Capítulo 24: "Narciso"



É triste assistir uma desolação. Dizem que aquilo que aqui se faz, aqui mesmo se paga. Tenho cá minhas dúvidas, pois eu vi muitos partirem sem nem perceber que se foram. Enquanto outros ficaram pagando pelo resto da vida por aquilo que nunca fizeram. Todavia, quem não paga aqui, talvez pague do outro lado... Mas com Narciso, aconteceu assim:
Narciso mudou-se para Curuajubá, deixando sua casa de sítio trancada. Vendeu-a pouco depois por mixaria para uma Companhia de Construção. Disse aos compradores que as terras foram de herança, e que seus irmãos breve o seguiriam também, vendendo seus quinhões logo depois dele, pois o dinheiro de todo mundo acabou e os filhos cresciam. A cidade grande oferecia oportunidade aos meninos e uma vida melhor para as meninas.
Comprou uma casa de dois andares, sendo a moradia no andar de cima e um salão no térreo, com duas portas voltadas para a rua. A rua era deserta e o bairro pobre e residencial. Narciso sonhava em abrir um pequeno comércio ali. Lutou bastante, endividou-se financiando a reforma do prédio e a compra de material. Com isso, Narciso montou um pequenino mercado, onde vendia de tudo: verduras, leite, carne, bebidas, enfim, secos e molhados. Trabalhava apenas ele e sua mulher. Nunca tiveram filhos... Não abria aos Domingos, porém fechava aos Sábados bem tarde da noite, quando se tornava perigoso e suspeito qualquer movimento nas ruas. Narciso se arriscou demais. E por causa disso, viveu pouco tempo na cidade.
Num Sábado à noite, estando a rua já bem deserta, entraram dois sujeitos no estabelecimento; Eram dez horas da noite e a esposa de Narciso já tinha subido para casa. Anunciaram o assalto e ameaçaram a vida de Narciso. Obrigaram-no a procurar o lugar do cofre, onde poderia estar guardado o dinheiro. Ele insistiu que não tinha dinheiro, e nem havia cofres, mas os ladrões não acreditaram. Então num gesto imprudente, virou-se Narciso para alcançar uma caixa de sapatos que havia na prateleira. Ali dentro estavam suas economias, reservadas, que deveriam ser depositadas aos créditos da Financeira na Segunda-feira. Narciso pensou em dar esse dinheiro – seu único dinheiro – aos ladrões, para se ver livre deles.
Porém, foi mal interpretado pelos bandidos, que pensaram que ele se virava para pegar alguma arma. Pulando por cima do balcão, um dos bandidos atacou-o pelas costas com uma faca. Narciso levou a facada em algum ponto que lhe prejudicou irremediavelmente o equilíbrio das pernas. Os ladrões vendo que a caixa de sapatos caía junto com Narciso no chão, recolheram o dinheiro e fugiram.
A mulher de Narciso o encontrou duas horas depois, banhado em sangue, caído atrás do balcão. O socorro chegou e o homem sobreviveu, mas o ferimento atingiu um nervo importante e alguns órgãos internos, e Narciso perdeu a firmeza nas pernas e nunca mais conseguiu andar sem a ajuda de uma bengala. Narciso nunca mais foi o mesmo: praticamente inválido, sem pagar o dinheiro financiado e endividado depois de longos meses de tratamentos e internações, Narciso perdeu os poucos bens que possuía. Sem poder manter-se na cidade, seus irmãos buscaram-no e levaram para morar na Sede – de favor.
Ali humilhado, seguia um ritual de subir a colina diante da Sede em direção à Capela todos os finais de semana. Arrastando-se penosamente e escorado na bengala, fazia isso religiosamente todas as Sextas-feiras, tivesse o tempo bom ou chuvoso.
Abrindo-lhe as portas, com muita dificuldade limpava janela por janela, banco por banco e os móveis do altar. Uma atitude estranha para quem nunca demonstrou sentimento cristão com aqueles que um dia precisaram de sua ajuda... Arrependimento, talvez? Nunca vamos saber.
Você já viu um tempo nublado no sítio?
Pode ser maravilhoso – e ao mesmo tempo terrífico. As nuvens baixas parecem roçar o pico das montanhas. Elas passam galopando empurradas pelo vento, que assobia nas frestas das casas e entre os galhos das árvores que gemem sob o açoite da ventania. Pássaros fogem em revoadas e os campos ficam desertos. Nos currais, cordas e cipós balançam, produzindo sons. Touceiras de capim seco rolam para lá e para cá no meio dos pastos, enquanto o gado procura um jeito de se esconder. A poeira se levanta na estrada e de repente um redemoinho segue cortando no espaço aberto, levantando as folhas e a poeira A terra escurece e a claridade dos relâmpagos produzem sombras fantasmagóricas das árvores e das pontas de pedras mais próximas. O ribombar dos trovões é ensurdecedor. E quando a chuva finalmente desce aos borbotões, do solo emana um cheiro gostoso de terra molhada.
Narciso resolveu subir naquela Sexta-feira até a Capela. A ferida que nunca fora curada direito, doía especialmente naquele dia. Devia ser por causa do tempo ruim. Quando mudava o tempo, Narciso arrastava ainda mais aquela perna. Narciso encontrava-se dentro da Capela quando o tempo lá fora se revoltou.
Nunca se refugie do mau tempo em lugares altos e isolados quando vem o temporal – ainda que seja numa Capela! É muito perigoso.
E Narciso não pôde ver e nunca soube o que lhe atingiu naquele dia fatal. De repente um clarão enorme iluminou todo o recinto cegando-o e foi a única coisa que sua mente registrou, por alguns segundos, apenas. O relâmpago, descendo da nuvem mais baixa fendeu a parede da frente da Capela, abrindo-a desde o teto até a porta, cujas folhas de carvalho maciças foram arrancadas com violência. Lascas de madeira seca e incandescente foram atiradas a esmo, atingindo cortinas e toalhas dentro da Capela, que imediatamente se incendiaram. Labaredas de fogo lamberam os trabalhos bordados e as pregas costuradas das cortinas, subindo rapidamente em direção ao forro do telhado. Bancos pegaram fogo; o confessionário de jacarandá todo trabalhado em filigranas de prata e entalhado em desenhos de baixo-relevo, transformou-se logo numa coluna de fogo, enquanto as vigas do telhado queimando, ruíram sob o peso das telhas. Narciso que foi atirado longe com o impacto do raio, permanecera inconsciente, caído próximo ao Altar.
E assim terminou Narciso seus dias na Terra. O que lhe sobrou do corpo foi enterrado no Cemitério do Arraial na Segunda-feira, depois de uma acanhada Missa de corpo presente na Igreja.