A área da zona rural – onde estavam as terras de Getúlio – aos
poucos se esvaziava. A população diminuía a cada ano, pois o povo
começou a mudar-se para a cidade, enquanto outros morriam de
velhice, de doenças ou acidentes.
Cecília
nos últimos anos viu e ouviu muita revoada de pássaros naqueles
campos e serrados da Sede, agora desertos. A princípio assustava-se,
lembrando das lendas que se contavam por aí, achando que alguém
próximo estava morrendo, como aconteceu no dia da morte de Amélia.
Mas com o tempo, acostumou-se com o fenômeno e até isso não lhe
chamava mais a atenção.
Heitor
andava preocupado com sua saúde. Propôs à Cecília uma viagem,
onde pudesse espairecer um pouco, respirar outros ares, conhecer
novas pessoas, adquirir novas lembranças... mas ir para onde?
Simples,
pensou Heitor: levaria Cecília a uma viagem até sua terra natal, na
divisa de Minas com o Rio de Janeiro. É um lugar onde ele nunca mais
foi, desde que seus pais resolveram se mudar para o interior de Minas
– onde vieram possuir as terras de herança deixadas pelo avô, e
onde ele conheceu Cecília.
A
viagem – pensou Heitor – faria bem aos dois. Para ele seria bom e
nostálgico, pois sentia saudades do lugar. E para Cecília faria
bem, distraindo-a um pouco, quem sabe melhorando seu humor.
Decidiu
então convencer Cecília de empreender tal viagem. Em Curuajubá,
tomariam um ônibus. Depois, embarcariam num trem. A viagem seria
demorada e cansativa. O trem não desembarcava os passageiros em sua
cidade natal, mas a Estação ficava bem próxima, numa cidade
vizinha, chamada Imperador – uma homenagem feita ao Imperador Pedro
II por ter aberto os caminhos da Ferrovia meio século antes.
Seria,
de fato, uma longa e cansativa viagem, onde, com certeza, deveriam
descer em muitas Estações, comprar novas passagens, talvez até
dormir nos bancos dos trens, quando eles fizessem a viagem noturna.
Mas
Cecília conheceria novos lugares, e quem sabe assim se animaria um
pouco mais, retornando à Fazenda mais animada e feliz.
Cecília
também imaginou que seria bom a ela, esta viagem. Afinal, o
isolamento naquelas terras abandonadas, a mesmice de uma união sem
amor e as lembranças de um passado com tantos sonhos inconclusos
estavam matando-a aos poucos. Queria respirar novos ares, distrair a
mente, ver coisas novas, ainda que fosse por poucos dias apenas.
Tomada
a decisão, partiram numa Segunda-feira bem cedo em direção a
Curuajubá, onde embarcaram num ônibus que os levou até a cidade
mais próxima em que houvesse uma Estação de Trens.
No
século anterior, mais precisamente entre os anos de 1850 a 1900, e
se estendendo ainda até 1920, o País conheceu um desenvolvimento
acelerado e contínuo da malha ferroviária, que crescia “a todo
vapor” (as locomotivas da época eram tocadas por caldeiras de
vapor d’água). As três últimas décadas do século XIX foi uma
época fecunda ao Estado de Minas Gerais, porque vários projetos se
deram início com a aprovação do Imperador D. Pedro II, e assim
começou a desenhar no mapa a malha ferroviária do Sul de Minas,
como, por exemplo, a EFL “Estrada de Ferro Leopoldina” e a EFOM
“Estrada de Ferro do Oeste de Minas”, que ligaram diversas
cidades entre si através de seus trilhos, que por conseguinte,
acabaram por se ligar também com a Central do Brasil, que era a
linha ferroviária mais importante do Brasil.
Com
alguns embarques e desembarques, a partir do Sul de Minas tornou-se
possível chegar até a Capital do País – que na época era o Rio
de Janeiro – percorrendo longos trechos do caminho numa viagem de
trens.
Já
nas primeiras décadas de 1900 o tráfego ferroviário estava bem
desenvolvido, com a construção de graciosas Estações às margens
da Ferrovia, trazendo desenvolvimento às cidades por onde os trilhos
passavam. Em alguns lugares, a própria arquitetura das Estações
eram verdadeiras obras de arte.
Uma
Locomotiva – talvez uma “Rogers Work - 1871”, ou quem sabe uma
“Baldwin - 1877” – importada ainda no Governo do Imperador
Pedro II, resfolegava impaciente, parada ao lado da Estação. A
caldeira estava bem aquecida e o “Cavalo de Aço” respirava
sofregamente, soltando de suas válvulas de escape rápidos jatos de
vapor em direção aos trilhos, como se as válvulas fossem narinas.
