Capítulo 27: Costuras do Destino"




A área da zona rural – onde estavam as terras de Getúlio – aos poucos se esvaziava. A população diminuía a cada ano, pois o povo começou a mudar-se para a cidade, enquanto outros morriam de velhice, de doenças ou acidentes.
Cecília nos últimos anos viu e ouviu muita revoada de pássaros naqueles campos e serrados da Sede, agora desertos. A princípio assustava-se, lembrando das lendas que se contavam por aí, achando que alguém próximo estava morrendo, como aconteceu no dia da morte de Amélia. Mas com o tempo, acostumou-se com o fenômeno e até isso não lhe chamava mais a atenção.
Heitor andava preocupado com sua saúde. Propôs à Cecília uma viagem, onde pudesse espairecer um pouco, respirar outros ares, conhecer novas pessoas, adquirir novas lembranças... mas ir para onde?
Simples, pensou Heitor: levaria Cecília a uma viagem até sua terra natal, na divisa de Minas com o Rio de Janeiro. É um lugar onde ele nunca mais foi, desde que seus pais resolveram se mudar para o interior de Minas – onde vieram possuir as terras de herança deixadas pelo avô, e onde ele conheceu Cecília.
A viagem – pensou Heitor – faria bem aos dois. Para ele seria bom e nostálgico, pois sentia saudades do lugar. E para Cecília faria bem, distraindo-a um pouco, quem sabe melhorando seu humor.
Decidiu então convencer Cecília de empreender tal viagem. Em Curuajubá, tomariam um ônibus. Depois, embarcariam num trem. A viagem seria demorada e cansativa. O trem não desembarcava os passageiros em sua cidade natal, mas a Estação ficava bem próxima, numa cidade vizinha, chamada Imperador – uma homenagem feita ao Imperador Pedro II por ter aberto os caminhos da Ferrovia meio século antes.
Seria, de fato, uma longa e cansativa viagem, onde, com certeza, deveriam descer em muitas Estações, comprar novas passagens, talvez até dormir nos bancos dos trens, quando eles fizessem a viagem noturna.
Mas Cecília conheceria novos lugares, e quem sabe assim se animaria um pouco mais, retornando à Fazenda mais animada e feliz.
Cecília também imaginou que seria bom a ela, esta viagem. Afinal, o isolamento naquelas terras abandonadas, a mesmice de uma união sem amor e as lembranças de um passado com tantos sonhos inconclusos estavam matando-a aos poucos. Queria respirar novos ares, distrair a mente, ver coisas novas, ainda que fosse por poucos dias apenas.
Tomada a decisão, partiram numa Segunda-feira bem cedo em direção a Curuajubá, onde embarcaram num ônibus que os levou até a cidade mais próxima em que houvesse uma Estação de Trens.


No século anterior, mais precisamente entre os anos de 1850 a 1900, e se estendendo ainda até 1920, o País conheceu um desenvolvimento acelerado e contínuo da malha ferroviária, que crescia “a todo vapor” (as locomotivas da época eram tocadas por caldeiras de vapor d’água). As três últimas décadas do século XIX foi uma época fecunda ao Estado de Minas Gerais, porque vários projetos se deram início com a aprovação do Imperador D. Pedro II, e assim começou a desenhar no mapa a malha ferroviária do Sul de Minas, como, por exemplo, a EFL “Estrada de Ferro Leopoldina” e a EFOM “Estrada de Ferro do Oeste de Minas”, que ligaram diversas cidades entre si através de seus trilhos, que por conseguinte, acabaram por se ligar também com a Central do Brasil, que era a linha ferroviária mais importante do Brasil.
Com alguns embarques e desembarques, a partir do Sul de Minas tornou-se possível chegar até a Capital do País – que na época era o Rio de Janeiro – percorrendo longos trechos do caminho numa viagem de trens.
Já nas primeiras décadas de 1900 o tráfego ferroviário estava bem desenvolvido, com a construção de graciosas Estações às margens da Ferrovia, trazendo desenvolvimento às cidades por onde os trilhos passavam. Em alguns lugares, a própria arquitetura das Estações eram verdadeiras obras de arte.
Uma Locomotiva – talvez uma “Rogers Work - 1871”, ou quem sabe uma “Baldwin - 1877” – importada ainda no Governo do Imperador Pedro II, resfolegava impaciente, parada ao lado da Estação. A caldeira estava bem aquecida e o “Cavalo de Aço” respirava sofregamente, soltando de suas válvulas de escape rápidos jatos de vapor em direção aos trilhos, como se as válvulas fossem narinas.
