Entre
as crianças que um dia brincaram por aqui, bem à frente dessa velha
porteira, houve também duas, que foram os donos das iniciais que
ainda se vê gravadas no cactus. Esse cactus ao envelhecer e
endurecer o caule, preservou tais ranhuras como uma cicatriz profunda
e perene, perfeitamente nítidas; inexplicável, porém, o fato de
todas as outras já estarem apagadas, permanecendo apenas estas, como
as únicas que até hoje não foram apagadas depois de tão longo
tempo.
São
iniciais escritas dentro do desenho de um coração, e as quais daqui
ainda posso ver bem legíveis: “M e C”.
Cecília
nasceu aqui, num sitiozinho próximo da Sede. Sua mãe Irene, que era
uma das filhas mais velhas de Getúlio, morava nas terras ganhadas
como dote de casamento, na distância de quase uma légua daqui –
em uma casa ao pé de um grande morro, caminho que podia ser
percorrido a cavalo em pouco mais de meia hora. Cabelos
maravilhosamente louros e olhos castanhos, Cecília era uma menina
linda, de traços delicados, dócil e educada. Muito inteligente,
sempre dizia que queria aprender música quando crescesse.
Primogênita em sua casa e primeira neta de Getúlio, era a pupila do
avô. Tinha ainda um irmão pouco mais novo que ela, Leandro, que lhe
servia de companhia. Depois de alguns anos seus pais tiveram mais um
casal de filhos, e assim Cecília teve dois irmãos e uma irmã mais
novos que ela.
Muito
ligada à tia Amélia, a menina estava sempre na casa do avô,
aprendendo os afazeres domésticos com a tia.
E
crescendo, cada vez mais linda…
Muito
apegada à tia, Cecília gostava de compartilhar com ela seus
segredos e ideias de menina:
__
Tia, quero me casar com um moço “de fora”, como a senhora se
casou. A senhora é tão feliz e tio Cássio é tão gentil...
__Calma
– dizia Amélia – a vida é comprida e desconhecida, a gente não
sabe o destino que temos. De repente você se arranja com um rapaz
daqui mesmo! Veja só os meninos do Antônio Silvério: o Luizinho e
o Davi… moram pertinho da gente, é só atravessar o riacho e
viajar mais uma hora de cavalo, e lá está a casa deles. São boa
gente, e teu avô se dá muito bem com o velho Silvério. Teu pai
também cresceu junto com Antônio, o pai dos meninos. E não são
nada feios! São gêmeos e se você enjoar de um, ainda pode trocar
pelo outro, antes de casar!
__
Ah! Para com isso, tia. Não gosto dessas brincadeiras! Você sabe
que não gosto de nenhum deles. São bonitinhos, é verdade, mas a
Glorinha da tia Zizi e do tio Estêvão já gosta deles e até agora
nem sabe dizer de quem ela gosta mais ou gosta menos, pois são
gêmeos idênticos! Mas eu não, eu não tenho nem um cadinho de
paixão por eles.
__
Mas tem outros rapazes aqui das redondezas – retrucava Amélia –
quando seu avô faz mutirão aparece gente de todo canto, filhos de
fazendeiros, nascidos e criados aqui, são todos de família que a
gente conhece, gente boa que gosta de trabalhar, que cresceu junto de
nós. Pessoas que a gente pode confiar, comungam na Missa todos
Domingos. Uma hora aparece um mocinho que vai fazer você esquecer
dessa história de casar com moço de fora, e você vai ser tão
feliz como eu sou.
__
Mas então por que a senhora se casou com tio Cássio? Ele não é
moço de fora também? – perguntava Cecília.
E
com um longo suspiro, respondia Amélia:
__
Oras, menina! Já te falei que a vida dá muitas voltas e não
conhecemos nosso destino! Esquece essa história por enquanto, que
você ainda é nova. Eu só dei minha opinião, e amanhã teu marido
será quem o destino escolher, não importa que seja daqui ou seja de
fora, tá bom?
Cecília
fazia uma careta e sorrindo prosseguia nas tarefas domésticas. E
encerrava-se assim o colóquio entre as duas, que vez por outra
recomeçava noutro dia qualquer.
Bom,
Cássio viera de Curuajubá – onde existia a Cooperativa – cidade
que ficava a dois dias de viagem de carro de bois.
Ali
os irmãos de Amélia fizeram amizade com Cássio, que foi
funcionário da Cooperativa. Certa vez, na companhia dos filhos de
Getúlio, Cássio viera até a Fazenda Águas Frias para fazer uma
avaliação da safra armazenada na tulha, e nesse dia o rapaz
conheceu Amélia e se apaixonou por ela.
Surgiu
daí muitos retornos de Cássio à Fazenda – mesmo quando não era
mais necessário avaliar a produção, sendo sempre recebido muito
bem pela excelente hospitalidade de Getúlio e seus filhos. E por fim
houve também as correspondências – levadas e trazidas pelo
comboio de carros de bois ou tropa de mulas, cada vez que viajavam
até a cidade – e então, aconteceu o casamento de Cássio com
Amélia, sob as bênçãos do Vigário e aprovação de toda família
da moça, exceto talvez, de Narciso – seu irmão mais velho – que
sempre via com olhar de desconfiança qualquer pessoa “de fora”,
que por algum motivo se aproximasse de sua família.
E após o casamento o rapaz mudou-se para a Fazenda, vindo morar com
Amélia na Sede. Cecília que admirava o jeito extrovertido do “tio
da cidade”, ria-se das piadas e brincadeiras de Cássio. Vendo-o
assim tão feliz, a menina pensou que se um dia casasse com um moço
de fora, sua vida também seria tão feliz quanto a vida de tia
Amélia.