A agonia de Cecília se prolongou por vários meses, chegando mesmo a notícia até Acemira, onde a família de Alécio ainda morava. Nem mesmo o tratamento em Curuajubá foi capaz de reanimar aquela mulher. E Adriana então resolveu visitá-la.
Era
o mês de Março, fazia portanto, quatro meses que seu irmão
morrera. Era hora de visitar Cecília.
Mesmo
tendo passado tantos anos, a paisagem permanecia inalterada. Somente
mais vazia e abandonada. Mas tornara-se bucólica. O batelão quase
não trabalhava, desde o tempo em que a Escola Rural se fechou. A
estrada que conduzia desde o Arraial até o porto do batelão perdeu
sua importância, tornando-se agora malcuidada e toda esburacada.
Touceiras de mato invadiam a estrada e animais silvestres cruzavam
seu caminho. A natureza começou a recuperar aquilo que os homens lhe
tomaram um dia, por causa da civilização. Passou pelo Arraial, onde
da última vez que estivera por lá havia um grande barracão de
festas. Lá dentro – lembrou Adriana – pela última vez também
viu Cecília, seus irmãos, Narciso e Heitor. O povoado agora quedava
inerte, como se dormisse – apesar do dia já seguir alto.
Prosseguindo
viagem, chegou-se diante da porteira, agora tão malcuidada que
ameaçava cair a qualquer movimento. Desceu pelo caminho até chegar
diante da varanda do casarão da Sede.
Que
lembranças lhe trouxeram aquele lugar! O dia que vieram os quatro
ali: Leandro, Cecília, Adriana e Maurício. Era um Domingo, e seu
irmão estava feliz da vida, parecia uma criança! Enquanto abriam as
portas e janelas para arejar o ambiente, o rapaz conversava
timidamente com Cecília, que lhe mostrava as dependências da Sede,
o poço, o moinho e o açude. Mas agora, esse ambiente lhe causou
calafrios: o sinal de abandono estava presente por todos os lados.
Até mesmo a Capela, que outrora foi responsável por tantas festas e
alegria, jazia agora como um esqueleto, suas paredes querendo ruir a
qualquer hora, lá no alto da colina.
A
porta do casarão estava apenas encostada, sequer um cachorro havia
no quintal para dar o sinal.
Adriana
chamou por Cecília, mas não obteve resposta. Repetiu o chamado, e
como tudo era silêncio, empurrou a porta e entrou.
Conhecendo
bem a casa por dentro, foi diretamente ao quarto, onde esperava
encontrar sua amiga.
Cecília
dormia. Pelas frestas da janela entrava uma luz suave que banhava o
corpo daquela jovem mulher. Seus cabelos ainda dourados, porém mais
escurecidos que na adolescência, espalhavam-se pelo travesseiro.
Cecília conservava ainda muitos traços de sua beleza juvenil,
quando foi namorada de seu irmão! Porém o semblante carregava um ar
de tristeza e cansaço.
Adriana
olhou ao redor, e de repente viu na parede as duas aquarelas –
muito parecidas com aquelas que trouxera de Jequitibá da Mata,
quando foi visitar Maurício e o encontrou morto!
Aproximando-se
delas, notou que uma das aquarelas levava a assinatura de seu irmão.
A outra estava sem assinatura, mas nem precisava: A mulher retratada
ali era a mesma das outras pinturas, ou seja, a própria Cecília!
O
que faziam aquelas pinturas ali – justamente ali, no quarto de
Cecília? E como as teria conseguido Cecília? Quando era jovem,
Maurício apenas escrevia, nunca pintou nada, nem mesmo na época que
namorou Cecília. Adriana só soube desse talento do irmão quando
viajou até Jequitibá da Mata. E soube também naquele mesmo dia,
que Maurício começou a pintar somente quando já estava morando lá,
em Jequitibá.
Adriana
precisava de alguma explicação.
Acordou
a amiga, que se espantou com a visita inesperada, porém necessária
já há tanto tempo... Abraçaram-se as duas num choro convulsionado,
de tristezas, de angústias, de saudades e arrependimentos. Adriana
quis saber da saúde de Cecília, que pouco lhe revelou: Disse apenas
que andava triste, muito cansada e que a vida perdera o sentido.