CAVALO de AÇO foi um apelido que índios da América do Norte deram às Locomotivas, justamente por se assemelharem (em sua fértil imaginação) a um cavalo de raça boa, um puro-sangue vigoroso e arisco, que furioso bate as patas, e abrindo as narinas respira ruidosamente, impaciente pela hora em que vai poder galopar. Os possantes pistons em pleno funcionamento dessas Locomotivas marcavam o compasso rápido, que empurrados pela biela moviam as rodas de tração celeremente sobre os trilhos, singrando o enorme deserto do Oeste Americano, puxando uma quantidade interminável de vagões. E apoiando a cabeça sobre os trilhos e sentindo no ouvido a vibração, os nativos podiam dizer com precisão a que distância se encontrava a Locomotiva e quanto tempo levava para chegar. Em breve se avistava a coluna negra de fumaça, cuspida com ímpeto pela chaminé. O apito aliviava a pressão da caldeira e também alertava os animais e as pessoas para que se afastassem dos trilhos.
No Brasil o “Cavalo de Aço” chegou tardiamente, quando muitas nações indígenas já tinham sido dizimadas, e infelizmente poucos tupiniquins tiveram a sorte de admirar o maravilhoso e gigantesco veículo singrando nossos sertões e cerrados.
Mas aquela Locomotiva que esperava Cecília na Estação de Trens era linda, de um negro luzidio com letras de metal dourado em alto-relevo, grudadas nas laterais da máquina. Possuía um rodado todo vermelho, de um tom encarnado vivo. E puxava muitos vagões.
Comprando as duas passagens, Heitor e Cecília embarcaram tomando seus lugares num vagão de Segunda Classe. Cecília estava apreensiva: Nunca em toda sua vida tinha feito uma viagem assim. Nem imaginava que algum dia haveria de fazer. O auxiliar de maquinista passou, conferindo e ticando os bilhetes. Em seguida houve um tremor, que foi sentido por todos passageiros. Numa rápida sequência, a Locomotiva despejou um abundante jato de vapor sobre os trilhos, os pistões e os braços que movimentam suas rodas começaram a se mover e uma enorme coluna de fumaça negra escapou pela chaminé. Rangindo as conexões que ligam um vagão a outro e com um leve arranco, o imenso Cavalo de Aço deslocou-se pesadamente nos trilhos, a princípio lentamente, mas alcançando velocidade progressiva a cada metro percorrido. Vagão por vagão foi puxado pela máquina, que resfolegava. Nesses vagões – cada grupo de vagões em seu setor específico, a máquina levava carga humana, animais e produtos agrícolas. Era o principal meio de transportes da época. E deslizando nos trilhos, a Locomotiva se afastou da Estação. Seu apito foi ouvido a longa distância.
Nas linhas do trem, o Destino costurava de novo as voltas da vida.
Heitor pretendera chegar na cidade natal e alugar um quarto. Há muito tempo quando seus pais se mudaram dali, venderam a propriedade que possuíam na cidade. Mas Heitor lembrava que no final da rua principal, no sentido ao norte da cidade onde as ruas em radial morriam ao pé do mato ainda virgem, existia uma estradinha que levava a uma pequena pensão. Essa pensão acolhia seus hóspedes a preços módicos.
Na verdade era uma grande e antiga casa de chácara, com um salão central, possuindo ainda uma enorme cozinha e muitos quartos, que seus donos transformaram em pensão. O serviço de hotelaria, como se pode imaginar, era insuficiente para manter todo aquele estabelecimento, pois a cidadezinha era esquecida no meio do mato. Então seus donos sempre complementaram a renda com o plantio de verduras e legumes, com os quais abasteciam a região.
Era ali que Heitor pretendia levar Cecília para descansar. Seria por alguns dias apenas, afinal, a Sede não poderia ficar muito tempo fechada: havia colheitas e lavouras para cuidar, além do gado que sobrou.
E enquanto Cecília descansava, Heitor haveria de percorrer a região em busca das antigas amizades, os colegas da Escola e da adolescência, ver quem ainda vivia, ver quem ainda estava por lá. A ausência de Heitor foi muito longa, e ele sentia saudades daquele lugar.
