Capítulo 26: "O Tempo"




Cecília agora morava na Sede com Heitor, onde outrora viveu ao lado do avô e tia Amélia. Na adolescência, Cecília sempre morou ali.
Primeiro morreu a tia. E tio Cássio, o esposo dela, desencantado mudara-se outra vez para Curuajubá, onde ainda viviam seus familiares. Desconsolado e não suportando a ausência de Amélia, sentindo-se culpado por não tê-la deixado na cidade aos cuidados médicos em seus últimos dias de vida, Cássio sentindo-se atormentado, acabou, por fim, sumindo no mundo sem deixar rastros e nem notícias.
Após a morte da filha, Getúlio adoecera de tristeza e foi levado para a casa de seus filhos por algum tempo. Cecília voltou à casa de seus pais, e o casarão da Sede ficou fechado. Quando o avô melhorou e retornou à Sede, Cecília também voltou para fazer-lhe companhia.
Depois morreu o avô, e a Sede tornou a ficar fechada.
Foi a época em que Maurício namorou Cecília.
Quando Cecília se casou, foi morar provisoriamente nas terras que pertenciam à família de Heitor. Durante esse tempo a Sede ainda não tinha sido dividida entre os filhos de Getúlio – apenas as terras ao redor. Narciso então vendeu sua parte da herança e mudou-se para Curuajubá, permanecendo a Sede fechada até que trouxeram Narciso de volta, quando ficara inválido.
Agora que seu tio Narciso também morrera, e a viúva mudou-se para casa de seus parentes, Cecília finalmente se estabelecera na Sede. Só que agora, faltando-lhe o avô e tia Amélia, fazia-lhe companhia o marido Heitor.
Seus tios em dificuldades financeiras mudaram-se pouco a pouco para a cidade grande. A terra era vendida aos poucos à Companhia de Construção, restando apenas as terras de Irene, sua mãe, e a própria Sede que ainda pertencia a todos irmãos.
A Capela no alto da colina em frente à Sede resistia lamentavelmente com suas paredes escurecidas pelo fogo, nuas e sem telhado. A vegetação já invadia o seu pavilhão. Ninguém se animou a reformar o prédio. Reformar por quê? A felicidade há tempos abandonou as terras. Não haveria mais festas nem mutirões. O povo esvaiu-se para a cidade e o matagal começava a tomar conta dos campos outra vez.
Cecília tornou-se uma mulher calada. Quedou-se num diálogo lacônico, onde pouco falava. E ausentou-se daquele rosto radiante qualquer traço de sorriso espontâneo. Isolando-se, pouco conversava até mesmo com o próprio marido que todo final de semana insistia em levá-la à casa do sogro nas terras vizinhas, para ver se distraía um pouco. Tratava bem o marido, mas isso era tudo que podia dispensar ao pobre coitado.
E assim se arrastaram os anos na vida de Cecília, que vez por outra, lembrando-se do antigo amor, deixava que rolasse no rosto uma lágrima de saudades escondida.
Alécio e Marina envelheciam na cidade de Acemira, enquanto seus filhos se casavam e se arranjavam com serviço nas fazendas locais e até mesmo nas cidades vizinhas. Marina reclamava que seus filhos se espalharam, mas o que mais sentia era a ausência de Maurício, o filho pródigo que saiu de casa com tanto pesar no coração e nunca mais voltou. Às vezes chegava-lhe uma carta cuja data denunciava ter sido escrita há mais de trinta dias, a qual ela respondia prontamente, mesmo sabendo o tempo que levava cada carta para chegar ao seu destino, naquela época. Mas mesmo essa carta do filho, pouca coisa dizia a seu respeito: “Mamãe e Papai, tudo está bem. Estou trabalhando e vivendo. Porém, não sobra dinheiro para estudar e nem viajar. Moro numa cidadezinha do interior, próximo à divisa de Minas com o Rio de Janeiro e tenho por companhia um amigo que considero como um irmão, pois tem sido muito bom para mim. Tenho saudades de todos vocês. Mando um abraço também para Adriana e aos meus irmãos.”
Adriana – a irmã mais próxima de Maurício, nunca mais voltara à casa de Irene, e nem viu também sua amiga Cecília desde aquele fatídico dia, quando foi testemunha do beijo que houve entre ela e Heitor. E assim se arrastava também o tempo para a família de Alécio.