CAVALO
de AÇO foi um apelido que índios da América do Norte deram às
Locomotivas, justamente por se assemelharem (em sua fértil
imaginação) a um cavalo de raça boa, um puro-sangue vigoroso e
arisco, que furioso bate as patas, e abrindo as narinas respira
ruidosamente, impaciente pela hora em que vai poder galopar. Os
possantes pistons em pleno funcionamento dessas Locomotivas marcavam
o compasso rápido, que empurrados pela biela moviam as rodas de
tração celeremente sobre os trilhos, singrando o enorme deserto do
Oeste Americano, puxando uma quantidade interminável de vagões. E
apoiando a cabeça sobre os trilhos e sentindo no ouvido a vibração,
os nativos podiam dizer com precisão a que distância se encontrava
a Locomotiva e quanto tempo levava para chegar. Em breve se avistava
a coluna negra de fumaça, cuspida com ímpeto pela chaminé. O apito
aliviava a pressão da caldeira e também alertava os animais e as
pessoas para que se afastassem dos trilhos.
No
Brasil o “Cavalo de Aço” chegou tardiamente, quando muitas
nações indígenas já tinham sido dizimadas, e infelizmente poucos
tupiniquins tiveram a sorte de admirar o maravilhoso e gigantesco
veículo singrando nossos sertões e cerrados.
Mas
aquela Locomotiva que esperava Cecília na Estação de Trens era
linda, de um negro luzidio com letras de metal dourado em
alto-relevo, grudadas nas laterais da máquina. Possuía um rodado
todo vermelho, de um tom encarnado vivo. E puxava muitos vagões.
Comprando as duas passagens, Heitor e Cecília embarcaram tomando
seus lugares num vagão de Segunda Classe. Cecília estava
apreensiva: Nunca em toda sua vida tinha feito uma viagem assim. Nem
imaginava que algum dia haveria de fazer. O auxiliar de maquinista
passou, conferindo e ticando os bilhetes. Em seguida houve um tremor,
que foi sentido por todos passageiros. Numa rápida sequência, a
Locomotiva despejou um abundante jato de vapor sobre os trilhos, os
pistões e os braços que movimentam suas rodas começaram a se mover
e uma enorme coluna de fumaça negra escapou pela chaminé. Rangindo
as conexões que ligam um vagão a outro e com um leve arranco, o
imenso Cavalo de Aço deslocou-se pesadamente nos trilhos, a
princípio lentamente, mas alcançando velocidade progressiva a cada
metro percorrido. Vagão por vagão foi puxado pela máquina, que
resfolegava. Nesses vagões – cada grupo de vagões em seu setor
específico, a máquina levava carga humana, animais e produtos
agrícolas. Era o principal meio de transportes da época. E
deslizando nos trilhos, a Locomotiva se afastou da Estação. Seu
apito foi ouvido a longa distância.
Nas linhas do trem, o Destino costurava de novo as voltas da vida.
Heitor pretendera chegar na cidade natal e alugar um quarto. Há
muito tempo quando seus pais se mudaram dali, venderam a propriedade
que possuíam na cidade. Mas Heitor lembrava que no final da rua
principal, no sentido ao norte da cidade onde as ruas em radial
morriam ao pé do mato ainda virgem, existia uma estradinha que
levava a uma pequena pensão. Essa pensão acolhia seus hóspedes a
preços módicos.
Na
verdade era uma grande e antiga casa de chácara, com um salão
central, possuindo ainda uma enorme cozinha e muitos quartos, que
seus donos transformaram em pensão. O serviço de hotelaria, como se
pode imaginar, era insuficiente para manter todo aquele
estabelecimento, pois a cidadezinha era esquecida no meio do mato.
Então seus donos sempre complementaram a renda com o plantio de
verduras e legumes, com os quais abasteciam a região.
Era
ali que Heitor pretendia levar Cecília para descansar. Seria por
alguns dias apenas, afinal, a Sede não poderia ficar muito tempo
fechada: havia colheitas e lavouras para cuidar, além do gado que
sobrou.
E
enquanto Cecília descansava, Heitor haveria de percorrer a região
em busca das antigas amizades, os colegas da Escola e da
adolescência, ver quem ainda vivia, ver quem ainda estava por lá. A
ausência de Heitor foi muito longa, e ele sentia saudades daquele
lugar.