Finalmente, Heitor e Cecília desembarcaram na Estação de Trens que passa por Imperador, a cidade vizinha de Jequitibá da Mata.


Em Jequitibá da Mata, Maurício se adaptava cada vez mais à cidade e nunca retornou a São Paulo, nem se lembrava do Mercado Municipal, onde trabalhou por tanto tempo. De vez em quando mandava cartas à sua mãe, que apesar de a demora para chegar as correspondências, eram respondidas prontamente. Porém sendo a vida pacata, as notícias eram sempre as mesmas, de ambos os lados, exceto as frequentes reclamações sobre a saúde dos pais, que aumentava a cada carta que chegava, denunciando a velhice e a decrepitude da vida.
Divino resolvera se casar. Tendo já marcado o dia do casamento com Anita, o rapaz agora se preocupava com a situação do amigo. O casebre onde viviam era bem pequeno, mas jamais abandonaria seu amigo-irmão na rua. Até o momento, os dois sobreviviam do pequeno salário que recebiam, dividindo as despesas da casa. E Divino sabia muito bem das dificuldades do amigo. Então resolveu, com ajuda de Maurício, erguer uma edícula no fundo do quintal. Se não levantassem aquela edícula agora, a partir do dia em que Divino se casasse Maurício não teria mais lugar onde morar. Para lá transportaram umas poucas mobílias. A saber: uma cama de solteiro, uma mesa com uma cadeira, e um armário que Maurício dividiu ao meio, reservando espaço onde colocou as roupas e seu material de pintura, que incluía papel, pincéis, tintas e um cavalete. Ficou combinado que Maurício faria as refeições na casa de Divino, pagando-lhe uma pequena importância mensal, como ajuda de custos – e Anita cozinharia para os três.
Divino admirava como Maurício desenvolvia bem a técnica de aquarela. Suplantara seu próprio mestre!
__Você desenhou quase toda a cidade, Maurício! E que perfeição nos desenhos! Que dom maravilhoso você tem! Poderia vender suas pinturas, assim tua renda aumentaria. Por que não faz isso? – perguntou Divino.
Maurício respondeu:
__Até poderia vender, se achasse quem as comprasse... Todo mundo acha bonito, todos querem ter um, mas nessa cidade onde a renda mensal é tão apertada, quem disporia de um tostão a mais para gastar com pinturas? Além disso, as pinturas nunca são perfeitas. A cobrança gera um compromisso de aperfeiçoar a obra, e o aperfeiçoamento é uma habilidade que não tenho condições de alcançar.
Maurício nunca acreditara em si mesmo. Sempre menosprezou sua própria capacidade em tudo o que fez, e foi assim desde criança, situação que piorou ainda mais quando perdeu a amada para o seu concorrente direto.
Até mesmo enquanto namorava Cecília, Maurício se achava incapaz de disputar a moça com os rapazes da região: Fosse o motivo de ser um “rapaz de fora”, ou fosse o motivo de sua compleição física, de corpo magérrimo, fosse talvez a grande pobreza de sua família, ou, seja lá o que fosse, Maurício considerava-se em desvantagem e se sentia um rapaz inferior aos outros rapazes, os filhos dos fazendeiros da região, e que pela tradição deveriam ser aqueles que disputariam a mão da moça. E sempre considerou aquele namoro uma grande sorte para si, não compreendendo como fora capaz de o coração de Cecília tê-lo escolhido em meio a tantas opções melhores que ele, naquele lugar...
Agora, outra vez, Maurício manifestava a falta de confiança em sua própria capacidade, ainda que agora o assunto fosse outro, e mesmo depois de tantos anos passados... Maurício era a imagem perfeita de um perdedor nato.
Divino deu-lhe uma ideia:
__Você sempre vai a Imperador, na Estação de Trens buscar os mantimentos e as encomendas do Empório. Certamente conhece bem os funcionários da Estação e tem com eles amizade. Coloque moldura em alguns de seus trabalhos e deixa-os lá, para venda, sem compromisso!
Maurício pensou: “realmente, sempre faço as pinturas por prazer e doo meus trabalhos a qualquer um que os desejam, e nunca cobrei nada por eles. Se vender, tenho uns tostões a mais. E se não vender, eu nada perco, visto que as pessoas levarão para casa do mesmo jeito, já que sempre as doei e nunca cobrei por elas. E se vender, ainda que seja por um preço mínimo, tiro ao menos o custo das molduras. Nada tenho a perder!”
