Capítulo 25: "Jequitibá da Mata"



Maurício morava agora em São Paulo, na Capital, onde bem ou mal tentava se adaptar à nova vida. Uma vida estranha e sofrida para um rapaz pobre, desiludido e que acabava de chegar do interior de Minas Gerais, sozinho.
Foi trabalhar no Mercado Municipal, que contando já com algumas décadas de existência, estava no auge de seu funcionamento, proporcionando um serviço intenso e exaustivo ao trabalhador braçal. Era um trabalho ingrato, de ajudar a abastecer as bancas de frutas e legumes, sendo muito desproporcional o salário que recebia em contraste com o esforço no trabalho e o muito peso que devia carregar. Morava num quarto de pensão que lhe cobrava barato, ali mesmo, próximo do Mercado – num bairro chamado Brás.
Trabalhando sempre calado, Maurício conquistou poucos amigos. Porém, entre as amizades que fez, Divino era quem lhe inspirava mais confiança: O moço também viera do interior, trabalhava no Mercado Municipal exercendo a mesma função de Maurício e morava na mesma pensão. Sempre que conversavam, cada um contava partes de suas histórias, falavam da infância na roça, e da vida sossegada que deixaram para trás...

Rio Preto é um estreito rio cujas margens fazem divisa entre Minas Gerais e Rio de Janeiro. Há muitas cidades ribeirinhas ou próximas dele, que se beneficiam de seu curso d'água. Algumas cidadezinhas e povoados são tão pacatos que às vezes parecem estar esquecidos no tempo e no espaço geográfico. Tão esquecidos quanto Acemira.
Uma dessas povoações está graciosamente vizinha à ferrovia que passa por aquelas terras desde o século passado. Seu nome – maior até que o povoado – é Jequitibá da Mata. Na cidade há uma praça central com a Igreja Matriz, toda feita em adobe, com paredes caiadas de branco e azul, e sua única torre sustentando o sino. As ruas da cidade são estreitas e quase todas partem do centro seguindo até a periferia, formando um desenho radial: Ao Norte, Leste e Oeste, acabam nos matos ainda virgens; ao Sul, vai até as margens do Torvelinho – um riacho de águas barrentas e que leva suas águas até o Rio Preto, a poucos quilômetros dali. Cidadezinha muito bem cuidada, tanto a praça quanto as ruas são pavimentadas de paralelepípedos de rocha, o calçamento eterno que jamais se acaba. Ao leste, o terreno montanhoso dificulta a viagem em direção ao interior de Minas Gerais, porém mesmo assim a ferrovia faz seu caminho, costurando Serras e vales. Suas casas são baixas e simples. São casas típicas do interior, que ainda possuem portas e janelas com taramelas, quintais espaçosos onde as pessoas criam porcos e galinhas, e muitas casas ainda possuem bancos de pedra que são assentados sobre a calçada e recostados à parede da casa, voltados para a rua, onde senhores no fim da tarde se sentam para conversar, alisando palha e picando o fumo do cigarro. Uma linda e pacífica cidadezinha encravada na Zona da Mata da Região Sudeste do Brasil.
Essas pequenas cidades do interior, encravadas em terrenos tão primitivos, longe do desenvolvimento urbano das metrópoles, são pitorescas: Muda-se o clima, a topografia e às vezes o sotaque também. Mas o resto é tudo igual: todo mundo se conhece, todo mundo vive tranquilo e os dias são sempre iguais. Há histórias e segredos, confissões e dissimulações. Famílias que se unem ou se dissolvem, e de ponta a ponta todo mundo sabe da vida de cada um de seus habitantes, ainda que muitas vezes as conversas são ditas a meio tom, em sinal de respeito ou de falso segredo...
É assim em Jequitibá da Mata, é assim em Acemira também. Não importa o quão longe estejam uma da outra, as cidadezinhas do interior se parecem em muitos aspectos.