Então,
de repente, Adriana apontou as aquarelas na parede e perguntou-lhe
diretamente:
__O
que significa isso, Cecília? Como as conseguiu?
Sabendo
que seria difícil ocultar qualquer coisa de Adriana, Cecília
resolveu contar tudo.
Chorando,
disse-lhe que sem esperar encontrara Maurício na cidade natal de
Heitor, quando ele a levou para passar uns dias de férias. Desde
aquele dia, quando descobriu que nada tinha se acabado entre eles,
pois sempre esperaram a prometida cura que o tempo jamais trouxe, e
que os dois realmente viveram a vida toda só na ilusão de um
esquecimento que nunca houve de fato, Cecília então definhou-se na
tristeza que já existia, mas que se tornou muito mais forte a partir
daquele dia.
Adriana
ouviu tudo sem interromper a amiga, compreendendo que justamente o
mesmo ocorreu com Maurício, esvaziando-lhe o espírito e jogando-o
num hospício. Mas apesar da fragilidade da amiga, precisava lhe dar
a amarga notícia do irmão. Cecília merecia viver, passar aquela
fase. Saber que seu irmão já era morto, talvez fosse bom a Cecília,
porque passado o primeiro choque da notícia, as pessoas sentem que
após a morte de alguém precisamos nos reerguer e continuar a vida
adiante. E assim contou Adriana sobre a morte do irmão, poupando, é
claro, de dizer à amiga que acontecera num Hospital para doentes
mentais. Limitou-se a dizer apenas que quando chegou em Jequitibá da
Mata, seu irmão acabava de morrer após longo período doente e
internado, não dando tempo sequer de visitá-lo em vida.
Cecília
ouviu a notícia, porém, parece que nem forças ela tinha para
chorar...
Cecília
quis saber qual o dia da morte, e Adriana respondeu-lhe com precisão:
__
Hoje se completam quatro meses... Foi num dia ensolarado de Novembro.
Cecília
ocultou o rosto no travesseiro, murmurando:
__
Eu já sabia que tinha sido em Novembro... Os pássaros me
avisaram... Mas eu precisava apenas ter uma certeza...
Em
seguida, apontou para um baú ao pé da cama e pediu que Adriana o
abrisse e tirasse lá de dentro um envelope lacrado.
Então
Cecília disse, com muito esforço (sua voz já estava fraca demais):
__É
para você, querida amiga. A letra é minha composição. Mas a
melodia será por tua conta.
Cecília queria aprender
música quando era jovem, mas não alcançou o objetivo. Porém,
deixou guardada dentro do baú a única canção que sua inspiração
um dia, após a viagem, já nos últimos meses de vida, impeliu-a
para escrever.
Se
não colocou notas musicais porque não aprendeu, pelo menos deixou a
poesia rascunhada no papel que deu à sua amiga. E a poesia que
Adriana levou dentro do envelope era a letra de uma canção chamada
“O tempo”, e se não me falha a memória, reproduzo-a aqui,
fielmente:
O TEMPO (*)
Há
um novo tempo lá fora,
Trazendo
o destino dos tempos de outrora
E
que voando ligeiro, no ninho da vida pousou,
Da
PRIMEIRA VIDA, vivendo o amor.
É
a Terra que gira e as pedras se encontram,
Avivando
lembranças, trazendo a dor.
Que
sangra no peito, até a morte da alma
Da
PRIMEIRA MORTE, no perder de um amor.
São
esperanças perdidas, e saudades sentidas,
No
vagar das horas, de amargo sabor.
Que
levam com elas o sentido da vida
Na
SEGUNDA MORTE, de um impossível amor.
E
o tempo levou – consigo as Eras,
Suspiros
e esperas, desejo e calor,
Carregando
em seus braços, gemidos e abraços,
Na
TERCEIRA MORTE, de alguém, só de amor.
Mas
há um tempo novo agora,
De
luzes e cores, de perfumes e flor,
Trazendo
alegria, paixão, paz, poesia,
Numa
SEGUNDA VIDA, nas asas do amor!
