MANUARA

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Informações e Advertências

Texto: Marcelo Lagoa de Almeida
Capa: Marcelo Lagoa de Almeida
Ilustrações do miolo: Marcelo Lagoa de Almeida

Local de criação da Obra: Mundo Novo, MS – Brasil
Ano da conclusão da Obra: 2017
Título da Obra: MANUARA

O texto foi digitado no Editor de Textos Libreoffice.
As ilustrações foram feitas em papel-cartão reciclado, 15cm. x 10,5cm. e papel sulfite A5. Foi usado lápis grafite, tinta nanquim e canetas.
Para efeitos especiais, foi usado o Editor de Imagens GIMP.
Todo trabalho em computador – seja edição de texto, escaneamentos ou manipulação de imagens, foram realizados sob a plataforma Linux.

Esta edição, publicada no Blogger da Google, destina-se apenas à divulgação da Obra, com o objetivo de que possa ser lida e apreciada pelo leitor antes de adquirir um volume físico, impresso em papel na Editora e/ou Gráfica contratada pelo Autor.

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A não observação dessas condições poderá ser punida civil e criminalmente através das Leis que amparam os direitos de propriedade do Autor.

Apresentação


MANUARA

Porque a Memória te leva muito além das Lembranças...

 Marcelo Lagoa de Almeida

2017


“A história é uma obra de ficção, nascida exclusivamente da imaginação do escritor. Portanto, quaisquer semelhanças com episódios da vida real possivelmente são meras coincidências – se é que coincidências existem!”

Dedicatórias


Dedico este livro aos meus avós, Adolfo e Maria.
  • Minha avó, que nas nossas frequentes correspondências me incentivou a escrever textos maiores do que uma simples página de caderno.
  • Meu avô, que nessas correspondências me incentivou a ilustrar com desenhos tudo aquilo que eu escrevia nos textos.
Tais correspondências foram as cartas, que tantas vezes, através dos Correios, circularam os caminhos que ligam o interior de Minas Gerais à Capital de São Paulo, trazendo notícias de meus avós e levando as nossas até eles.





Dedico também à memória
de tudo aquilo que não dá pra esquecer.

Sobre o Título

O AMOR TEM MEMÓRIA
(Segundo Título)



A princípio, o título do livro seria: “O Amor tem Memória”.
Mas resolvi dar ao livro um nome singular – aquele estampado na capa: “Manuara”.
Dei-lhe tal nome por ser palavra de origem indígena, um povo cuja influência foi muito grande na cultura linguística brasileira, contribuindo – senão em mão de obra tanto quanto os negros africanos – pelo menos na língua rica, de onde nos emprestou diversos nomes e expressões.

A história do livro se passa no interior de Minas, onde inclusive muitas cidades, localidades, rios e montanhas levam nomes indígenas, assim como muitos de seus habitantes também.
Eis aqui o que se ouve por lá: Aguapé, Araúna, Arapuã, Arapuca, Araxá, Canoa, Capim, Carijó, Itajubá, Itaúna, Mutirão (corruptela da palavra “Motirõ” que significa reunião de pessoas da mesma tribo para construir algo em comum), Piunhi (corruptela da palavra “Pium-hy”, que significa rio de pium – ou “rio de mosquitos borrachudos”, embora alguns prefiram “rio de peixes”), Morro do “Chapéu” (corruptela da palavra “Chapé”, que significa: lugar alto de onde se vê os caminhos, embora muitos pensam que o Morro leva tal nome por lembrar o formato de um chapéu), Sagui, e muitas outras palavras – mas citei essas apenas para deixar alguns exemplos de uma língua indígena, primitiva e extensa, cujo dicionário vai de “A” a “Y” – e que nos emprestou tantas palavras!

Por isso, achei que MANUARA ficaria bem como título do livro, apesar de não estar incluída em nosso vocabulário português, e também não ser uma palavra de uso comum, daquelas que emprestamos da língua indígena.
Todavia decidi usar tal palavra porque Manuara em língua indígena significa Lembranças, Saudades….
E lembranças, saudades, às vezes é o que resta de uma vida.

Índice



1. Girando a Taramela

PRIMEIRA PARTE

2. A área rural
3. As terras de Getúlio
4. Cecília
5. A família de Getúlio
6. Maurício
7. A Missa na Capela
8. Ananias
9. A implicância
10. Adriana
11. Em Acemira
12. O caminho que vem do Lago
13. A redação
14. Amélia
15. Heitor
16. A desilusão
17. Aproximação
18. A confissão
19. Felicidade
20. O começo
21. A tramoia
22. E o fim
23. Testemunha
24. Distanciamento
25. Narciso

SEGUNDA PARTE

26. Jequitibá da Mata
27. O Tempo
28. Costuras do Destino
29. A revelação
30. Reencontro
31. Catatonia
32. Desencontro
33. Amigas
34. O ciclo
35. Final
36. Post-Scriptum

Prólogo: "Girando a taramela"



Olá.
A história que você vai ler aconteceu há muitos anos – nas primeiras décadas do século passado, no interior do Estado de Minas Gerais.
Na verdade é uma ficção, mas com fatos e acontecimentos tão comuns na vida real, que poderiam, com certeza, ter ocorrido com qualquer um de nós – se é que algum dia já não ocorreu!


Convido-o, caro leitor, a mergulhar na história; e lhe dou até permissão de sentir-se um dos protagonistas dela – você escolhe quem você é: Cecília ou Maurício. Este é um conselho que lhe dou: sinta-se um dos personagens, pois é assim que se lê uma boa história – Entrando nela!
Você perceberá as mudanças de humor, sentirá a brisa da alegria e o vendaval da melancolia, a ilusão do amor e o desespero da tristeza, a indignação da revolta, o recuo diante do medo, o ímpeto da coragem, etc. Todos os sentimentos sincronizados com a situação apresentada página por página, de uma forma mágica, como se realmente você estivesse vivendo tudo aquilo que seus olhos leem. Só assim você pode receber plenamente a mensagem que o texto lhe quer transmitir. Reserve para si apenas o juízo final, pois serás capaz de julgar e avaliar se tudo aquilo que leu procede bem, ou mal.
Meu jeito de desenvolver o texto é contando-o de maneira informal, como se estivesse realmente diante de você, sempre ávido para lhe contar o que sei; e esperando que estejas também ávido para saber tudo que posso lhe contar! Portanto, sinta-se à vontade na minha presença, porque eu estou à vontade diante de você.
Embora já se passaram muitos anos (o que poderia até ser um motivo para esquecimentos), mas não se preocupe: os detalhes serão mostrados assim mesmo, porque não estou só na tarefa de revelar a história: O desenvolvimento do texto será conduzido por uma entidade atemporal, uma criatura sagaz; um observador meticuloso e de ótima memória, do qual não lhe escapa segredo algum e sabe muito da história. Na verdade, conhece-a inteiramente; uma entidade que por fim, revelará a si mesmo nas últimas páginas do livro. Portanto tenha paciência e nada de pular o texto para ler os últimos capítulos, hein?
Estou girando a taramela e abrindo a porta.
Por favor entra comigo nesse mundo passado, mas tão presente!
E boa leitura.

O Autor



Primeira Parte


"Ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!"
Miguel de Cervantes (1547-1646)

Capítulo 1: "A área rural"




A primeira visão que lhe dou é do Arraial, que se chama Cafundós. Guarde bem esse nome, pois não vou mencioná-lo outra vez. Da janela da torre da Igreja se vê cinquenta por cento do povoado. A outra metade está atrás de nós, do outro lado da Igreja. Sim, é isso mesmo! O Arraial é bem pequeno.
Ao fundo, a estrada que corta lavouras e pastagens segue por três quilômetros, até as margens do lago.
O Arraial é pequeno, mas foi aqui que se deu aquela festa.
E Adriana viu tudo... Maldita festa! Maldito bingo! Gostaria que não tivesse acontecido. Seria bom que aquele dia sequer tivesse existido!
Vamos embora daqui, vamos para outro lugar, pois aqui me dá calafrios. Não me sinto bem neste Arraial...

