Cecília
agora morava na Sede com Heitor, onde outrora viveu ao lado do avô e
tia Amélia. Na adolescência, Cecília sempre morou ali.
Primeiro morreu a tia. E tio Cássio, o esposo dela, desencantado
mudara-se outra vez para Curuajubá, onde ainda viviam seus
familiares. Desconsolado e não suportando a ausência de Amélia,
sentindo-se culpado por não tê-la deixado na cidade aos cuidados
médicos em seus últimos dias de vida, Cássio sentindo-se
atormentado, acabou, por fim, sumindo no mundo sem deixar rastros e
nem notícias.
Após
a morte da filha, Getúlio adoecera de tristeza e foi levado para a
casa de seus filhos por algum tempo. Cecília voltou à casa de seus
pais, e o casarão da Sede ficou fechado. Quando o avô melhorou e
retornou à Sede, Cecília também voltou para fazer-lhe companhia.
Depois
morreu o avô, e a Sede tornou a ficar fechada.
Foi
a época em que Maurício namorou Cecília.
Quando
Cecília se casou, foi morar provisoriamente nas terras que
pertenciam à família de Heitor. Durante esse tempo a Sede ainda não
tinha sido dividida entre os filhos de Getúlio – apenas as terras
ao redor. Narciso então vendeu sua parte da herança e mudou-se para
Curuajubá, permanecendo a Sede fechada até que trouxeram Narciso de
volta, quando ficara inválido.
Agora
que seu tio Narciso também morrera, e a viúva mudou-se para casa de
seus parentes, Cecília finalmente se estabelecera na Sede. Só que
agora, faltando-lhe o avô e tia Amélia, fazia-lhe companhia o
marido Heitor.
Seus
tios em dificuldades financeiras mudaram-se pouco a pouco para a
cidade grande. A terra era vendida aos poucos à Companhia de
Construção, restando apenas as terras de Irene, sua mãe, e a
própria Sede que ainda pertencia a todos irmãos.
A
Capela no alto da colina em frente à Sede resistia lamentavelmente
com suas paredes escurecidas pelo fogo, nuas e sem telhado. A
vegetação já invadia o seu pavilhão. Ninguém se animou a
reformar o prédio. Reformar por quê? A felicidade há tempos
abandonou as terras. Não haveria mais festas nem mutirões. O povo
esvaiu-se para a cidade e o matagal começava a tomar conta dos
campos outra vez.
Cecília
tornou-se uma mulher calada. Quedou-se num diálogo lacônico, onde
pouco falava. E ausentou-se daquele rosto radiante qualquer traço de
sorriso espontâneo. Isolando-se, pouco conversava até mesmo com o
próprio marido que todo final de semana insistia em levá-la à casa
do sogro nas terras vizinhas, para ver se distraía um pouco. Tratava
bem o marido, mas isso era tudo que podia dispensar ao pobre coitado.
E
assim se arrastaram os anos na vida de Cecília, que vez por outra,
lembrando-se do antigo amor, deixava que rolasse no rosto uma lágrima
de saudades escondida.
Alécio
e Marina envelheciam na cidade de Acemira, enquanto seus filhos se
casavam e se arranjavam com serviço nas fazendas locais e até mesmo
nas cidades vizinhas. Marina reclamava que seus filhos se espalharam,
mas o que mais sentia era a ausência de Maurício, o filho pródigo
que saiu de casa com tanto pesar no coração e nunca mais voltou. Às
vezes chegava-lhe uma carta cuja data denunciava ter sido escrita há
mais de trinta dias, a qual ela respondia prontamente, mesmo sabendo
o tempo que levava cada carta para chegar ao seu destino, naquela
época. Mas mesmo essa carta do filho, pouca coisa dizia a seu
respeito: “Mamãe e Papai, tudo está bem. Estou trabalhando e
vivendo. Porém, não sobra dinheiro para estudar e nem viajar. Moro
numa cidadezinha do interior, próximo à divisa de Minas com o Rio
de Janeiro e tenho por companhia um amigo que considero como um
irmão, pois tem sido muito bom para mim. Tenho saudades de todos
vocês. Mando um abraço também para Adriana e aos meus irmãos.”
Adriana
– a irmã mais próxima de Maurício, nunca mais voltara à casa de
Irene, e nem viu também sua amiga Cecília desde aquele fatídico
dia, quando foi testemunha do beijo que houve entre ela e Heitor. E
assim se arrastava também o tempo para a família de Alécio.
Em
Jequitibá da Mata, Maurício dividia com o amigo o espaço do
casebre e as despesas de casa. Tornaram-se amigo- irmãos – quase
que irmãos de sangue, tal era a relação de amizade entre os dois.
Progredia na arte de desenhar e pintar, a qual praticava todos os
dias depois do trabalho no Empório. Muito talentoso, assimilou e
aperfeiçoou tudo que Divino lhe ensinara.
Divino
animou-se outra vez em sua pequena cidade natal. Pouco tempo depois
de chegarem à cidade, num Domingo após a Missa, diante da praça da
Igreja reencontrara Anita, amiga desde a infância, quando naquela
época foram vizinhos. Pouco antes de morrer a mãe de Divino, a
família de Anita mudara-se para a zona rural da cidade e Divino
nunca mais a viu. Da satisfação do reencontro à paixão que
sentiram um pelo outro foi apenas um pulo. Iniciaram um romance e
Divino agora pensava em se casar.
Maurício
não. O rapaz preferiu a vida solteira e dizia sempre ao amigo:
“Casamento de verdade precisa unir o corpo e a alma. Não deve ser
apenas um papel assinado e uma bênção do Padre. Sem paixão, eu
não arranjo casamento de jeito nenhum”.