Finalmente,
Heitor e Cecília desembarcaram na Estação de Trens que passa por
Imperador, a cidade vizinha de Jequitibá da Mata.
Em
Jequitibá da Mata, Maurício se adaptava cada vez mais à cidade e
nunca retornou a São Paulo, nem se lembrava do Mercado Municipal,
onde trabalhou por tanto tempo. De vez em quando mandava cartas à
sua mãe, que apesar de a demora para chegar as correspondências,
eram respondidas prontamente. Porém sendo a vida pacata, as notícias
eram sempre as mesmas, de ambos os lados, exceto as frequentes
reclamações sobre a saúde dos pais, que aumentava a cada carta que
chegava, denunciando a velhice e a decrepitude da vida.
Divino
resolvera se casar. Tendo
já marcado o dia do casamento com Anita,
o rapaz agora
se preocupava
com a situação do amigo. O casebre onde viviam era bem pequeno, mas
jamais abandonaria
seu amigo-irmão
na rua. Até o momento,
os dois sobreviviam
do pequeno salário que recebiam, dividindo as despesas da casa. E
Divino sabia muito bem das dificuldades do amigo. Então resolveu,
com ajuda de Maurício, erguer uma edícula no fundo do quintal. Se
não levantassem aquela edícula agora, a partir do dia em que Divino
se casasse Maurício não teria mais lugar onde morar. Para lá
transportaram umas poucas mobílias. A saber: uma cama de solteiro,
uma mesa com uma cadeira, e um armário que Maurício dividiu ao
meio, reservando espaço onde colocou as roupas e seu material de
pintura, que incluía papel, pincéis, tintas e um cavalete. Ficou
combinado que Maurício faria as refeições na casa de Divino,
pagando-lhe uma pequena importância mensal, como ajuda de custos –
e Anita cozinharia para os três.
Divino
admirava como Maurício desenvolvia bem a técnica de aquarela.
Suplantara seu próprio mestre!
__Você
desenhou quase toda a cidade, Maurício! E que perfeição nos
desenhos! Que dom maravilhoso você tem! Poderia vender suas
pinturas, assim tua renda aumentaria. Por que não faz isso? –
perguntou Divino.
Maurício
respondeu:
__Até
poderia vender, se achasse quem as comprasse... Todo mundo acha
bonito, todos querem ter um, mas nessa cidade onde a renda mensal é
tão apertada, quem disporia de um tostão a mais para gastar com
pinturas? Além disso, as pinturas nunca são perfeitas. A cobrança
gera um compromisso de aperfeiçoar a obra, e o aperfeiçoamento é
uma habilidade que não tenho condições de alcançar.
Maurício
nunca acreditara em si mesmo. Sempre menosprezou sua própria
capacidade em tudo o que fez, e foi assim desde criança, situação
que piorou ainda mais quando perdeu a amada para o seu concorrente
direto.
Até
mesmo enquanto namorava Cecília, Maurício se achava incapaz de
disputar a moça com os rapazes da região: Fosse o motivo de ser um
“rapaz de fora”, ou fosse o motivo de sua compleição física,
de corpo magérrimo, fosse talvez a grande pobreza de sua família,
ou, seja lá o que fosse, Maurício considerava-se em desvantagem e
se sentia um rapaz inferior aos outros rapazes, os filhos dos
fazendeiros da região, e que pela tradição deveriam ser aqueles
que disputariam a mão da moça. E sempre considerou aquele namoro
uma grande sorte para si, não compreendendo como fora capaz de o
coração de Cecília tê-lo escolhido em meio a tantas opções
melhores que ele, naquele lugar...
Agora, outra vez, Maurício manifestava a falta de confiança em sua
própria capacidade, ainda que agora o assunto fosse outro, e mesmo
depois de tantos anos passados... Maurício era a imagem perfeita de
um perdedor nato.
Divino
deu-lhe uma ideia:
__Você
sempre vai a Imperador, na Estação de Trens buscar os mantimentos e
as encomendas do Empório. Certamente conhece bem os funcionários da
Estação e tem com eles amizade. Coloque moldura em alguns de seus
trabalhos e deixa-os lá, para venda, sem compromisso!
Maurício
pensou: “realmente, sempre faço
as pinturas por prazer e doo
meus trabalhos a qualquer
um que os desejam, e nunca cobrei nada
por eles. Se vender,
tenho uns tostões a mais. E
se não vender, eu
nada perco,
visto que as pessoas levarão para casa do mesmo jeito, já
que sempre as doei e nunca cobrei por elas.
E se vender, ainda que
seja por um preço mínimo,
tiro ao menos o custo das molduras.