 
Gosto de observar a estrada que vem da Serra, serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos. O terreno, montanhoso e amarelado, é cascalhado por natureza. De tão amarelado e cascalhado que é, por tal motivo uma cidade não muito longe daqui leva o nome indígena de Curuajubá, que significa “Cascalho Amarelo”.
Entre pedregais foi criada a estrada; e por aqui há muito tempo passaram tropas de mulas e carros de bois em formação de comboios, carregando a safra dos sítios e fazendas para serem vendidos na Cooperativa da cidade ou trocados por outros produtos já industrializados que não se fabricavam na roça – como alguns tipos de tecidos, botões, panelas, móveis e utensílios, açúcar, sal e outros provimentos – que os mesmos comboios traziam para cá, na volta.
Havia tropas de cavalo com seus cavaleiros na labuta do dia a dia, com a poeira da estrada a colar no suor da pele sob a camisa rasgada, queimando no Sol de Minas ou fustigado pela chuva tropical. Também passaram nessa estrada as famílias, com a roupa domingueira: Homens e rapazes de chapéus de feltro e camisa de colarinho, canivete na cinta de couro, botina meio cano. Senhoras e mocinhas de sombrinha, vestidos compridos e fitas, carregando suas bolsas a tiracolo; montados em animais de sela ajaezados ou em charretes (carroças a cavalo), em direção às festas do Arraial.
Mas isso foi há muito tempo, sim, muito tempo mesmo…
De tão antiga que é, a estrada em alguns pontos formou sulcos profundos no terreno, chegando mesmo a passar entre barrancos com até dois metros de cada lado, em alguns pontos, rasgando a terra como se fosse o leito seco de um rio.
O terreno é bem acidentado e o clima da região é ameno. O bioma daqui é o Cerrado, com árvores de porte médio, galhos retorcidos e cascudos, capim rasteiro subindo as encostas, e áreas úmidas com árvores frondosas nos capões que existem, nas reentrâncias das montanhas e na beira dos córregos e riachos. A fauna e a flora são ricas, pois aqui há muita vida silvestre. Porém, os agrupamentos de pessoas e povoados estão ficando cada vez mais raros neste lugar…
As casinhas – simples, sem nenhuma ostentação – de quando em quando aparecem aqui e acolá, próximas à estrada. Se fumega a chaminé, elas denunciam que estão ocupadas, e há pessoas e vida dentro delas. Mas não espere encontrar muitas assim, porque quase todas já foram abandonadas.
Para essas casinhas já abandonadas e com suas portas e janelas fechadas, o tempo (e o cupim que vem com ele), já tirou-lhes todo o encanto – como, por exemplo, aquele casebre que existe antes da curva da estrada, e que tem uma enorme e centenária árvore de Ipê na entrada, ao lado dos restos de uma porteira: ali já morou muita gente ao longo de sua existência.
O Honorato que viveu no casebre por muitos anos, foi um velho solteirão. Nunca se aventurou com as mulheres da região por causa de sua gagueira. Seu distúrbio era tão severo que às vezes o pobre Honorato completava as frases com mímicas. Jamais teve coragem de pedir a mão de alguma moça em casamento; assim, envelheceu e morreu solteiro. Mas de todos que viveram naquele casebre, a família de Alécio é a que marcou mais profundamente na memória: Eram pessoas da Cidade Grande, vindos da longínqua Capital Paulista, com sotaque estranho, e que um dia resolveram se mudar para o interior.
Hoje abandonado, o casebre vai ruindo aos poucos. E as guarnições de madeira, apodrecidas e carcomidas pelos cupins e pelas longas décadas, sofrendo a chuva e a estiagem, sem nenhum cuidado de seus antigos habitantes que já não estão mais aqui, se derretem à soleira das portas e umbral das janelas, enquanto o telhado cede com o peso das telhas de barro.
Há muitas casas por aqui, nessa situação. E o mato cresce ao redor das casas abandonadas, das tulhas e dos currais. E assim, como se fosse uma língua verde e faminta, a Natureza se acerca também do interior das residências e construções, como que para resgatar o espaço que outrora lhe foi tomado pelo homem e pela civilização.
Por que esse mundo outrora tão cheio de vida se esvaziou?
Está vazio porque a terra cansou e agora produz cada vez menos. O tratamento da lavoura, muitas vezes feito de modo incorreto com produtos químicos, ajudou a destruir a fertilidade do chão. E também o maquinário que foi implantado nos polos agrícolas ao redor das grandes cidades, provocou uma concorrência desleal, onde se oferece ao consumidor um produto agrícola cada vez mais barato e em maior abundância por causa da tecnologia e da facilidade no transporte, enquanto os pequenos sítios e as tradicionais fazendas, enterradas no mais isolado sertão e desprovidas do desenvolvimento, vão ficando cada vez mais à deriva, e a população rural então inicia seu êxodo até as grandes regiões urbanas em busca do desenvolvimento e do conforto que já não encontram mais por aqui.
As famílias que ainda permanecem habitam construções rústicas, quase primitivas, muitas delas com paredes de adobe levantadas sobre esteiras de bambu, rebocadas com uma mistura de barro e estrume de vaca. Possuem o piso interior das casas de barro batido; e forros de taquara pendurados no teto. E essas casas, quando habitadas, são iluminadas por lamparinas, pois a energia elétrica – considerada um artigo de luxo – até hoje não chegou. Há sempre um jardinzinho de margaridas viçosas na porta da sala, ou um pé de manacá projetando sombras na varanda. E os quintais estão sempre varridos pelas donas de casa, que ainda usam vassouras de guanxuma.
As casas que sobraram – estejam elas habitadas ou não – são testemunhas de muitas vidas, gerações de pessoas simples e trabalhadoras, que sonhavam com o cair do orvalho e da chuva nas plantações. Que aguardavam a mudança da lua para colher ou plantar, gente de mãos calejadas e de falar compassado, quase tímido. Hospitaleiros e solidários uns com os outros, que se ajudavam mutuamente no plantio, na manutenção e na colheita da lavoura. Faziam mutirão; e depois do estafante trabalho, com o Sol já querendo se esconder, cercavam a mesa farta disposta no “terreirão” e preparada pelas senhoras e comadres, onde não faltava a leitoa assada, o arroz com quiabo, a farofa de milho e a farinha de mandioca torrada, o feijãozinho e o frango no suculento caldo, o suco de frutas frescas, a cachacinha e a pimenta.
Ali, os chefes de família traçavam seus planos de compra e venda da safra, do comércio de gado, de animal de montaria, as possíveis negociações na cidade e os melhores caminhos a tomar, para que todo esse trabalho lhes rendesse o máximo de lucro com o mínimo prejuízo. Os filhos mais velhos falavam de suas viagens à cidade grande, e aqueles que nunca tinham saído dali se reuniam em roda para escutar as histórias com atenção – os grupos de jovens separados do grupo de pais, que conversavam sobre negócios.
As meninas mais velhas – entre uma tarefa e outra na cozinha – com olhar esperançoso conversavam entre si sobre os mais diversos assuntos: desde o pano novo com estampa diferente que veio da cidade, as aulas dadas pela professorinha uma vez por semana na Escola Rural, o primo da cidade que veio visitá-los no último fim de semana e até o Sermão do Padre, na Missa de Domingo… Entre risadas, confissões e segredinhos nem sempre sinceros, consideravam entre si as possíveis cunhadas, irmãs de seus possíveis e futuros maridos, que nesse momento poderiam estar ali mesmo, na roda dos rapazes… Pois na roça é assim: o povo se dá em casamento entre vizinhos; a herança das terras em cada casamento se divide ou se junta, e no fim, fica tudo entre eles mesmos: o povo dali.
Exceto, é claro, quando aparece alguém da cidade, ou de outro lugar, e cai nas graças de alguma família; quando isso acontece, então é possível que uma das filhas se case com o moço… Mas são casos raros. Muito raros.
Enquanto adultos e jovens conversavam nessas reuniões de mutirão, as crianças pequenas faziam algazarra e brincavam de pique-esconde, ou saíam procurando tanajuras e cigarras, ou então, caçando um imaginário tatu que se escondera nos arbustos, às margens do terreirão…
O terreirão era aquele espaço aberto que existia ao lado da casa, onde secavam a colheita do arroz, do feijão e do café, e onde também se reunia todo esse pessoal após o mutirão, para comer, cantar e conversar. E era dessa forma que se relacionavam as famílias do lugar.
A vida era simples, trabalhosa, mas era animada e feliz. As coisas por aqui aconteciam de forma previsível: era como se os camponeses, que sabiam a época certa do plantio e da colheita, soubessem também dirigir suas vidas sob outros aspectos, de um modo calculado.
Hoje tudo se transformou em algo pior: O lamento dos carros de bois só posso ouvir agora na imaginação. A cantiga do carrieiro ralhando com a boiada: Ôôâ Malhado! Afaaasta Cruzeiro! Vamos, Tourinho! Eiaaa Curisco! Xiiispa, Campeiro! Fooorça Carrapicho… Tudo isso agora só ouço na imaginação. Fecho os olhos para ver, e quando os vejo, também vejo mais: Vejo as famílias que viveram aqui, vejo as histórias, os “causos”, as alegrias e as tristezas, o riso e o choro, as dores e os gemidos das almas e das vidas que aqui viveram.
Mas só na imaginação mesmo… Porque tudo se foi, tudo passou, tudo ficou esquecido. Aliás, nem tudo…


