É triste assistir uma desolação. Dizem que aquilo que aqui se faz, aqui mesmo se paga. Tenho cá minhas dúvidas, pois eu vi muitos partirem sem nem perceber que se foram. Enquanto outros ficaram pagando pelo resto da vida por aquilo que nunca fizeram. Todavia, quem não paga aqui, talvez pague do outro lado... Mas com Narciso, aconteceu assim:
Narciso mudou-se para
Curuajubá, deixando sua casa de sítio trancada. Vendeu-a pouco
depois por mixaria para uma Companhia de Construção. Disse aos
compradores que as terras foram de herança, e que seus irmãos breve
o seguiriam também, vendendo seus quinhões logo depois dele, pois o
dinheiro de todo mundo acabou e os filhos cresciam. A cidade grande
oferecia oportunidade aos meninos e uma vida melhor para as meninas.
Comprou uma casa de dois
andares, sendo a moradia no andar de cima e um salão no térreo, com
duas portas voltadas para a rua. A rua era deserta e o bairro pobre e
residencial. Narciso sonhava em abrir um pequeno comércio ali. Lutou
bastante, endividou-se financiando a reforma do prédio e a compra de
material. Com isso, Narciso montou um pequenino mercado, onde vendia
de tudo: verduras, leite, carne, bebidas, enfim, secos e molhados.
Trabalhava apenas ele e sua mulher. Nunca tiveram filhos... Não
abria aos Domingos, porém fechava aos Sábados bem tarde da noite,
quando se tornava perigoso e suspeito qualquer movimento nas ruas.
Narciso se arriscou demais. E por causa disso, viveu pouco tempo na
cidade.
Num
Sábado à noite, estando a rua já bem deserta, entraram dois
sujeitos no estabelecimento; Eram dez horas da noite e a esposa de
Narciso já tinha subido para casa. Anunciaram o assalto e ameaçaram
a vida de Narciso. Obrigaram-no a procurar o lugar do cofre, onde
poderia estar guardado o dinheiro. Ele insistiu que não tinha
dinheiro, e nem havia cofres, mas os ladrões não acreditaram. Então
num gesto imprudente, virou-se Narciso para alcançar uma caixa de
sapatos que havia na prateleira. Ali dentro estavam suas economias,
reservadas, que deveriam ser depositadas aos créditos da Financeira
na Segunda-feira. Narciso pensou em dar esse dinheiro – seu único
dinheiro – aos ladrões, para se ver livre deles.
Porém,
foi mal interpretado pelos bandidos, que pensaram que ele se virava
para pegar alguma arma. Pulando por cima do balcão, um dos bandidos
atacou-o pelas costas com uma faca. Narciso levou a facada em algum
ponto que lhe prejudicou irremediavelmente o equilíbrio das pernas.
Os ladrões vendo que a caixa de sapatos caía junto com Narciso no
chão, recolheram o dinheiro e fugiram.
A
mulher de Narciso o encontrou duas horas depois, banhado em sangue,
caído atrás do balcão. O socorro chegou e o homem sobreviveu, mas
o ferimento atingiu um nervo importante e alguns órgãos internos, e
Narciso perdeu a firmeza nas pernas e nunca mais conseguiu andar sem
a ajuda de uma bengala. Narciso nunca mais foi o mesmo: praticamente
inválido, sem pagar o dinheiro financiado e endividado depois de
longos meses de tratamentos e internações, Narciso perdeu os poucos
bens que possuía. Sem poder manter-se na cidade, seus irmãos
buscaram-no e levaram para morar na Sede – de favor.
Ali
humilhado, seguia um ritual de subir a colina diante da Sede em
direção à Capela todos os finais de semana. Arrastando-se
penosamente e escorado na bengala, fazia isso religiosamente todas as
Sextas-feiras, tivesse o tempo bom ou chuvoso.
Abrindo-lhe
as portas, com muita dificuldade limpava janela por janela, banco por
banco e os móveis do altar. Uma atitude estranha para quem nunca
demonstrou sentimento cristão com aqueles que um dia precisaram de
sua ajuda... Arrependimento, talvez? Nunca vamos saber.
Você
já viu um tempo nublado no sítio?
Pode
ser maravilhoso – e ao mesmo tempo terrífico. As nuvens baixas
parecem roçar o pico das montanhas. Elas passam galopando empurradas
pelo vento, que assobia nas frestas das casas e entre os galhos das
árvores que gemem sob o açoite da ventania. Pássaros fogem em
revoadas e os campos ficam desertos. Nos currais, cordas e cipós
balançam, produzindo sons. Touceiras de capim seco rolam para lá e
para cá no meio dos pastos, enquanto o gado procura um jeito de se
esconder. A poeira se levanta na estrada e de repente um redemoinho
segue cortando no espaço aberto, levantando as folhas e a poeira A
terra escurece e a claridade dos relâmpagos produzem sombras
fantasmagóricas das árvores e das pontas de pedras mais próximas.
O ribombar dos trovões é ensurdecedor. E quando a chuva finalmente
desce aos borbotões, do solo emana um cheiro gostoso de terra
molhada.
Narciso
resolveu subir naquela Sexta-feira até a Capela. A ferida que nunca
fora curada direito, doía especialmente naquele dia. Devia ser por
causa do tempo ruim. Quando mudava o tempo, Narciso arrastava ainda
mais aquela perna. Narciso encontrava-se dentro da Capela quando o
tempo lá fora se revoltou.
Nunca
se refugie do mau tempo em lugares altos e isolados quando vem o
temporal – ainda que seja numa Capela! É muito perigoso.
E
Narciso não pôde ver e nunca soube o que lhe atingiu naquele dia
fatal. De repente um clarão enorme iluminou todo o recinto cegando-o
e foi a única coisa que sua mente registrou, por alguns segundos,
apenas. O relâmpago, descendo da nuvem mais baixa fendeu a parede da
frente da Capela, abrindo-a desde o teto até a porta, cujas folhas
de carvalho maciças foram arrancadas com violência. Lascas de
madeira seca e incandescente foram atiradas a esmo, atingindo
cortinas e toalhas dentro da Capela, que imediatamente se
incendiaram. Labaredas de fogo lamberam os trabalhos bordados e as
pregas costuradas das cortinas, subindo rapidamente em direção ao
forro do telhado. Bancos pegaram fogo; o confessionário de jacarandá
todo trabalhado em filigranas de prata e entalhado em desenhos de
baixo-relevo, transformou-se logo numa coluna de fogo, enquanto as
vigas do telhado queimando, ruíram sob o peso das telhas. Narciso
que foi atirado longe com o impacto do raio, permanecera
inconsciente, caído próximo ao Altar.
E assim terminou Narciso seus dias na Terra. O que lhe sobrou do
corpo foi enterrado no Cemitério do Arraial na Segunda-feira, depois
de uma acanhada Missa de corpo presente na Igreja.