Em Jequitibá da Mata, Maurício dividia com o amigo o espaço do casebre e as despesas de casa. Tornaram-se amigo- irmãos – quase que irmãos de sangue, tal era a relação de amizade entre os dois. Progredia na arte de desenhar e pintar, a qual praticava todos os dias depois do trabalho no Empório. Muito talentoso, assimilou e aperfeiçoou tudo que Divino lhe ensinara.
Divino animou-se outra vez em sua pequena cidade natal. Pouco tempo depois de chegarem à cidade, num Domingo após a Missa, diante da praça da Igreja reencontrara Anita, amiga desde a infância, quando naquela época foram vizinhos. Pouco antes de morrer a mãe de Divino, a família de Anita mudara-se para a zona rural da cidade e Divino nunca mais a viu. Da satisfação do reencontro à paixão que sentiram um pelo outro foi apenas um pulo. Iniciaram um romance e Divino agora pensava em se casar.
Maurício não. O rapaz preferiu a vida solteira e dizia sempre ao amigo: “Casamento de verdade precisa unir o corpo e a alma. Não deve ser apenas um papel assinado e uma bênção do Padre. Sem paixão, eu não arranjo casamento de jeito nenhum”.
Na opinião de Maurício, a autorização legal da Igreja para que duas pessoas se unam, era só uma peça do complexo mecanismo de um casamento. Para existir um casamento verdadeiro – pensava ele – precisa que, além do corpo, os dois corações também se casem. Se as coisas não forem assim, a união é como uma árvore oca que está sustentada apenas pela própria casca. Para as pessoas que olham de longe, uma árvore oca tem a aparência normal das outras árvores, mas está vazia por dentro. É uma árvore oca, que bem ou mal prossegue viva alimentada pela casca (a casca na verdade é o compromisso que foi assumido na cerimônia do casamento diante da sociedade, e depois a responsabilidade com os filhos). Um casamento assim está desprovido de sustentação interna, que é aquele amor verdadeiro que tem de existir entre os dois, e que resiste às intempéries da vida. É um casamento que está desprovido daquele amor que o tempo vai transformar em admiração mútua e respeito sincero. Sendo como uma árvore oca, passarão a vida toda torcendo para que um vendaval mais forte não a quebre ao meio, o que, aliás, é um grande risco. Para Maurício, o que adiantava ter uma aliança no dedo e uma mulher no leito, se o pensamento do infeliz estaria sempre longe dali? Pois, na sua opinião, a união dos dois corações já tinha acontecido há muito tempo, na época que ainda namorava Cecília e pretendeu noivar com ela – aquele noivado frustrado, que nem chegou a se realizar!
Certo ou errado, era assim que pensava Maurício, que nunca se casou em toda sua vida.
A observação, porém, não se aplicava a Divino, que nunca amara ninguém antes de Anita. Tendo a sorte de encontrar seu amor verdadeiro e não havendo nada que impedisse o seu casamento, Divino passava agora por uma fase muito feliz.
Porém ao Maurício, sua única e inocente distração consistia em trabalhar e desenhar aquarelas.
Desenhar, desenhar, desenhar... Com o tempo livre que lhe sobrava aos finais de semana, aplicou-se na arte da aquarela aprimorando cada vez mais. Gostava de desenhar paisagens, era detalhista e um bom observador.
Desenhou as ruas de Jequitibá da Mata, a Igreja e sua Praça, a feira aos Domingos e até mesmo algumas paisagens retratando Imperador, a cidade vizinha. E às vezes desenhava também paisagens distantes onde incluía o desenho enigmático de um cactus, algumas terras e montanhas longínquas, lugares diferentes da topografia de Jequitibá da Mata. Desenhava fazendas e casebres que eram desconhecidos por ali. Em algumas dessas pinturas às vezes pintava também uma mulher jovem, que um observador atento saberia reconhecer como sendo a mesma em todas as pinturas, pois o rosto era sempre o mesmo. Ela aparecia em meio à paisagem de algum lugar longe dali, entre fazendas, pomares e montanhas desconhecidas naquela região de Jequitibá da Mata – E sempre era a mesma mulher, o mesmo rosto, mudava apenas a roupa. Mulher e cactus, foram dois mistérios em suas pinturas os quais Maurício nunca explicou o significado a seu amigo Divino. Pintava, porém não vendia seus trabalhos. Levava-os ao Empório, deixando em exposição. E a maioria era doado às pessoas que apareciam no Empório para comprar alguma coisa. Todos em Jequitibá da Mata gostavam de Maurício e admiravam suas obras.
E Maurício continuou solteiro, levando uma vida de celibatário...


O Padre chegou a oferecer-lhe alguns estudos, propondo encaminhá-lo a um Seminário caso o rapaz quisesse tornar-se padre, já que o moço se afastou de qualquer contato com as meninas da região... porém, Maurício não aceitou. Agradeceu a oferta, mas se negou a abandonar aquela cidadezinha, trocando-a pelo mundo isolado de um Seminário. Descartou o convite, dizendo que não tinha tal inclinação. Rejeitar o casamento não significava desprezo pelas mulheres. Maurício tinha os mesmos desejos de qualquer outro homem, mas rejeitava absolutamente a ideia de arranjar uma namorada para se casar.
Porém, as pessoas não compreendiam Maurício: O rapaz não queria se tornar um Padre, mas também jamais se envolveu com as mulheres de Jequitibá da Mata... Parecia um homem saudável e além disso causava interesse nas mulheres solteiras da cidade (inclusive em algumas não tão solteiras assim)... Mas o moço continuava indiferente a elas. Afinal, o que teria acontecido de tão grave ao rapaz? O que teria destruído seus sentimentos, arrancado seu coração do peito e plantado uma pedra tão dura em seu lugar?
Um mistério intrigante e ao mesmo tempo sinistro envolvia a vida de Maurício – era um homem ainda jovem, cada vez mais admirado pela sua arte, porém cada vez menos compreendido pelas pessoas. Ninguém jamais discerniu que Maurício, na verdade, perdera a “chave” de seu próprio coração, quando a entregou à Cecília. Quando ainda namoravam, no dia que Maurício jurou pertencer somente a ela, seu coração selou aquelas palavras para sempre. Com o afastamento que houve entre os dois, Maurício passou a viver numa espécie de “Limbo Sentimental”: Ou seja, vivia às margens do sentimento. Sem possibilidades de um reencontro com Cecília, e incapaz de amar outra mulher, Maurício preferiu o celibato.