Capítulo 2: "As terras de Getúlio"




Já disse que gosto de observar a estrada que vem da Serra, não é? Pois meu ponto preferido é bem aqui, defronte à antiga sede da Fazenda Águas Frias.
Hoje está abandonada em ruínas, pois há muito tempo, seus herdeiros se foram para a cidade. Um a um, a começar de Narciso – o filho mais velho, que foi o primeiro a vender seu pedaço da herança.
Aos poucos, cada um vendeu sua parte para o mesmo comprador. E a Fazenda que um dia fora dividida entre os filhos, foi reunida outra vez em um único bloco de terras contínuas, nas mãos de uma Empresa, exceto os pequenos pontos que já estavam vendidos ou cedidos aos antigos agregados e seus descendentes. As terras foram compradas por uma tal “Construtora”, que pretendia formar aqui um enorme complexo turístico. Pretendiam fazer uma estância de veraneio e um hotel no meio da natureza, com janelas voltadas para as montanhas, para o riacho e para o capão de mato. Queriam fazer também um centro de terapias, um spa e um local para retiros religiosos, um condomínio de luxo, enfim, foram muitos planos imaginados e pouco dinheiro disponível, num lugar distante de tudo, numa época ainda atrasada.
E o planejamento não deu certo por falta de recursos financeiros. A administração da empresa calculou mal os recursos necessários em tal investimento.
As terras foram compradas por aquela empresa a preço de banana – e o motivo disso foi que as terras já cansadas, envenenadas e maltratadas deixaram de produzir, empobrecendo seus antigos donos. Esses, tinham pressa em se mudar para a cidade e dar continuidade aos estudos dos filhos, quiseram também abrir pequenos comércios na área urbana com o pouco dinheiro que ainda restava, em vez de permanecer aqui e aplicar inutilmente na recuperação do terreno. Tudo isso contribuiu para a liquidação das terras, na má avaliação de tudo aquilo que venderam. E tanta terra, com tantas histórias herdadas das muitas gerações, foi vendida a estranhos a preço de quase nada!
E mesmo assim com um investimento inicial tão baixo, a Construtora não pôde dar continuidade aos seus planos por falta de um bom projeto, por falta de uma boa administração e por falta de uma melhoria nas estradas, que jamais aconteceu.
Assim, sem o investimento necessário para se transformar, a terra foi abandonada à sua própria sorte até mesmo pela Construtora; e todas as suas construções permaneceram intocadas, com o mesmo aspecto primitivo de quando eram administradas pelos antigos donos. Terra que ficou apenas mais abandonada e destruída pelo tempo… Muito mais abandonada e destruída!
E daqui desse ponto onde estou, tenho ampla visão da Sede: daqui posso ver a família de gambás que fizeram lá sua morada, entrando e saindo pelas frestas das paredes e das portas. E o jaó que timidamente aparece de vez em quando a espiar o terreirão.
Esse lugar que outrora foi tão povoado de alegrias, falas, cantos, rodas e danças, comidas e gentes… tem hoje uma total ausência de vidas humanas! A construção é bem grande e eu conheci pessoalmente o antigo dono. Aliás, quem, morando aqui nessa região, não o conheceu?
Seu nome era Getúlio, e este homem possuiu durante muitos anos o único automóvel que havia nessas terras: Um calhambeque “Ford T”, popularmente conhecido como “Ford bigode”. Era um bonito calhambeque, mas permanecia sempre estacionado na garagem e pouco circulou por essas estradas preparadas para o tráfego de animais, pois com a dificuldade de se encontrar combustível, acabou tornando-se um objeto inútil (o automóvel foi trazido do Rio de Janeiro onde aos poucos se tornava popular, mas aqui na região havia um único posto de combustível, que ficava em Curuajubá e mesmo assim vivia frequentemente fechado).
Getúlio era filho único de um tal “Capitão Francisco” e herdou sozinho as terras da Fazenda Águas Frias. Mas a propriedade que Getúlio recebeu de herança já foi bem maior quando ainda vivia seu pai! Como eu já disse, as casinhas salpicadas aqui e ali ao redor da estrada foram outrora habitadas por agregados, que vinham para trabalhar a terra. E em troca de sua mão de obra, esses agregados receberam de Capitão Francisco: casas, comida e algum dinheiro para cuidar da família. Com o tempo, o Capitão envelheceu e antes de passar a herança a Getúlio, acabou por vender ou doar as casinhas com um pedaço de chão aos agregados, que, por fim, formaram pequenos núcleos subdividindo entre seus filhos o pequeno chão, povoando assim toda a terra. O Getúlio que eu conheci ainda possuiu bastante terra em seu tempo, embora já houvessem muitos agregados estabelecidos ao redor. Alguns em suas próprias casinhas, cedidas pelo Capitão Francisco. Outros, porém, morando ainda sobre terras de propriedade da Fazenda. E teve Getúlio sete filhos: três homens e quatro mulheres.
A Sede é tão antiga que aos fundos ainda existem vestígios do muro construído por escravos – Um muro cuja função era proteger a parte mais baixa dos quintais da Sede de toda aquela enchente que alagava as margens do riacho nos tempos da chuva. E a antiga senzala que ficou vazia depois da alforria ainda está em pé, transformada numa imensa tulha desde o tempo de Capitão Francisco, que passou a armazenar nela os grãos da colheita. Perdeu apenas o telhado, que já desabou. As jabuticabeiras do quintal já caducaram há muito tempo e quase não produzem mais. Suas sementes – levadas pelo vento, chuvas e pássaros, brotaram mais longe, nalgum lugar onde puderam crescer sem disputar o Sol com a copa frondosa do antigo jabuticabal. O resto do pomar cresceu por si só, num emaranhado de árvores frutíferas – algumas com quase dois séculos de existência.
A casinha do moinho também já ruiu e a pedra de mó – nua, despida de seu telhado e de seus equipamentos, alumia agora aos raios de Sol, como a calva de um ancião. Já não gira mais porque a água do riacho corre livre por baixo dela, sem as pás de madeira para girar.
O poço ainda está aqui, perto da porta da cozinha e não foi soterrado. Com certeza aquela moeda também permanece lá dentro, desde o dia em que foi jogada por um rapaz sonhador… Mas ao poço lhe falta a corda e o sarilho, por onde a filha mais nova de Getúlio, Amélia, puxava a água – límpida e fresca.
O pé de romã, apesar de ser uma árvore naturalmente pequena, se tornou um vegetal de troncos largos e caule robusto; quando o conheci, era pouco mais alto do que eu! Mas a idade se encarregou de lhe dar volume.