Nada tenho a perder!”
Então
Maurício decidiu que na próxima viagem até Imperador levaria
alguns dos seus trabalhos. Deixaria em consignação com João
Batista, um dos funcionários da Estação, que vendia bilhetes de
passagem. Estipularia um preço mínimo e deixaria que fosse
negociada livremente. A diferença de valores seria a comissão do
vendedor. Dentre as pinturas
escolheu as
melhores, porém, não
levou a mais perfeita, aquela que retratava a entrada de uma fazenda,
com a figura da moça ao
lado de um cactus gigante. Assinou-as
apenas com o
primeiro nome, ao pé da folha e mandou emoldurar.
E
Maurício começou vender bem suas aquarelas! Já se completava seis
meses desde que levou a primeira arte até Imperador, e toda semana
levava duas ou três da sua coleção. João Batista sempre vendia
todas.
Porém,
dentre os lugares de Jequitibá da Mata, havia um que ele nunca tinha
retratado: A chácara que havia na estradinha, na periferia da
cidade; aquela chácara que funcionava como pensão e ainda vendia
legumes e verduras, onde Divino trabalhava como hortelão.
Algumas
aquarelas eram rápidas de se concluir. Principalmente aquelas onde
Maurício retratava paisagens que ele conhecera bem e já tinha o
cenário de cor, gravado na memória. Por exemplo, as paisagens onde
Maurício passou a infância e a adolescência, as terras de Getúlio
e a cidade de Acemira eram-lhe familiares e cada detalhe da região
permanecia registrado em sua memória.
Porém,
as novas paisagens demandavam um certo tempo: na conclusão de um
trabalho, Maurício recorria ao local por várias vezes e durante
vários dias, observando a paisagem por diversos ângulos,
pintando-a, corrigindo-a, até que se dava por satisfeito e sua obra
fosse acabada.
Maurício
resolveu desenhar a chácara, que era assim: Uma enorme varanda e uma
dezena de janelas na parede da frente, com a escadaria larga de três
degraus que desce desde a varanda até o jardim de árvores frondosas
à sua frente, e que é percorrido por um caprichoso caminho
pavimentado de pedras alvas, que ligava a chácara
até a estrada. A mulher
misteriosa que Maurício desenhava em algumas aquarelas sempre foi
desenhada em lugares com paisagens diferentes, lugares longe de
Jequitibá da Mata. Mas excepcionalmente dessa vez, Maurício
resolveu mudar... E imaginou colocar diante da imagem do
casarão da chácara, à sua direita em primeiro plano, a figura
daquela mulher...
Heitor
e Cecília esperavam na Estação pelo carroção fechado que levava
os passageiros aos pontos mais distantes da cidade. Imperador era uma
cidade maior que Jequitibá da Mata. E com sua área urbana já bem
desenvolvida, foi necessário implantar o serviço de táxi, em
carroções fechados puxados por um ou dois pares de cavalos. De
manhã e à tarde esses carroções estacionavam ao lado da Estação
Ferroviária e aguardavam os passageiros, cuja lotação, que
dependia também do peso da bagagem, variava de quatro a seis pessoas
de cada vez. Os carroções, além de circular dentro da cidade,
também podiam levar seus passageiros à Jequitibá da Mata, numa
distância percorrida em quarenta e cinco minutos de viagem.
Enquanto
Heitor atravessava a linha do trem alcançando o outro lado da rua
que passa paralela, à procura de uma “Botica” (farmácia) e de
algum remédio para enxaqueca, Cecília que sempre foi muito curiosa,
andava para lá e para cá no saguão da Estação, observando
atentamente as pessoas e aquele lugar tão diferente das terras onde
nasceu e vivia, quando de repente algo lhe chamou atenção:
Dentro
do pavilhão coberto, onde alguns bancos de madeira estavam dispostos
em filas onde os passageiros se assentavam e aguardavam o carroção
ou o próximo trem, haviam também as cabines onde se vendia bilhetes
de viagem. E dentro de uma delas, pendurado à parede, Cecília viu
um quadro em aquarela representando uma bela paisagem, e que lhe deu
a impressão de ser muito familiar. Aproximando-se da cabine,
perguntou ao funcionário:
__Moço,
onde fica esse lugar retratado no quadro da parede?
