Capítulo 32: "Amigas"


A agonia de Cecília se prolongou por vários meses, chegando mesmo a notícia até Acemira, onde a família de Alécio ainda morava. Nem mesmo o tratamento em Curuajubá foi capaz de reanimar aquela mulher. E Adriana então resolveu visitá-la.
Era o mês de Março, fazia portanto, quatro meses que seu irmão morrera. Era hora de visitar Cecília.
Mesmo tendo passado tantos anos, a paisagem permanecia inalterada. Somente mais vazia e abandonada. Mas tornara-se bucólica. O batelão quase não trabalhava, desde o tempo em que a Escola Rural se fechou. A estrada que conduzia desde o Arraial até o porto do batelão perdeu sua importância, tornando-se agora malcuidada e toda esburacada. Touceiras de mato invadiam a estrada e animais silvestres cruzavam seu caminho. A natureza começou a recuperar aquilo que os homens lhe tomaram um dia, por causa da civilização. Passou pelo Arraial, onde da última vez que estivera por lá havia um grande barracão de festas. Lá dentro – lembrou Adriana – pela última vez também viu Cecília, seus irmãos, Narciso e Heitor. O povoado agora quedava inerte, como se dormisse – apesar do dia já seguir alto.
Prosseguindo viagem, chegou-se diante da porteira, agora tão malcuidada que ameaçava cair a qualquer movimento. Desceu pelo caminho até chegar diante da varanda do casarão da Sede.
Que lembranças lhe trouxeram aquele lugar! O dia que vieram os quatro ali: Leandro, Cecília, Adriana e Maurício. Era um Domingo, e seu irmão estava feliz da vida, parecia uma criança! Enquanto abriam as portas e janelas para arejar o ambiente, o rapaz conversava timidamente com Cecília, que lhe mostrava as dependências da Sede, o poço, o moinho e o açude. Mas agora, esse ambiente lhe causou calafrios: o sinal de abandono estava presente por todos os lados. Até mesmo a Capela, que outrora foi responsável por tantas festas e alegria, jazia agora como um esqueleto, suas paredes querendo ruir a qualquer hora, lá no alto da colina.
A porta do casarão estava apenas encostada, sequer um cachorro havia no quintal para dar o sinal.
Adriana chamou por Cecília, mas não obteve resposta. Repetiu o chamado, e como tudo era silêncio, empurrou a porta e entrou.
Conhecendo bem a casa por dentro, foi diretamente ao quarto, onde esperava encontrar sua amiga.
Cecília dormia. Pelas frestas da janela entrava uma luz suave que banhava o corpo daquela jovem mulher. Seus cabelos ainda dourados, porém mais escurecidos que na adolescência, espalhavam-se pelo travesseiro. Cecília conservava ainda muitos traços de sua beleza juvenil, quando foi namorada de seu irmão! Porém o semblante carregava um ar de tristeza e cansaço.
Adriana olhou ao redor, e de repente viu na parede as duas aquarelas – muito parecidas com aquelas que trouxera de Jequitibá da Mata, quando foi visitar Maurício e o encontrou morto!
Aproximando-se delas, notou que uma das aquarelas levava a assinatura de seu irmão. A outra estava sem assinatura, mas nem precisava: A mulher retratada ali era a mesma das outras pinturas, ou seja, a própria Cecília!
O que faziam aquelas pinturas ali – justamente ali, no quarto de Cecília? E como as teria conseguido Cecília? Quando era jovem, Maurício apenas escrevia, nunca pintou nada, nem mesmo na época que namorou Cecília. Adriana só soube desse talento do irmão quando viajou até Jequitibá da Mata. E soube também naquele mesmo dia, que Maurício começou a pintar somente quando já estava morando lá, em Jequitibá.