 
Me deixa triste ver o que sobrou do monjolo…. Antes poderoso, mastigava dia e noite os grãos de milho para fazer canjica e os grãos de arroz para tirar-lhe a casca. Sua música – uma percussão cadenciada, ressoava madrugada afora, com o balancete gangorrando sempre, num incansável vai e vem socando os grãos com sua mão de madeira forte e maciça; e de manhã os grãos já estavam beneficiados. Hoje lhe resta somente uma tora carcomida, dormindo para sempre, de bruços sobre o pouco que restou do pilão.
Também levaram embora o carneiro mecânico, aquela bomba hidráulica que empurrava a água do riacho pelas mangueiras enviando-a aos mais diversos pontos da Sede e para as mais diversas finalidades, como aguar a horta, encher os cochos dos animais no curral, lavar e abastecer a pocilga (para quem não sabe, é o lugar onde se confina os porcos), etc.
Deixaram apenas a fossa onde ele estava, que sem a manutenção necessária, a água do riacho já escavou e destruiu.
O paiol foi invadido por animais silvestres à procura de alimento, e o tempo lhe fez um estrago enorme, mudando totalmente seu aspecto. Na ocasião da compra do Ford T, Getúlio mandou fazer “um puxadinho” no telhado do paiol. Pavimentou o chão com lajes de pedras tiradas lá do riacho e levantou uma parede nos fundos. Fez assim uma garagem, onde deixava guardado sua preciosidade: O automóvel...
O carro se foi há muito tempo, quando a família, em dificuldades financeiras por causa de um empréstimo na Cooperativa, venderam-no para ajudar a saldar dívidas. E da garagem ao lado do paiol só sobraram as pedras de laje, mais nada.
Do curral – com seus cochos vazios e cancelas abertas, rangindo de maneira lúgubre a cada lufada de vento mais forte – as paredes enegrecidas exalam a solidão.
Aliás, tudo agora exala vazio e solidão. O piado amargo do jaó, o canto triste do urutau e o lamento do curiango à noite refletem bem a situação de penúria em que ficou essas terras por aqui. Hoje, pouquíssimas pessoas passam pela estrada diante da Fazenda. E as pessoas que passam, dizem ouvir aqui um som abafado, de músicas antigas sendo tocadas ou cantadas. Um e outro mais corajoso já entrou na casa procurando a origem dos sons, mas nada encontrou. Outros, limitam-se a passar diante da Sede cabisbaixos, persignando-se com o sinal da cruz... Atitude, aliás, que não tem ajudado em nada a resolver o problema. Mas os sons – dizem alguns – podem ser apenas boatos de viajantes e andarilhos medrosos!
Mas ainda assim, gosto de estar aqui e observar a estrada desse ponto… diante de mim há uma velha porteira e ao seu lado um enorme cactus, com mais de dois metros de altura. Seu caule principal já se tornou cerne, madeira dura como de uma árvore qualquer, e forte o suficiente para sustentar as ramificações cada vez mais altas e pesadas, cascudo e velho, tão antigo como os tempos em que os filhos de Getúlio eram moços solteiros e Amélia – a filha mais nova – ainda vivia, e os carros de bois circulavam na estrada, as terras eram cultivadas, e havia Escola Rural, e as crianças ainda inocentes viviam felizes.
Naquele tempo as crianças gostavam de escrever-lhe os nomes, ferindo a casca do cactus. Tomando cuidado com os espinhos e riscando com a ponta do canivete, deixavam no caule ainda tenro uma cicatriz em forma de letras iniciais ou desenhos, que logo se ocultavam pelos brotos que surgiam. Às vezes eram vistos novamente, se por algum motivo os brotos caíssem ou fossem arrancados. Todavia, notava-se que o próprio cactus se encarregava de apagar a cicatriz, fazendo surgir, por baixo da ferida, novas camadas de celulose, expulsando a cicatriz para fora, até que por fim, com o tempo todas elas desapareciam.
Mas isso nem sempre funcionou. E nem todas as marcas o tempo apagou. Crianças travessas! Ainda hoje posso ver – gravados no cactus – duas iniciais dentro de um coração desenhado!


Capítulo 3: "Cecília"




Entre as crianças que um dia brincaram por aqui, bem à frente dessa velha porteira, houve também duas, que foram os donos das iniciais que ainda se vê gravadas no cactus. Esse cactus ao envelhecer e endurecer o caule, preservou tais ranhuras como uma cicatriz profunda e perene, perfeitamente nítidas; inexplicável, porém, o fato de todas as outras já estarem apagadas, permanecendo apenas estas, como as únicas que até hoje não foram apagadas depois de tão longo tempo.
São iniciais escritas dentro do desenho de um coração, e as quais daqui ainda posso ver bem legíveis: “M e C”.
Cecília nasceu aqui, num sitiozinho próximo da Sede. Sua mãe Irene, que era uma das filhas mais velhas de Getúlio, morava nas terras ganhadas como dote de casamento, na distância de quase uma légua daqui – em uma casa ao pé de um grande morro, caminho que podia ser percorrido a cavalo em pouco mais de meia hora. Cabelos maravilhosamente louros e olhos castanhos, Cecília era uma menina linda, de traços delicados, dócil e educada. Muito inteligente, sempre dizia que queria aprender música quando crescesse. Primogênita em sua casa e primeira neta de Getúlio, era a pupila do avô. Tinha ainda um irmão pouco mais novo que ela, Leandro, que lhe servia de companhia. Depois de alguns anos seus pais tiveram mais um casal de filhos, e assim Cecília teve dois irmãos e uma irmã mais novos que ela.
Muito ligada à tia Amélia, a menina estava sempre na casa do avô, aprendendo os afazeres domésticos com a tia.
E crescendo, cada vez mais linda…
Muito apegada à tia, Cecília gostava de compartilhar com ela seus segredos e ideias de menina:
__ Tia, quero me casar com um moço “de fora”, como a senhora se casou. A senhora é tão feliz e tio Cássio é tão gentil...
__Calma – dizia Amélia – a vida é comprida e desconhecida, a gente não sabe o destino que temos. De repente você se arranja com um rapaz daqui mesmo! Veja só os meninos do Antônio Silvério: o Luizinho e o Davi… moram pertinho da gente, é só atravessar o riacho e viajar mais uma hora de cavalo, e lá está a casa deles. São boa gente, e teu avô se dá muito bem com o velho Silvério. Teu pai também cresceu junto com Antônio, o pai dos meninos. E não são nada feios! São gêmeos e se você enjoar de um, ainda pode trocar pelo outro, antes de casar!
__ Ah! Para com isso, tia. Não gosto dessas brincadeiras! Você sabe que não gosto de nenhum deles. São bonitinhos, é verdade, mas a Glorinha da tia Zizi e do tio Estêvão já gosta deles e até agora nem sabe dizer de quem ela gosta mais ou gosta menos, pois são gêmeos idênticos! Mas eu não, eu não tenho nem um cadinho de paixão por eles.
__ Mas tem outros rapazes aqui das redondezas – retrucava Amélia – quando seu avô faz mutirão aparece gente de todo canto, filhos de fazendeiros, nascidos e criados aqui, são todos de família que a gente conhece, gente boa que gosta de trabalhar, que cresceu junto de nós. Pessoas que a gente pode confiar, comungam na Missa todos Domingos. Uma hora aparece um mocinho que vai fazer você esquecer dessa história de casar com moço de fora, e você vai ser tão feliz como eu sou.
__ Mas então por que a senhora se casou com tio Cássio? Ele não é moço de fora também? – perguntava Cecília.
E com um longo suspiro, respondia Amélia:
__ Oras, menina! Já te falei que a vida dá muitas voltas e não conhecemos nosso destino! Esquece essa história por enquanto, que você ainda é nova. Eu só dei minha opinião, e amanhã teu marido será quem o destino escolher, não importa que seja daqui ou seja de fora, tá bom?
Cecília fazia uma careta e sorrindo prosseguia nas tarefas domésticas. E encerrava-se assim o colóquio entre as duas, que vez por outra recomeçava noutro dia qualquer.
Bom, Cássio viera de Curuajubá – onde existia a Cooperativa – cidade que ficava a dois dias de viagem de carro de bois.
Ali os irmãos de Amélia fizeram amizade com Cássio, que foi funcionário da Cooperativa. Certa vez, na companhia dos filhos de Getúlio, Cássio viera até a Fazenda Águas Frias para fazer uma avaliação da safra armazenada na tulha, e nesse dia o rapaz conheceu Amélia e se apaixonou por ela.
Surgiu daí muitos retornos de Cássio à Fazenda – mesmo quando não era mais necessário avaliar a produção, sendo sempre recebido muito bem pela excelente hospitalidade de Getúlio e seus filhos. E por fim houve também as correspondências – levadas e trazidas pelo comboio de carros de bois ou tropa de mulas, cada vez que viajavam até a cidade – e então, aconteceu o casamento de Cássio com Amélia, sob as bênçãos do Vigário e aprovação de toda família da moça, exceto talvez, de Narciso – seu irmão mais velho – que sempre via com olhar de desconfiança qualquer pessoa “de fora”, que por algum motivo se aproximasse de sua família.
E após o casamento o rapaz mudou-se para a Fazenda, vindo morar com Amélia na Sede. Cecília que admirava o jeito extrovertido do “tio da cidade”, ria-se das piadas e brincadeiras de Cássio. Vendo-o assim tão feliz, a menina pensou que se um dia casasse com um moço de fora, sua vida também seria tão feliz quanto a vida de tia Amélia.