Cecília
Heitor chegou da roça naquele
momento. Não podia deixar Cecília muito tempo sozinha, por causa da
fragilidade de sua saúde. Vendo que o homem chegava, Adriana sentiu
que era hora de ir embora, pois a partir daquele momento, Heitor
cuidaria de tudo.
Cecília
precisava descansar.
Despediu-se
dos dois, com um breve aperto de mãos em Heitor e com um longo e
apertado abraço em Cecília, pressentindo que seria aquele seu
último abraço na amiga.
E
chorando, se foi.
Cecília
apoiou sua mão no braço de Heitor, e com um fio de voz pediu:
__Por
favor, não me tire nunca daqui. Aconteça o que acontecer, mas não
me tire daqui, jamais. Quero estar ao lado do cactus.
Heitor
prometeu, sem nada perguntar, achando que Cecília apenas delirava
naquele momento.
O
dia seguinte raiou placidamente e a aurora rosada trouxe os primeiros
raios de Sol, que douraram o pico das montanhas mais altas, enquanto
um fio de luz penetrando pelas frestas da janela pousou suavemente no
rosto imóvel de Cecília. Foi quando Heitor constatou que Cecília
não mais respirava.
A
jovem mulher expirou como um passarinho durante a madrugada – se é
que passarinhos expiram pacificamente, porque depois da grande
mentira que me falaram sobre o tempo, quando me disseram que ele cura
as dores, não acredito mais em certas coisas que me falam a respeito
de passarinhos, tempos, perdas, desilusões, e de qualquer outro
ditado popular. Mas a verdade é que naquela madrugada Cecília
descansou deste mundo calmamente, sem um gemido, nem lamento. O rosto
aparentava um semblante sereno, manteve os olhos fechados e os lábios
entreabertos, por onde expirou sua vida.
E
seu corpo foi levado até o Arraial, onde numa singela Missa de corpo
presente, o Padre encomendou-lhe a alma.
Conforme
foi prometido em seu leito de morte, Heitor trouxe-a de volta e
depositou seu corpo numa cova que fez abrir ao lado do grande cactus
que há na porteira.
Ali
descansa agora o corpo de Cecília, como ela mesmo pediu horas antes
da morte: “Não me tire nunca daqui”.
Heitor
mudou-se dias depois da Fazenda Águas Frias para as terras de seus
pais, na fazenda que faz divisa com as terras de Getúlio. Não houve
mais partilhas nem inventários. Os parentes e familiares que
restaram da família de Getúlio – e que agora moravam em Curuajubá
– em entendimento com a Companhia de Construções, resolveram, por
fim, vender o que sobrou daquelas terras, e dividiram entre si o
dinheiro, entregando a Heitor a parte de Cecília. E deixaram o
passado para trás.
(*) Interpretando a
canção de Cecília:
1ª
Estrofe: Um pressentimento de Cecília, que anuncia um novo
tempo, onde o destino traz de volta o passado. A “primeira vida”
ao qual se refere, é o tempo feliz de outrora, quando ainda namorava
Maurício.
2ª
Estrofe: Cecília fala do reencontro, que reavivou as lembranças
da “primeira morte”. A primeira morte foi causada pela dor que
sangra no peito até matar a alma, cujo motivo foi a tristeza e
agonia da saudade, que aconteceu assim que se afastaram um do outro,
na juventude.
3ª
Estrofe: Cecília fala dos sentimentos tristes, das esperanças
perdidas e da saudade que restou, ao reviver o passado, e que tornam
lentos o passar das horas, causando a “segunda morte”, que é a
perda do sentido da vida, ao constatar que o amor ainda existe,
porém, é impossível de ser vivido.
4ª
Estrofe: Cecília fala da morte física, sua “terceira morte”,
que enfim, chegará para todos nós um dia, e que leva com ela todos
os nossos sentidos, nossos sentimentos e nossos desejos.
5ª
Estrofe: Na “segunda vida”, Cecília prediz o futuro, que
você vai saber no próximo capítulo!