O
funcionário, que era João Batista, lhe respondeu:
__Não
sei dizer onde é. Não conheço nenhum lugar na região que se
pareça com a paisagem retratada no quadro. Um jovem senhor que mora
em Jequitibá da Mata sempre vem aqui a trabalho, e, quando vem,
deixa comigo alguns desses quadros para vender. Alguns retratam
lugares da região, que eu conheço bem. Outros, porém, retratam
lugares que nunca vi. Talvez seja a imaginação do pintor, ou talvez
seja algum lugar que ele conheceu, longe daqui. E os quadros vendem
bem, porque são bonitos, e de todos que trouxe até agora, este é o
último que restou.
O
quadro retratava montanhas e plantações vistas de um lugar bem
alto, mostrando ainda os telhados de um Arraial a meia distância e
ao longe um belo colar de águas circulando uma pequenina cidade, da
qual se podia ver somente a silhueta, com destaque para a torre da
Igreja, sob o fundo azul do céu recortado pelo espigão de terras.
Cecília
imediatamente sentiu que conhecia o lugar retratado! Nunca vira tal
paisagem pessoalmente. Não naquela perspectiva, mas muitas vezes a
imaginou, quando Maurício lhe falava do mirante natural que havia
por sobre as montanhas, e de tudo que podia se ver dali daquela
altura, no cume da montanha onde Leandro uma vez o levou – naquelas
ruínas de pedras brutas, onde uma vez o moço revelou o desejo de
fazer uma casa para ele e Cecília morarem.
Maurício
era bom observador e nada lhe escapava dos detalhes. Em um daqueles
finais de semana, sentado junto a ela no sofá da sala, ao contar da
paisagem maravilhosa que se avistava lá do alto, Cecília com a
cabeça reclinada ao ombro do namorado fechou os olhos para imaginar,
e foi como se realmente estivesse vendo tudo aquilo que o namorado
lhe contava. Incrível! Como a imagem, que lhe veio à mente naquele
dia de um passado tão distante, se parecia com o quadro em aquarela,
que ela via naquele momento pendurado na parede de uma Estação de
Trens, numa cidade tão longe de sua casa!
As
lembranças afloraram-lhe à mente, muito vivas, eram lembranças de
alguém que há muito tempo foi embora, deixando em seu lugar um
espaço vazio e que nunca foi preenchido, dentro do peito. Foram
lembranças daquele dia em que ela, receosa de que a “vida fácil”
da cidade contaminasse o moço, o fez jurar que pertenceria somente a
ela e a ninguém mais. E uma saudade dolorosa roeu-lhe o coração
naquele momento, causando-lhe vontade de chorar.
__Vai
querer comprar o quadro, senhora? Faço-lhe por um preço bem
baratinho. Leve-o de lembrança para casa, quando for embora de
Imperador! – falou João Batista, oferecendo-lhe o quadro.
Fosse
imaginação sua ou não, Cecília sentiu que o quadro estava ali de
propósito, como se alguém ou alguma inteligência invisível e
poderosa o tivesse colocado lá justamente para que ela o visse
quando chegasse na Estação. E aquele quadro estava sendo oferecido
a ela por um desconhecido! Porém carregava na assinatura um nome que
ela nunca esqueceu: “Maurício”. Não havia sobrenome, não havia
nenhuma outra pista que revelasse a identidade do autor, apenas o
primeiro nome, mas naquele momento Cecília teve certeza de que
conhecia o artista.
Cecília
resolveu comprar. Pediu ao moço que embrulhasse com muito cuidado, e
guardou-o na mala, sob as roupas.
Por
fim o carroção chegou à Estação bem na hora que Heitor retornava
da farmácia, e todos embarcaram, sendo Jequitibá da Mata seu último
destino, onde deixaria Heitor e Cecília diante do grande casarão da
Chácara. Já começava anoitecer.
Maurício
há quatro dias seguidos – após seu horário de serviço – subia
a pé até o final da rua principal, seguindo depois pela estradinha
secundária, para retratar a Chácara em pinceladas de aquarela. O
dia seguinte seria o último, onde pretendia desenhar os últimos
detalhes e, por fim, completar o quadro com a figura da mulher. Era o
melhor quadro que já produzira em sua vida, além daquele outro que
fizera tempos atrás, quando retratou a porteira da Sede, o cactus e
a mulher ao lado. Não sabia Maurício se aquele cactus ainda existia
na beira da estrada. Mas esperava que sim. Ao voltar para casa, sob
os últimos clarões do Sol, cruzou seu caminho com o carroção que
levava passageiros até a chácara. Apesar da pouca claridade,
percebeu que haviam pelo menos duas pessoas no interior do carroção.
Maurício pensou: “Turistas! Quem sabe eu vendo algum quadro
amanhã”.