Capítulo 3: "Cecília"




Entre as crianças que um dia brincaram por aqui, bem à frente dessa velha porteira, houve também duas, que foram os donos das iniciais que ainda se vê gravadas no cactus. Esse cactus ao envelhecer e endurecer o caule, preservou tais ranhuras como uma cicatriz profunda e perene, perfeitamente nítidas; inexplicável, porém, o fato de todas as outras já estarem apagadas, permanecendo apenas estas, como as únicas que até hoje não foram apagadas depois de tão longo tempo.
São iniciais escritas dentro do desenho de um coração, e as quais daqui ainda posso ver bem legíveis: “M e C”.
Cecília nasceu aqui, num sitiozinho próximo da Sede. Sua mãe Irene, que era uma das filhas mais velhas de Getúlio, morava nas terras ganhadas como dote de casamento, na distância de quase uma légua daqui – em uma casa ao pé de um grande morro, caminho que podia ser percorrido a cavalo em pouco mais de meia hora. Cabelos maravilhosamente louros e olhos castanhos, Cecília era uma menina linda, de traços delicados, dócil e educada. Muito inteligente, sempre dizia que queria aprender música quando crescesse. Primogênita em sua casa e primeira neta de Getúlio, era a pupila do avô. Tinha ainda um irmão pouco mais novo que ela, Leandro, que lhe servia de companhia. Depois de alguns anos seus pais tiveram mais um casal de filhos, e assim Cecília teve dois irmãos e uma irmã mais novos que ela.
Muito ligada à tia Amélia, a menina estava sempre na casa do avô, aprendendo os afazeres domésticos com a tia.
E crescendo, cada vez mais linda…
Muito apegada à tia, Cecília gostava de compartilhar com ela seus segredos e ideias de menina:
__ Tia, quero me casar com um moço “de fora”, como a senhora se casou. A senhora é tão feliz e tio Cássio é tão gentil...
__Calma – dizia Amélia – a vida é comprida e desconhecida, a gente não sabe o destino que temos. De repente você se arranja com um rapaz daqui mesmo! Veja só os meninos do Antônio Silvério: o Luizinho e o Davi… moram pertinho da gente, é só atravessar o riacho e viajar mais uma hora de cavalo, e lá está a casa deles. São boa gente, e teu avô se dá muito bem com o velho Silvério. Teu pai também cresceu junto com Antônio, o pai dos meninos. E não são nada feios! São gêmeos e se você enjoar de um, ainda pode trocar pelo outro, antes de casar!
__ Ah! Para com isso, tia. Não gosto dessas brincadeiras! Você sabe que não gosto de nenhum deles. São bonitinhos, é verdade, mas a Glorinha da tia Zizi e do tio Estêvão já gosta deles e até agora nem sabe dizer de quem ela gosta mais ou gosta menos, pois são gêmeos idênticos! Mas eu não, eu não tenho nem um cadinho de paixão por eles.
__ Mas tem outros rapazes aqui das redondezas – retrucava Amélia – quando seu avô faz mutirão aparece gente de todo canto, filhos de fazendeiros, nascidos e criados aqui, são todos de família que a gente conhece, gente boa que gosta de trabalhar, que cresceu junto de nós. Pessoas que a gente pode confiar, comungam na Missa todos Domingos. Uma hora aparece um mocinho que vai fazer você esquecer dessa história de casar com moço de fora, e você vai ser tão feliz como eu sou.
__ Mas então por que a senhora se casou com tio Cássio? Ele não é moço de fora também? – perguntava Cecília.
E com um longo suspiro, respondia Amélia:
__ Oras, menina! Já te falei que a vida dá muitas voltas e não conhecemos nosso destino! Esquece essa história por enquanto, que você ainda é nova. Eu só dei minha opinião, e amanhã teu marido será quem o destino escolher, não importa que seja daqui ou seja de fora, tá bom?
Cecília fazia uma careta e sorrindo prosseguia nas tarefas domésticas. E encerrava-se assim o colóquio entre as duas, que vez por outra recomeçava noutro dia qualquer.
Bom, Cássio viera de Curuajubá – onde existia a Cooperativa – cidade que ficava a dois dias de viagem de carro de bois.
Ali os irmãos de Amélia fizeram amizade com Cássio, que foi funcionário da Cooperativa. Certa vez, na companhia dos filhos de Getúlio, Cássio viera até a Fazenda Águas Frias para fazer uma avaliação da safra armazenada na tulha, e nesse dia o rapaz conheceu Amélia e se apaixonou por ela.
Surgiu daí muitos retornos de Cássio à Fazenda – mesmo quando não era mais necessário avaliar a produção, sendo sempre recebido muito bem pela excelente hospitalidade de Getúlio e seus filhos. E por fim houve também as correspondências – levadas e trazidas pelo comboio de carros de bois ou tropa de mulas, cada vez que viajavam até a cidade – e então, aconteceu o casamento de Cássio com Amélia, sob as bênçãos do Vigário e aprovação de toda família da moça, exceto talvez, de Narciso – seu irmão mais velho – que sempre via com olhar de desconfiança qualquer pessoa “de fora”, que por algum motivo se aproximasse de sua família.
E após o casamento o rapaz mudou-se para a Fazenda, vindo morar com Amélia na Sede. Cecília que admirava o jeito extrovertido do “tio da cidade”, ria-se das piadas e brincadeiras de Cássio. Vendo-o assim tão feliz, a menina pensou que se um dia casasse com um moço de fora, sua vida também seria tão feliz quanto a vida de tia Amélia.