Adriana precisava de alguma explicação.
Acordou a amiga, que se espantou com a visita inesperada, porém necessária já há tanto tempo... Abraçaram-se as duas num choro convulsionado, de tristezas, de angústias, de saudades e arrependimentos. Adriana quis saber da saúde de Cecília, que pouco lhe revelou: Disse apenas que andava triste, muito cansada e que a vida perdera o sentido.
Então, de repente, Adriana apontou as aquarelas na parede e perguntou-lhe diretamente:
__O que significa isso, Cecília? Como as conseguiu?
Sabendo que seria difícil ocultar qualquer coisa de Adriana, Cecília resolveu contar tudo.
Chorando, disse-lhe que sem esperar encontrara Maurício na cidade natal de Heitor, quando ele a levou para passar uns dias de férias. Desde aquele dia, quando descobriu que nada tinha se acabado entre eles, pois sempre esperaram a prometida cura que o tempo jamais trouxe, e que os dois realmente viveram a vida toda só na ilusão de um esquecimento que nunca houve de fato, Cecília então definhou-se na tristeza que já existia, mas que se tornou muito mais forte a partir daquele dia.
Adriana ouviu tudo sem interromper a amiga, compreendendo que justamente o mesmo ocorreu com Maurício, esvaziando-lhe o espírito e jogando-o num hospício. Mas apesar da fragilidade da amiga, precisava lhe dar a amarga notícia do irmão. Cecília merecia viver, passar aquela fase. Saber que seu irmão já era morto, talvez fosse bom a Cecília, porque passado o primeiro choque da notícia, as pessoas sentem que após a morte de alguém precisamos nos reerguer e continuar a vida adiante. E assim contou Adriana sobre a morte do irmão, poupando, é claro, de dizer à amiga que acontecera num Hospital para doentes mentais. Limitou-se a dizer apenas que quando chegou em Jequitibá da Mata, seu irmão acabava de morrer após longo período doente e internado, não dando tempo sequer de visitá-lo em vida.
Cecília ouviu a notícia, porém, parece que nem forças ela tinha para chorar...
Cecília quis saber qual o dia da morte, e Adriana respondeu-lhe com precisão:
__ Hoje se completam quatro meses... Foi num dia ensolarado de Novembro.
Cecília ocultou o rosto no travesseiro, murmurando:
__ Eu já sabia que tinha sido em Novembro... Os pássaros me avisaram... Mas eu precisava apenas ter uma certeza...
Em seguida, apontou para um baú ao pé da cama e pediu que Adriana o abrisse e tirasse lá de dentro um envelope lacrado.
Então Cecília disse, com muito esforço (sua voz já estava fraca demais):
__É para você, querida amiga. A letra é minha composição. Mas a melodia será por tua conta.
Cecília queria aprender música quando era jovem, mas não alcançou o objetivo. Porém, deixou guardada dentro do baú a única canção que sua inspiração um dia, após a viagem, já nos últimos meses de vida, impeliu-a para escrever.
Se não colocou notas musicais porque não aprendeu, pelo menos deixou a poesia rascunhada no papel que deu à sua amiga. E a poesia que Adriana levou dentro do envelope era a letra de uma canção chamada “O tempo”, e se não me falha a memória, reproduzo-a aqui, fielmente:

O TEMPO (*)

Há um novo tempo lá fora,
Trazendo o destino dos tempos de outrora
E que voando ligeiro, no ninho da vida pousou,
Da PRIMEIRA VIDA, vivendo o amor.

É a Terra que gira e as pedras se encontram,
Avivando lembranças, trazendo a dor.
Que sangra no peito, até a morte da alma
Da PRIMEIRA MORTE, no perder de um amor.

São esperanças perdidas, e saudades sentidas,
No vagar das horas, de amargo sabor.
Que levam com elas o sentido da vida
Na SEGUNDA MORTE, de um impossível amor.

E o tempo levou – consigo as Eras,
Suspiros e esperas, desejo e calor,
Carregando em seus braços, gemidos e abraços,
Na TERCEIRA MORTE, de alguém, só de amor.

Mas há um tempo novo agora,
De luzes e cores, de perfumes e flor,
Trazendo alegria, paixão, paz, poesia,
Numa SEGUNDA VIDA, nas asas do amor!

Cecília


Heitor chegou da roça naquele momento. Não podia deixar Cecília muito tempo sozinha, por causa da fragilidade de sua saúde. Vendo que o homem chegava, Adriana sentiu que era hora de ir embora, pois a partir daquele momento, Heitor cuidaria de tudo.
Cecília precisava descansar.
Despediu-se dos dois, com um breve aperto de mãos em Heitor e com um longo e apertado abraço em Cecília, pressentindo que seria aquele seu último abraço na amiga.
E chorando, se foi.


Cecília apoiou sua mão no braço de Heitor, e com um fio de voz pediu:
__Por favor, não me tire nunca daqui. Aconteça o que acontecer, mas não me tire daqui, jamais. Quero estar ao lado do cactus.
Heitor prometeu, sem nada perguntar, achando que Cecília apenas delirava naquele momento.
O dia seguinte raiou placidamente e a aurora rosada trouxe os primeiros raios de Sol, que douraram o pico das montanhas mais altas, enquanto um fio de luz penetrando pelas frestas da janela pousou suavemente no rosto imóvel de Cecília. Foi quando Heitor constatou que Cecília não mais respirava.
A jovem mulher expirou como um passarinho durante a madrugada – se é que passarinhos expiram pacificamente, porque depois da grande mentira que me falaram sobre o tempo, quando me disseram que ele cura as dores, não acredito mais em certas coisas que me falam a respeito de passarinhos, tempos, perdas, desilusões, e de qualquer outro ditado popular. Mas a verdade é que naquela madrugada Cecília descansou deste mundo calmamente, sem um gemido, nem lamento. O rosto aparentava um semblante sereno, manteve os olhos fechados e os lábios entreabertos, por onde expirou sua vida.
E seu corpo foi levado até o Arraial, onde numa singela Missa de corpo presente, o Padre encomendou-lhe a alma.
Conforme foi prometido em seu leito de morte, Heitor trouxe-a de volta e depositou seu corpo numa cova que fez abrir ao lado do grande cactus que há na porteira.
Ali descansa agora o corpo de Cecília, como ela mesmo pediu horas antes da morte: “Não me tire nunca daqui”.
Heitor mudou-se dias depois da Fazenda Águas Frias para as terras de seus pais, na fazenda que faz divisa com as terras de Getúlio. Não houve mais partilhas nem inventários. Os parentes e familiares que restaram da família de Getúlio – e que agora moravam em Curuajubá – em entendimento com a Companhia de Construções, resolveram, por fim, vender o que sobrou daquelas terras, e dividiram entre si o dinheiro, entregando a Heitor a parte de Cecília. E deixaram o passado para trás.



(*) Interpretando a canção de Cecília:

1ª Estrofe: Um pressentimento de Cecília, que anuncia um novo tempo, onde o destino traz de volta o passado. A “primeira vida” ao qual se refere, é o tempo feliz de outrora, quando ainda namorava Maurício.

2ª Estrofe: Cecília fala do reencontro, que reavivou as lembranças da “primeira morte”. A primeira morte foi causada pela dor que sangra no peito até matar a alma, cujo motivo foi a tristeza e agonia da saudade, que aconteceu assim que se afastaram um do outro, na juventude.

3ª Estrofe: Cecília fala dos sentimentos tristes, das esperanças perdidas e da saudade que restou, ao reviver o passado, e que tornam lentos o passar das horas, causando a “segunda morte”, que é a perda do sentido da vida, ao constatar que o amor ainda existe, porém, é impossível de ser vivido.

4ª Estrofe: Cecília fala da morte física, sua “terceira morte”, que enfim, chegará para todos nós um dia, e que leva com ela todos os nossos sentidos, nossos sentimentos e nossos desejos.

5ª Estrofe: Na “segunda vida”, Cecília prediz o futuro, que você vai saber no próximo capítulo!