Capítulo 4: "A família de Getúlio"



Getúlio ficou viúvo há muitos anos. Maria, sua mulher, adoeceu no parto de Amélia e nunca mais recuperou a saúde. Sempre recolhida, saía mesmo só para visitar a Capelinha que o marido construiu no alto de uma colina, próxima da Sede. Nunca mais saiu de casa a passear nos sítios vizinhos ou para ir ao Arraial, desde que nasceu Amélia. Recusava-se terminantemente a entrar no automóvel de Getúlio, pois sentia terror ao barulho do motor e da trepidação do carro. Todavia, quando Maria sentia saudade de alguma comadre, mandava chamar, através dos filhos ou de algum empregado:
__ Vai lá na casa da Salvina, diz para ela trazer um bocado de açúcar, que o meu é pouco. As galinhas estão botando muito, e vamos fazer umas “quitandas” aqui em casa. Assim posso prosear um bocado com ela. Quero saber como vai o afilhado, que outro dia espetou o pé com prego enferrujado.
__ A Palmira faz dias que não aparece…. Vai saber se tá perrengue! Menino, corre lá na casa dela, leva um bocado desse polvilho que já foi curado e veja se está tudo bem com ela. Se estiver boa, diga-lhe que venha aqui em casa! Manda trazer o Terço, que depois da prosa às vezes a gente reza um.
E desse jeito, uma ou outra comadre sempre vinha até sua casa visitá-la. Porém, Maria só saía mesmo para ir à Missa na Capelinha, ainda assim conduzida lentamente pelas mãos das filhas, num e noutro Domingo – se nesse dia ela estivesse se sentindo bem, pois vivia doente e frequentemente acamada.
Até que um dia adoeceu de vez e nunca mais se levantou. Passaram-se os anos e definhou na cama. Com o tempo, também perdeu a voz, depois a lucidez e, por fim, morreu. Cecília era bem pequena, quando perdeu a avó.
Os três tios de Cecília, homens sérios, calados, viviam para trabalhar. Narciso se casou pouco depois que a mãe faleceu. Se casou e a princípio foi morar nas terras do sogro. Os outros dois, Sebastião e Antônio, se casaram bem depois. Quando conheci a família de Getúlio, esses dois eram solteiros ainda, apesar de não estarem mais na juventude, e procuravam com afinco prosseguir a missão do pai, que era zelar da propriedade, da lavoura e do gado. Conheciam a cidade grande, o polo desenvolvido de Curuajubá, pois havia necessidade de comerciar a safra e trazer coisas que não se produziam na roça. Mas sendo tímidos, não se detinham muito tempo por lá. E como passa rápido o tempo, sem perceber acabaram chegando à idade dos trinta e cinco ou trinta e sete anos sem se casar.
As tias eram todas casadas, e assim como Irene - a mãe de Cecília, elas também moravam nas redondezas, em terras cedidas pelo pai ou em dotes recebidos dos sogros, com exceção de Amélia, que nasceu por último, e mesmo casada nunca se apartou do pai, sempre cuidando da mãe enferma. E depois, quando morreu a mãe, permaneceu na Sede por causa da viuvez do pai, ajudando nos afazeres de casa. Por esses motivos, sempre morou ela e o marido na mesma casa da Sede.
A casa da Sede foi construída nos traços e linhas mais tradicionais das casas do interior de Minas: Tinha uma varanda enorme em forma de “L” que dava sombra na frente da casa e na lateral que se voltava para o Poente, que era a parede lateral mais quente da construção. Havia uma sala ampla, onde se recebia primeiramente as visitas. Ao lado direito e esquerdo da sala haviam dois quartos. A sala se comunicava com outro cômodo, uma sala secundária a que se dá o nome de “Copa”. Era nesta Copa que serviam as quitandas quando recebiam a visita do Vigário ou de alguém importante. Os móveis mais refinados da casa mobiliavam essas duas salas. Na primeira ficavam o relógio de cuco e a cadeira patronal, a antiga cadeira de tempos imemoriais, herdada de pai para filho, e onde se assentava o chefe de família nos tempos antigos. Agora, não se usava mais essa tradição, mas era mantida como relíquia e ornamento da sala.
Possuíam um jogo de poltronas comprado na cidade, e nas paredes muitos quadros pendurados, com fotos antigas da família, as imagens dos santos, uma imagem de Ambrogio Damiano o Papa Pio XI, que naquele tempo dirigia a Igreja, e a folhinha com as datas santificadas e os bons dias de plantio marcados em vermelho, e que era cedida pela Cooperativa anualmente.

 
Mas o tesouro da casa se encontrava num canto da sala: Era o Gramofone que Getúlio mandou trazer do Rio de Janeiro, e algumas dúzias de discos finamente encerados com cera de carnaúba – os últimos lançamentos da gravadora Odeon, que através desses discos gravados em apenas uma face, reproduziam as vozes de cantores famosos, óperas e também as gravações feitas pela Orquestra do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro... O êxtase de Cecília era ouvi-los, intrigada com a “mágica” de se poder ouvir as canções sem que o cantor esteja presente. Fechando os olhos sonhadores, ficava a imaginar... Nunca pensou em ser cantora, mas desejou muito aprender as notas musicais para compor canções.
Na Copa havia uma cristaleira – um grande armário feito de mogno – com a porcelana mais fina. Tinha também uma mesa pequena e seis cadeiras. E da Copa, abriam-se portas para mais dois quartos e um banheiro. Um dos quartos era maior, e tinha uma pequena despensa. Era o quarto de Getúlio, e onde Maria passou seus últimos e dolorosos anos.
A Copa se comunicava finalmente com a cozinha, que tinha o piso rebaixado na altura de um degrau, tornando-a por isso, mais alta que os demais cômodos da casa. Era ampla e num canto abria-se uma porta para outra despensa onde ficavam as latas de mantimento seco – como a farinha, o polvilho, o fubá, o açúcar e onde se moía o café. Havia na cozinha mais duas janelas e uma porta voltada para o terreiro. Um grande fogão de lenha estava assentado no canto de uma parede e possuía uma enorme mesa de jacarandá que ocupava o centro da cozinha. Não tinha cadeiras ali: mas havia dois grandes bancos cercando a mesa e outro banco encostado à parede. Ali se reuniam os pais, filhos e demais familiares ou parentes onde faziam a refeição comum e diária. E como era abençoada a mão de Amélia! Sabia fazer pratos deliciosos, e ela cozinhava com perfeição. Sabia controlar o calor daquele enorme fogão, sem deixar que a lenha esfumaçasse o ambiente e mantinha as panelas sempre polidas – apesar do fogão a lenha. E o caldo de galinha ou torresmo que Amélia sabia fazer eram especiais. O arroz sempre foi soltinho e bem temperado, o feijão era suculento, e sempre havia um caldo de galinha polvilhado com “cebolinhas de folha” que era servido frio, acompanhado com macarrão e molho de pimenta sobre o arroz; e farinha de mandioca torrada. E tudo isso tornavam a refeição que ela preparava de um sabor sublime, inigualável! O verdadeiro gostinho da comida mineira... Quem já comeu das refeições servidas por Amélia jamais se esqueceu do sabor. E Cecília aprendeu com ela!
A família de Getúlio viveu sempre unida, era uma família respeitada na região; tinham prestígio até mesmo em Curuajubá, onde negociavam com a Cooperativa.

