariar recursos e trazer um Cravo
Alemão para o Coral, teve inclusive a resistência férrea dos
chefes de família mais tradicionais da cidade! “Aquilo era muita
novidade. Talvez fosse até coisa do Diabo” alegavam os mais
radicais.
Eram rudes camponeses, enraizados na sua cultura mais tradicional, e
tinham medo das novidades. Por causa disso, tinham medo do contato
com as “pessoas de fora” e tinham medo de qualquer mudança na
rotina da vida que esses forasteiros – muitas vezes com ideias
estranhas, tão diferente das suas – por acaso pudessem trazer.
Eram os costumes dos camponeses daquele lugar, naquela época...
Quase uma xenofobia... Mas não era só em Acemira: era assim em
todos os lugares.
Era a vida.
E Maurício despedindo-se do pai, entrou no barco.