Então Maurício decidiu que na próxima viagem até Imperador levaria alguns dos seus trabalhos. Deixaria em consignação com João Batista, um dos funcionários da Estação, que vendia bilhetes de passagem. Estipularia um preço mínimo e deixaria que fosse negociada livremente. A diferença de valores seria a comissão do vendedor. Dentre as pinturas escolheu as melhores, porém, não levou a mais perfeita, aquela que retratava a entrada de uma fazenda, com a figura da moça ao lado de um cactus gigante. Assinou-as apenas com o primeiro nome, ao pé da folha e mandou emoldurar.
E Maurício começou vender bem suas aquarelas! Já se completava seis meses desde que levou a primeira arte até Imperador, e toda semana levava duas ou três da sua coleção. João Batista sempre vendia todas.
Porém, dentre os lugares de Jequitibá da Mata, havia um que ele nunca tinha retratado: A chácara que havia na estradinha, na periferia da cidade; aquela chácara que funcionava como pensão e ainda vendia legumes e verduras, onde Divino trabalhava como hortelão.
Algumas aquarelas eram rápidas de se concluir. Principalmente aquelas onde Maurício retratava paisagens que ele conhecera bem e já tinha o cenário de cor, gravado na memória. Por exemplo, as paisagens onde Maurício passou a infância e a adolescência, as terras de Getúlio e a cidade de Acemira eram-lhe familiares e cada detalhe da região permanecia registrado em sua memória.
Porém, as novas paisagens demandavam um certo tempo: na conclusão de um trabalho, Maurício recorria ao local por várias vezes e durante vários dias, observando a paisagem por diversos ângulos, pintando-a, corrigindo-a, até que se dava por satisfeito e sua obra fosse acabada.
Maurício resolveu desenhar a chácara, que era assim: Uma enorme varanda e uma dezena de janelas na parede da frente, com a escadaria larga de três degraus que desce desde a varanda até o jardim de árvores frondosas à sua frente, e que é percorrido por um caprichoso caminho pavimentado de pedras alvas, que ligava a chácara até a estrada. A mulher misteriosa que Maurício desenhava em algumas aquarelas sempre foi desenhada em lugares com paisagens diferentes, lugares longe de Jequitibá da Mata. Mas excepcionalmente dessa vez, Maurício resolveu mudar... E imaginou colocar diante da imagem do casarão da chácara, à sua direita em primeiro plano, a figura daquela mulher...


Heitor e Cecília esperavam na Estação pelo carroção fechado que levava os passageiros aos pontos mais distantes da cidade. Imperador era uma cidade maior que Jequitibá da Mata. E com sua área urbana já bem desenvolvida, foi necessário implantar o serviço de táxi, em carroções fechados puxados por um ou dois pares de cavalos. De manhã e à tarde esses carroções estacionavam ao lado da Estação Ferroviária e aguardavam os passageiros, cuja lotação, que dependia também do peso da bagagem, variava de quatro a seis pessoas de cada vez. Os carroções, além de circular dentro da cidade, também podiam levar seus passageiros à Jequitibá da Mata, numa distância percorrida em quarenta e cinco minutos de viagem.
Enquanto Heitor atravessava a linha do trem alcançando o outro lado da rua que passa paralela, à procura de uma “Botica” (farmácia) e de algum remédio para enxaqueca, Cecília que sempre foi muito curiosa, andava para lá e para cá no saguão da Estação, observando atentamente as pessoas e aquele lugar tão diferente das terras onde nasceu e vivia, quando de repente algo lhe chamou atenção:
Dentro do pavilhão coberto, onde alguns bancos de madeira estavam dispostos em filas onde os passageiros se assentavam e aguardavam o carroção ou o próximo trem, haviam também as cabines onde se vendia bilhetes de viagem. E dentro de uma delas, pendurado à parede, Cecília viu um quadro em aquarela representando uma bela paisagem, e que lhe deu a impressão de ser muito familiar. Aproximando-se da cabine, perguntou ao funcionário:
__Moço, onde fica esse lugar retratado no quadro da parede?
O funcionário, que era João Batista, lhe respondeu:
__Não sei dizer onde é. Não conheço nenhum lugar na região que se pareça com a paisagem retratada no quadro. Um jovem senhor que mora em Jequitibá da Mata sempre vem aqui a trabalho, e, quando vem, deixa comigo alguns desses quadros para vender. Alguns retratam lugares da região, que eu conheço bem. Outros, porém, retratam lugares que nunca vi. Talvez seja a imaginação do pintor, ou talvez seja algum lugar que ele conheceu, longe daqui. E os quadros vendem bem, porque são bonitos, e de todos que trouxe até agora, este é o último que restou.