Capítulo 5: "Maurício"



Maurício – de origem paulista – era um dos filhos mais novos de uma família pobre, com quatro crianças.
Seu pai – Alécio, era filho de colonos que vieram do interior de São Paulo para a Capital. De uma família de doze irmãos, Alécio passou a infância no interior paulista até que seus pais em condições de pobreza extrema resolveram mudar-se para a Capital em busca de melhores condições de vida. Alécio cresceu, arranjou trabalho na metrópole – assim como seus onze irmãos – e um dia conheceu a mulher que seria sua esposa, Marina – e que nascera num berço de tradições portuguesas e espanholas. Também pobres, os pais de Marina vieram em navios europeus na ilusão de melhorar a vida no continente sul-americano.
Com Marina, Alécio teve os quatro filhos. E Maurício foi o terceiro a nascer, numa casa com três meninos e uma menina que se chamava Adriana, a filha caçula.
Desde cedo Alécio manifestou vontade de retornar ao interior (as pessoas geralmente lembram com nostalgia da infância, julgando-a mais feliz do que a vida quando são adultos, apesar das dificuldades que os pais tiveram para criá-los. Essas dificuldades quase sempre são ocultadas aos filhos, para não lhes causar mais sofrimento, protegendo-os; e esse é o motivo que depois de grande os faz pensar que a infância foi melhor).
Marina, com um suspiro dizia confiar no marido, e o que ele fizesse, ela aceitaria. Queria mudar-se para o interior? Que seja, então. Marina e as crianças iriam também.
Maurício – que sempre fora observador, escutava a conversa dos pais, sem se intrometer – afinal, era ainda uma criança de cinco anos, e nessa idade os pais não levariam sua opinião a sério. Além de quê, em sua cabeça infantil nem tinha ele qualquer opinião sobre isso, assuntos que ele ainda não compreendia, confiando cegamente nas decisões dos pais, e conservou em sua memória apenas a lembrança daquelas conversas. Alguns dos seus irmãos sim, poderiam ter falado algo, sendo mais velhos do que ele, inclusive já frequentavam a escola primária.
Porém nada foi falado, nada foi contestado e numa linda manhã de Novembro, Maurício assistiu a mudança que transformaria suas vidas para sempre: Um caminhão Mercedes-Benz daqueles antigos de focinho, parou na porta de sua casa e carregou toda mobília, os utensílios domésticos e a maior parte das roupas, e depois seguiu em direção ao interior de Minas. E no dia seguinte, às seis horas da manhã, Alécio chegou com a família na Estação Rodoviária paulista e embarcaram todos num ônibus com destino a Acemira, uma pequenina e desconhecida cidade de Minas Gerais, a mais de quinhentos quilômetros dali.
Um mês antes Alécio viajara sozinho. Por indicação de amigos, foi conhecer a região.
A viagem da família transcorreu bem, apesar das estradas de terra e dos estragos que a chuva fazia naquele mês de Novembro, quando as chuvas da Estação castigavam a região Sudeste do Brasil. Na região Sudeste do Brasil não existem as quatro estações: Temos o tempo do calor e o tempo do frio. E consequentemente, o tempo das chuvas e o tempo das secas.
A viagem durou muitas horas, sendo necessário inclusive a troca de veículos no meio do caminho, pois o ônibus que saía de São Paulo não fazia a viagem diretamente até Acemira. Foi uma viagem para não voltar mais – como dizia Alécio.
Acemira era uma cidadezinha linda, porém esquecida, com ruas estreitas e sem pavimentação, todas em terra, ainda. A maior construção (além da Igreja que ficava no ponto mais alto do terreno e cuja torre dava para se ver a algumas léguas de distância) era a Prefeitura Municipal que ocupava meia quadra. As casas eram baixas, mas existiam seis ou oito casas com dois andares – uma inclusive era do Prefeito. E havia uma única praça pavimentada onde estava também a Igreja Matriz. As outras praças não passavam de simples espaços abertos, onde ao meio existiam Cruzeiros, instalados pelas Missões Católicas. Existiam três praças assim.
Se Acemira era pacata durante o dia, mergulhava em completa escuridão à noite, quando as trevas tomavam conta de suas ruas sem iluminação. Nem mesmo a tremulante luz de lampião a gás – como nos postes das ruas de São Paulo – existiam na cidade! Sua população era composta em grande parte por pessoas que possuíam terras ao redor da cidade. Pequenos sítios. Muitas casas permaneciam fechadas durante a semana, enquanto seus donos trabalhavam nas terras ao redor. Havia um movimento maior aos Sábados e Domingos, quando vinham até a cidade fazer compras, vender produtos da roça e assistir a Missa.
A cidade ficava encravada num espigão de terras, cuja afluência de dois rios formaram um extenso lago em forma de “U” cercando-a e tornando-a quase uma ilha, deixando apenas uma única comunicação por estrada de terra….
Quantas vezes Maurício testemunhou sua mãe chorando silenciosamente, sentada no pobre sofá da sala, enquanto cozia remendos nas roupas da família… Saudades da Cidade Grande? Talvez... Mas ela nunca falou.
Maurício também sentia saudades, apesar de guardar poucas lembranças de lá.


Capítulo 6: "A Missa na Capela"



Domingo amanheceu bonito. Um vento de Agosto empurrou as nuvens para bem longe. O dia estava ensolarado e o clima seco e gostoso. Acontecia um evento religioso na Capelinha. O Vigário reuniu toda a família de Getúlio e os agregados da região.
Eram comuns essas Missas. Desde que Maria adoeceu e não saiu mais da Sede, construíram uma Capela nos termos da Fazenda Águas Frias e o Vigário aparecia ao menos uma vez por mês para rezar Missa e ouvir as confissões. Ali compareciam os filhos, as noras e os genros de Getúlio, os netos, os afilhados e toda a vizinhança de agregados.
Por não ter um Domingo certo que se realizasse a Missa – pois dependia muito das condições climáticas, e o Vigário atendia também a cidade de Acemira e o Arraial – então nem sempre todas famílias compareciam, ficando sempre a incerteza se naquele Domingo haveria Missa ou não. Quando possível, o sacerdote mandava um recado durante a semana, e Getúlio fazia os convites de boca a boca. Mas isso era melhor do que nada! Afinal, nem todos compareciam também à Missa Dominical que acontecia no Arraial, fosse o tempo bom, ou não.
Foi ali nessa Capela que se rezou a Missa de corpo presente quando Maria, a mulher de Getúlio, morreu. E ali também rezaram por Amélia, mais tarde...

Mas naquele dia de festa, as crianças, acostumadas ao ar livre, de maneira alguma se conformavam em ficar junto aos pais na Capela onde o Padre com voz monótona realizava o ofício. Ainda que houvessem reprimendas depois da Missa, a algazarra no terreirão era geral.
Cecília, aborrecida e um pouco mais velha que toda aquela turminha de crianças, observava os irmãos e os primos. Não bastasse esses, ainda tinha as crianças dos agregados para tomar conta!...

Naquele Domingo enquanto as crianças brincavam, Cecília resolveu dar uma volta na estrada, pois logo acima da casa do avô onde a porteira se abre para a estrada, existe o cactus enorme, do qual já falei, e justamente daquele ponto se tem a melhor e mais bonita vista da estrada que desce a Serra serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos...