Na
opinião de Maurício, a autorização legal da Igreja para que duas
pessoas se unam, era só uma peça do complexo mecanismo de um
casamento. Para existir um casamento verdadeiro – pensava ele –
precisa que, além do corpo, os dois corações também se casem. Se
as coisas não forem assim, a união é como uma árvore oca que está
sustentada apenas pela própria casca. Para as pessoas que olham de
longe, uma árvore oca tem a aparência normal das outras árvores,
mas está vazia por dentro. É uma árvore oca, que bem ou mal
prossegue viva alimentada pela casca (a casca na verdade é o
compromisso que foi assumido na cerimônia do casamento diante da
sociedade, e depois a responsabilidade com os filhos). Um casamento
assim está desprovido de sustentação interna, que é aquele amor
verdadeiro que tem de existir entre os dois, e que resiste às
intempéries da vida. É um casamento que está desprovido daquele
amor que o tempo vai transformar em admiração mútua e respeito
sincero. Sendo como uma árvore oca, passarão a vida toda torcendo
para que um vendaval mais forte não a quebre ao meio, o que, aliás,
é um grande risco. Para Maurício, o que adiantava ter uma aliança
no dedo e uma mulher no leito, se o pensamento do infeliz estaria
sempre longe dali? Pois, na sua opinião, a união dos dois corações
já tinha acontecido há muito tempo, na época que ainda namorava
Cecília e pretendeu noivar com ela – aquele noivado frustrado, que
nem chegou a se realizar!
Certo
ou errado, era assim que pensava Maurício, que nunca se casou em
toda sua vida.
A observação, porém, não se aplicava a Divino, que nunca amara
ninguém antes de Anita. Tendo a sorte de encontrar seu amor
verdadeiro e não havendo nada que impedisse o seu casamento, Divino
passava agora por uma fase muito feliz.
Porém
ao Maurício, sua única e inocente distração consistia em
trabalhar e desenhar aquarelas.
Desenhar, desenhar, desenhar... Com o tempo livre que lhe sobrava aos
finais de semana, aplicou-se na arte da aquarela aprimorando cada vez
mais. Gostava de desenhar paisagens, era detalhista e um bom
observador.
Desenhou as ruas de Jequitibá da Mata, a Igreja e sua Praça, a
feira aos Domingos e até mesmo algumas paisagens retratando
Imperador, a cidade vizinha. E às vezes desenhava também paisagens
distantes onde incluía o desenho enigmático de um cactus, algumas
terras e montanhas longínquas, lugares diferentes da topografia de
Jequitibá da Mata. Desenhava fazendas e casebres que eram
desconhecidos por ali. Em algumas dessas pinturas às vezes pintava
também uma mulher jovem, que um observador atento saberia reconhecer
como sendo a mesma em todas as pinturas, pois o rosto era sempre o
mesmo. Ela aparecia em meio à paisagem de algum lugar longe dali,
entre fazendas, pomares e montanhas desconhecidas naquela região de
Jequitibá da Mata – E sempre era a mesma mulher, o mesmo rosto,
mudava apenas a roupa. Mulher e cactus, foram dois mistérios em suas
pinturas os quais Maurício nunca explicou o significado a seu amigo
Divino. Pintava, porém não vendia seus trabalhos. Levava-os ao
Empório, deixando em exposição. E a maioria era doado às pessoas
que apareciam no Empório para comprar alguma coisa. Todos em
Jequitibá da Mata gostavam de Maurício e admiravam suas obras.
E
Maurício continuou solteiro, levando uma vida de celibatário...
O Padre chegou a oferecer-lhe alguns estudos, propondo encaminhá-lo
a um Seminário caso o rapaz quisesse tornar-se padre, já que o moço
se afastou de qualquer contato com as meninas da região... porém,
Maurício não aceitou. Agradeceu a oferta, mas se negou a abandonar
aquela cidadezinha, trocando-a pelo mundo isolado de um Seminário.
Descartou o convite, dizendo que não tinha tal inclinação.
Rejeitar o casamento não significava desprezo pelas mulheres.
Maurício tinha os mesmos desejos de qualquer outro homem, mas
rejeitava absolutamente a ideia de arranjar uma namorada para se
casar.
Porém, as pessoas não
compreendiam Maurício: O rapaz não queria se tornar um Padre, mas
também jamais se envolveu com as mulheres de Jequitibá da Mata...
Parecia um homem saudável e além disso causava interesse nas
mulheres solteiras da cidade (inclusive em algumas não tão
solteiras assim)... Mas o moço continuava indiferente a elas.
Afinal, o que teria acontecido de tão grave ao rapaz? O que teria
destruído seus sentimentos, arrancado seu coração do peito e
plantado uma pedra tão dura em seu lugar?
Um mistério intrigante e ao mesmo tempo sinistro envolvia a vida de
Maurício – era um homem ainda jovem, cada vez mais admirado pela
sua arte, porém cada vez menos compreendido pelas pessoas. Ninguém
jamais discerniu que Maurício, na verdade, perdera a “chave” de
seu próprio coração, quando a entregou à Cecília. Quando ainda
namoravam, no dia que Maurício jurou pertencer somente a ela, seu
coração selou aquelas palavras para sempre. Com o afastamento que
houve entre os dois, Maurício passou a viver numa espécie de “Limbo
Sentimental”: Ou seja, vivia às margens do sentimento. Sem
possibilidades de um reencontro com Cecília, e incapaz de amar outra
mulher, Maurício preferiu o celibato.