O quadro retratava montanhas e plantações vistas de um lugar bem alto, mostrando ainda os telhados de um Arraial a meia distância e ao longe um belo colar de águas circulando uma pequenina cidade, da qual se podia ver somente a silhueta, com destaque para a torre da Igreja, sob o fundo azul do céu recortado pelo espigão de terras.
Cecília imediatamente sentiu que conhecia o lugar retratado! Nunca vira tal paisagem pessoalmente. Não naquela perspectiva, mas muitas vezes a imaginou, quando Maurício lhe falava do mirante natural que havia por sobre as montanhas, e de tudo que podia se ver dali daquela altura, no cume da montanha onde Leandro uma vez o levou – naquelas ruínas de pedras brutas, onde uma vez o moço revelou o desejo de fazer uma casa para ele e Cecília morarem.
Maurício era bom observador e nada lhe escapava dos detalhes. Em um daqueles finais de semana, sentado junto a ela no sofá da sala, ao contar da paisagem maravilhosa que se avistava lá do alto, Cecília com a cabeça reclinada ao ombro do namorado fechou os olhos para imaginar, e foi como se realmente estivesse vendo tudo aquilo que o namorado lhe contava. Incrível! Como a imagem, que lhe veio à mente naquele dia de um passado tão distante, se parecia com o quadro em aquarela, que ela via naquele momento pendurado na parede de uma Estação de Trens, numa cidade tão longe de sua casa!
As lembranças afloraram-lhe à mente, muito vivas, eram lembranças de alguém que há muito tempo foi embora, deixando em seu lugar um espaço vazio e que nunca foi preenchido, dentro do peito. Foram lembranças daquele dia em que ela, receosa de que a “vida fácil” da cidade contaminasse o moço, o fez jurar que pertenceria somente a ela e a ninguém mais. E uma saudade dolorosa roeu-lhe o coração naquele momento, causando-lhe vontade de chorar.
__Vai querer comprar o quadro, senhora? Faço-lhe por um preço bem baratinho. Leve-o de lembrança para casa, quando for embora de Imperador! – falou João Batista, oferecendo-lhe o quadro.
Fosse imaginação sua ou não, Cecília sentiu que o quadro estava ali de propósito, como se alguém ou alguma inteligência invisível e poderosa o tivesse colocado lá justamente para que ela o visse quando chegasse na Estação. E aquele quadro estava sendo oferecido a ela por um desconhecido! Porém carregava na assinatura um nome que ela nunca esqueceu: “Maurício”. Não havia sobrenome, não havia nenhuma outra pista que revelasse a identidade do autor, apenas o primeiro nome, mas naquele momento Cecília teve certeza de que conhecia o artista.
Cecília resolveu comprar. Pediu ao moço que embrulhasse com muito cuidado, e guardou-o na mala, sob as roupas.
Por fim o carroção chegou à Estação bem na hora que Heitor retornava da farmácia, e todos embarcaram, sendo Jequitibá da Mata seu último destino, onde deixaria Heitor e Cecília diante do grande casarão da Chácara. Já começava anoitecer.

Maurício há quatro dias seguidos – após seu horário de serviço – subia a pé até o final da rua principal, seguindo depois pela estradinha secundária, para retratar a Chácara em pinceladas de aquarela. O dia seguinte seria o último, onde pretendia desenhar os últimos detalhes e, por fim, completar o quadro com a figura da mulher. Era o melhor quadro que já produzira em sua vida, além daquele outro que fizera tempos atrás, quando retratou a porteira da Sede, o cactus e a mulher ao lado. Não sabia Maurício se aquele cactus ainda existia na beira da estrada. Mas esperava que sim. Ao voltar para casa, sob os últimos clarões do Sol, cruzou seu caminho com o carroção que levava passageiros até a chácara. Apesar da pouca claridade, percebeu que haviam pelo menos duas pessoas no interior do carroção. Maurício pensou: “Turistas! Quem sabe eu vendo algum quadro amanhã”.