E Maurício naquele dia, também se sentia entediado. Há tempos que ele vinha considerando as mudanças na sua vida.
Desde que os pais se mudaram para Minas, a vida só piorou. Empobreceram ainda mais e o pai não conseguiu emprego fixo em Acemira. A cidade além de pequenina, foi no passado castigada pelas águas dos dois rios que a cercam. Eram rios que naquele trecho corriam muito próximos e paralelos, um à direita e outro à esquerda da cidade, que ficava metade sobre o espigão de terras e a outra metade numa depressão do terreno. Porém, num ano de muitas chuvas formaram enchentes monstruosas que desciam com ímpeto lambendo as margens dos rios. E a enchente mudou a geografia do lugar para sempre, pois uma barreira natural foi levada pelas águas dos dois rios, e desde aquele momento os dois se juntaram no grande lago à volta do espigão de terra, onde Acemira está assentada. Uma parte considerável da pequena cidade afogou-se no lugar mais baixo do terreno, onde agora o lago faz a curva ligando os dois rios... Por causa disso, até hoje dizem que a cidade nasceu com destino de ser afogada, pois até o seu nome, “Acemira” prediz o mal que recaiu sobre seus habitantes. O nome é uma palavra indígena que significa: “Aquilo que faz doer” - uma alusão aos tristes acontecimentos que traumatizou sua população e estagnou o desenvolvimento da cidade por muitos e muitos anos.
Acemira, que por causa disso adormeceu no tempo, oferecia poucas oportunidades, principalmente às pessoas que não pertenciam ao local. Alécio tentou arranjar serviço no comércio da cidade sem sucesso, e até mesmo um modesto serviço na limpeza pública da cidade lhe foi negado (naquele tempo não se prestavam concursos, mas os funcionários eram escolhidos pela amizade que tinham com o grupo político do local), e essas foram as palavras do Prefeito, quando Alécio recorreu a ele:
__ “Sr. Alécio, eu sinto muito. Não posso tirar o pão da boca das crianças de Acemira e dá-los aos seus filhos. Os empregos são bem disputados e a população local acompanha com bastante interesse a sucessão de cargos e as vagas públicas. Até mesmo as mais humildes funções, como a limpeza das ruas, não posso lhe oferecer. Vocês não são daqui, e reservamos o emprego nos serviços públicos para a população local. Infelizmente, seu Alécio, infelizmente... Acho que na vossa situação, o melhor seria que voltassem para sua terra natal.”
Voltar para São Paulo não foi possível. O dinheiro que já era pouco, se acabou; as crianças cresciam e a situação se apertava cada vez mais. E o jeito foi se arranjar por ali mesmo, na região ao redor, onde o pai e os irmãos mais velhos pudessem trocar a mão de obra diária por um prato de comida e um telhado que abrigasse a família. Qualquer coisa lhe seria bem-vindo, qualquer serviço, desde que pudesse sustentar a família.
Então uma casinha de agregados foi desocupada na Fazenda Águas Frias, do outro lado do lago, depois do Arraial. E naqueles dias Getúlio precisava de mais gente para ajudar na colheita do café.
Foi a “oportunidade salvadora” da família de Maurício! A casinha ficava a duas léguas de distância do Arraial, tendo a Sede – a casa de Getúlio, a meio caminho entre a casinha e o Arraial. Era uma casa simples, com paredes de adobe e chão de terra batido, pequenina com dois quartos apenas, uma sala e uma cozinha. Uma pequena varanda na parede da frente e um terreirão nos fundos da casa. Como todas as casas da região – sem exceção – suas portas e janelas eram de madeira grotesca, resguardadas por taramelas.
Um frondoso Ipê estava plantado ao lado da porteira, projetando sua sombra todo dia de manhã, quando o Sol surgia, no caminho que vai em direção à varanda do casebre.

A relação entre agregados e os donos da terra sempre foi amistosa e cordial. Sempre haviam convites para assistir a Missa na Capela. E nos dias de mutirão, havia almoço ou jantar, com todos reunidos nos terreirão. Mas geralmente os contatos não passavam disso. Os vínculos entre patrões e agregados deveriam ser vínculos de trabalho. Mão de obra, e nada mais...

Naquele Domingo, enquanto os mais velhos assistiam a Missa na Capela e os mais novos brincavam no terreirão, Maurício resolveu andar pela estrada, pois queria paz e sossego naquela manhã. Acordou com uns planos na cabeça e queria pensar melhor sobre isso. Na Escola Rural a professorinha elogiou seu desempenho, no dia em que houve a reunião com os pais dos alunos:
__ Menino inteligente, Dona Marina; aprendeu fácil as letras, tira boas notas, sabe escrever muito bem, é criativo e tem uma linda redação! Vocês não podem deixar esse menino aqui. É uma dó! Dão um jeito de mandá-lo para a cidade, onde possa estudar e se formar. Vocês não têm parentes por lá? Esse menino pode ser um doutor, no futuro! Pensem nisso.
Agora, Maurício já tinha completado o período escolar e a dois anos estava sem ir à Escola. Mas o conselho que a professora deu à sua mãe nunca mais lhe saiu da cabeça: Maurício queria voltar para São Paulo.

Maurício sempre foi diferente de seus irmãos. Aqueles, em pouco tempo se integraram bem com a população local, e a despeito do sotaque estranho da metrópole paulista – bem diferente do palavreado simples do povo da roça – esses “moços de fora” eram pessoas queridas por todos os jovens da mesma idade, e com eles jogavam bola no campinho do Arraial, participavam das quermesses e das Festas Juninas, saíam a pescar juntos com os moços de outras famílias de agregados, conquistaram muita amizade com os alunos da Escola Rural e sempre davam um jeito de ir à Curuajubá junto com os filhos do Getúlio, quando estes levavam a safra para vender.
Maurício, porém, era diferente. De personalidade totalmente oposta aos seus irmãos, o menino cresceu “amuado”, quieto e tímido. Magrinho, sempre foi zombado na Escola pelos coleguinhas que o chamavam de “pau-de-virar-tripas”, “vareta”, “espeto”, “vara de bambu” e “magricela”, sem dizer das incontáveis vezes que algum moleque mais forte lhe tomava o lanche que a mãe preparava em casa!
Como havia apenas uma aula por semana, essa era dada em período integral desde as sete horas da manhã até a tardinha, com uma pausa para o lanche e alguma recreação – estratégia inédita para a época, que visava o descanso dos alunos pelo cansativo período de estudos.
O menino, porém, não gostava de jogar bola na hora do “recreio”, isolando-se na biblioteca da Escola, distraindo-se com a leitura de algum livro; e como consequência, não conquistou muita amizade. Esse período escolar ensinou muita coisa a Maurício, porém, ao manter-se isolado, marcou-o também em sua complexa personalidade. Um período que pode passar relativamente rápido para um adulto, costuma ser demasiadamente demorado para uma criança, cuja experiência de vida resume-se apenas naqueles poucos anos que já viveu. E a boa convivência na Escola é que vai determinar muitos fatores de uma vida adulta, depois. Talvez não influencie tanto no caráter; mas, com certeza, influencia no modo de interagir com as pessoas, depois de adulto. O menino – que era zombado na Escola – nunca reclamou aos seus irmãos mais velhos nem disse nada aos pais quando voltava para casa depois da aula. Porém, isolando-se, dedicou todo o seu tempo em estudar as poucas lições que a Escola Rural foi capaz de fornecer aos alunos. Devorava os livros que a professora trazia da cidade, e lia todos almanaques agrícolas vindos de Curuajubá. Não perdia nem mesmo as notícias velhas daquelas folhas soltas de jornais que os comerciantes usavam para embrulhar utensílios, e que chegavam até ele depois de cada viagem de seus irmãos à cidade. O menino sabia escrever muito bem.
Vez por outra, ensaiava uma conversa com um dos colegas de sala de aula, o menino que sentava mais próximo de sua carteira – um dos netos de Getúlio, o irmão de Cecília. Mas não tinham muito assunto que conversar; assuntos que logo morriam sem terminar, sem conclusão, pois Leandro entendia de café e de vacas. Maurício só entendia de todas as outras coisas que lia nos livros, almanaques e jornais. De tudo um pouco, menos de roça.
De compleição franzina, o serviço duro e pesado da roça realmente estava além da capacidade física daquele menino magérrimo. Nada o prendia ali, naquelas terras onde se sentia um estrangeiro: sempre isolado, Maurício tinha pouca companhia, poucos amigos. Então Maurício se convenceu que era mesmo um “desperdício” estar ali, na roça, pés descalços no chão e mãos calejadas num cabo de enxada.

A Escola Rural foi estabelecida numa antiga casa à beira da estrada, no caminho que saía do Arraial em direção à Sede da Fazenda Águas Frias. A casa era propriedade da Paróquia, mas com o avanço da Educação que acontecia no País, o Vigário – seguindo o exemplo de outros lugares – cedeu a propriedade ao Arraial para que se estabelecesse uma célula de ensino naquela área rural. A casa possuía uma imensa varanda nos fundos, de frente para o quintal, onde havia o campinho de futebol. Por dentro, foi dividida em cinco partes, sendo uma a sala laboral das professoras (ou a “Diretoria”), onde elas organizavam o material de ensino, funcionando ao mesmo tempo como uma simples e primitiva biblioteca; em outra parte ficava o refeitório e as outras três partes restantes eram as salas de aula, onde três professoras que vinham de Acemira, atravessando o lago de batelão (um barco de cobertura onde cabiam dez passageiros), ensinavam os alunos, que eram divididos assim: Na primeira sala – a maior – ficavam os meninos mais novos. Na segunda sala – de tamanho médio – eram os rapazes já quase adultos que assistiam as aulas. A terceira sala – a menor de todas e separada das outras pelo refeitório – era a sala das meninas, porém só compareciam aquelas que tinham também algum irmão estudando, e que se responsabilizasse por ela na ida e na volta para a Escola. E uma dessas meninas que frequentava a Escola era Cecília, que acompanhava Leandro toda semana.
Maurício conhecera Cecília apenas “de vista”, quando frequentava a Escola. Como nunca estudaram na mesma sala, também nunca se falaram, exceto um “oi”, “bom dia” ou “boa tarde” quando fosse necessário. Sempre distantes, nunca se olharam nos olhos uma única vez enquanto estudaram na mesma Escola. Mas o menino sabia que ela era neta de Getúlio, o patrão de seu pai. Havia já um tempo que quase não se viam, desde que se encerrou o período escolar e todos alcançaram o máximo que aquela Escola de poucos recursos poderia oferecer. De Cecília, quase não lembrava sequer o nome.
Cecília permanecia agora quase o tempo todo na casa do avô, ajudando Amélia nos afazeres domésticos. E Maurício voltou a trabalhar com o pai na lavoura em tempo integral, ajudando cultivar café para a família de Getúlio.

Mas naquele Domingo houve um convite, e todo mundo compareceu à Missa na Capelinha, inclusive a família de Alécio.
E Maurício, que acompanhou os pais, resolveu sair da Missa e perambular pela estrada... Aproximou-se ressabiado do enorme cactus onde Cecília, postada ao lado e com uma das mãos em concha sobre os olhos, observava atenta o serpentear da estrada. O cactus era tão alto que dava para se proteger do Sol debaixo de sua sombra!
__Olá menino. Parece que vejo uns pontinhos se mexendo lá adiante na Serra, por onde desce a estrada. Será que os carros de bois de vovô já estão chegando? Há três dias meus tios foram até Curuajubá levar milho que o pessoal ensacou. – disse Cecília a Maurício.
__Provavelmente sim. Meu irmão mais velho está com eles no comboio e ele sempre diz que a viagem é rápida quando se tem pressa. E eles tinham pressa para chegar, por causa da Missa na Capela. – respondeu Maurício.
Então, desviando o olhar da estrada e fitando Maurício, Cecília observou-o mais atentamente, e perguntou-lhe:
__É você o filho do “seu” Alécio, aquele agregado do vovô, que mora na casinha do Ipê, não é?
__Sim, sou um deles – respondeu Maurício em curta resposta.
__Lá em casa o Leandro já falou de você. Ele te elogia muito sabia? Diz que você é um menino quieto, e é o único da sala que ainda não levou “bolacha” de palmatória da professora... Ele também contou que seus colegas de sala gostam de zombar de você, mas Leandro nunca concordou com isso. Ele diz que é uma injustiça. Diz também que suas notas são altas e a professora gosta bastante das redações que você faz. Sabe, menino, também gosto muito de estudar, mas o que eu queria mesmo era aprender a música... – disse Cecília.
__Um de seus tios sabe tocar violão! No dia do mutirão vi que ele tocava umas modas bem bonitas. Porque não pede umas aulas a ele? Daí se você for bem, teu pai lhe compra um violão – retrucou Maurício.
__Não, não. Quero aprender mesmo a música. Eles não sabem música. Tocam só “de ouvido”, e eu quero aprender as notas: do, ré, mi, fá... – respondeu Cecília.
__Bom... nesse caso não sei o que dizer. Então acho que só na “cidade grande” você conseguiria estudar música com algum Mestre... E por falar nisso, estou querendo voltar para lá também, mas ainda sou novo, meu pai não deixaria, né? – e foi assim que Maurício contou pela primeira vez a uma pessoa aquilo que estava pensando, aqueles planos da sua cabeça.
__Voltar para a cidade grande? Aquele lugar de onde vocês vieram? Teria coragem de deixar seus pais aqui e se mudar para tão longe? – perguntou Cecília, sem compreender os projetos do rapaz.
Não houve resposta, pois nesse momento chegou Adriana, irmã de Maurício e que era um ano mais nova que ele – chamando-o de volta, pois o ofício religioso terminara, e estava na hora de ir embora.
__Escreve uma redação para mim? – perguntou de supetão Cecília.
Maurício ruborizou e sem saber negar, respondeu que sim, talvez um dia desses, falou gaguejando em voz embargada pela timidez.
E nesse momento Adriana se dirigindo à Cecília, responde:
__Pode deixar Cecília, que eu faço ele escrever sim. Aliás, é o que ele mais gosta de fazer e isso vai distraí-lo, pois anda muito aborrecido ultimamente, acho que as aulas da Escola estão lhe fazendo falta!
Assim, voltou Maurício em companhia de sua irmã Adriana, enquanto Cecília permanecia no mesmo local, não mais olhando a estrada que serpenteia descendo a Serra, mas observando os dois a se distanciar dali...
O rapazinho de fato era bem magro, quase franzino – analisou Cecília. Tinha um andar desengonçado pela magreza, e talvez poderia até ser motivo de risadas na Escola... Porém suas mãos eram delicadas, com dedos longos, eram mãos apropriadas para escrever, bem diferente das mãos rudes, desproporcionais, que geralmente os meninos da roça possuem, característica de quem já se adaptou ao trabalho duro e pesado na lavoura. Havia muita inteligência, simpatia e doçura naquele olhar meigo. Os traços do rosto eram suaves e seus olhos eram grandes e bem expressivos, talvez indicando bondade de alma, acreditou Cecília.
Também era um menino sério e muito educado. Leandro sempre dizia que Maurício conversava pouco na Escola e não brincava no recreio. Obedecia à professora e nunca deixou de trazer o dever de casa, que era feito com um capricho impecável.
O fato é que o menino tinha um aspecto bem diferente dos outros rapazes que moravam por ali.
Pois sim! Maurício era um rapaz “de fora”!

Os pontinhos que Cecília viu se movimentando na estrada desapareceram! Provavelmente estavam fora do alcance das vistas: atravessavam agora as baixadas onde as pontes cortavam riachos em diversos lugares.
E o menino também já desaparecera após a curva da estrada... Então Cecília olhou mais uma vez para o cactus e teve uma ideia.
Porém, nesse momento seu avô gritou-lhe o nome, e a menina apressadamente desceu a estrada em direção ao casarão da Sede; precisava ajudar Amélia nos afazeres de casa. Seus tios chegariam dentro de poucas horas.