 Divino nasceu em Jequitibá da Mata. Mesmo sendo um filho bastardo, sempre soubera quem foi seu pai, que nunca se aproximou dele; conheceu também seus meio-irmãos avistando-os “de longe”, quando eles eram apontados discretamente pela mãe, quando os via passar nas ruas. O que Divino sabia da família de seu pai, é que o velho nunca revelou à esposa e aos filhos legítimos a breve aventura que tivera com sua mãe, portanto sua mãe sempre lhe proibira de se aproximar dos próprios irmãos. Soubera também que um de seus meio-irmãos tinha a sua idade, tendo nascido quase na mesma hora, pois enquanto sua mãe “paria” sozinha dentro de um pobre casebre, enrolada em cobertores sobre uma cama de colchão de palha, ardendo em febres e manchada de sangue – como se a vida que levavam fosse uma vida de cães – noutra casa a mulher legítima de seu pai também dava à luz uma criança, auxiliada pela parteira da cidade e coberta pela atenção do marido. A vida de Divino foi sempre sofrida e sua mãe era discriminada na cidade por ter-lhe nascido um filho sem pai. Paupérrimos, muitas vezes sem ter o que comer ou vestir, a mãe ganhava a vida e sustentava o filho lavando as roupas de outras famílias.
Mas desde que sua mãe morrera, Divino passou a receber uma pequena mesada do pai, um compromisso que ficou combinado num único contato que teve com ele, dois dias depois do enterro de sua mãe, onde o velho prometeu deixar-lhe todos os meses um envelope contendo alguns tostões, jogado por baixo da porta do casebre onde Divino morava, sob o juramento de que o rapaz não revelasse a ninguém a origem daquele dinheiro! O rapazinho começou a trabalhar bem cedo, numa chácara na periferia da cidade, onde seus patrões plantavam legumes e verduras. Era econômico: aprendera com a mãe a valorizar cada centavo ganhado.
Foi então que, ajuntando esse dinheiro, Divino resolveu vir à São Paulo e investir as poucas economias em estudos. Divino sonhava em se formar em algum ramo da Medicina: Fosse médico ou farmacêutico, aquilo que suas capacidades pudessem alcançar. Deixou o endereço da pensão com o velho, que manteve a promessa de mandar-lhe o dinheiro todos os meses. Certo dia, quando o dinheiro cessou, Divino descobriu que seu pai e todos seus meio-irmãos tinham se mudado de Jequitibá da Mata, para um lugar longínquo em busca de uma herança. E o rapaz ficou só no mundo, outra vez. Como o dinheiro da mesada cessou e com o salário do Mercado Municipal mal dava para se sustentar, Divino precisou interromper seus estudos. E mergulhando inteiramente no serviço braçal, acabou-se no trabalho pesado dentro do Mercado, onde viera conhecer Maurício, tempos depois.

Maurício revelava pouco de sua vida que tão dolorosamente se despedaçou na adolescência: Falava da infância e da saudade dos pais, lamentando a distância e a dificuldade de comunicação com eles. Os Correios naquele tempo levavam mais de um mês para entregar uma carta e trazer sua resposta. O País com sua malha viária ainda incompleta, apresentava dificuldades na comunicação. Não havia telefone disponível ao alcance de Maurício e nem todas cidades possuíam telégrafos. Automóveis eram raros e poucas cidades dispunham de um Posto de Combustível. Ainda mais cidadelas tão pequeninas quanto Acemira... Isso era tudo que contava de si, e nada mais. Se antes, na adolescência Maurício pensara em mudar-se para São Paulo e estudar, agora sua única preocupação era o dia presente, a sobrevivência do dia a dia: trabalhar durante o dia para comer à noite, e nada mais. Acabou toda a sua vontade de estudar, de ser “alguém”, um doutor, e de vencer na vida. Acabou toda e qualquer ilusão que os sonhos da adolescência pudessem alimentar. No coração de Maurício não havia mais a chama do entusiasmo que move as pessoas. E na sua boca, morreu a vontade de falar de si próprio até mesmo para seu grande amigo Divino.
Foi então quando Divino lhe fez um convite: conhecer Jequitibá da Mata. A tanto tempo queria voltar lá, mas nunca se animou a empreender tal viagem. Com poucos recursos, era possível que terminasse a viagem a pé e com fome, por isso nunca se animou a viajar sozinho. Mas quem sabe na companhia de um amigo, a viagem não seria tão solitária e má?
Além disso, a vida sofrida em São Paulo, vivendo numa quase miséria, enterrados até o pescoço nas caixas de frutas e legumes como diaristas, num serviço braçal e pesado, não poderia jamais resultar em algum futuro para eles.
Se nesta viagem os moços conseguissem alguma ocupação, algum serviço em Jequitibá da Mata, melhor seria que ficassem por lá. Maurício aceitou o convite: Não tinha nada a perder.
E naquele mesmo final de semana, receberam suas últimas diárias no Mercado Municipal e decididos, partiram para Jequitibá da Mata.
Risco por risco – pensou Maurício – aventurar-se naquela cidade não seria pior do que a vida em São Paulo. Além disso, Divino tinha um dom natural pela pintura, que sempre praticava nas horas livres, na pensão. O amigo prometera lhe ensinar tudo que sabia sobre artes em Aquarela, e Maurício se interessou por isso. Afinal, leituras, desenhos e poesias eram assuntos que lhe chamavam a atenção desde criança...
Em Jequitibá da Mata haveriam de encontrar serviço, pensou Maurício. O que, de fato, aconteceu.
A cidade agradou Maurício, que desde o primeiro momento sentiu-se “em casa”, lembrando de Acemira, outra cidadezinha do interior, mas tão longe dali... Maurício carregou no coração suas dores, mas nem seus olhos nem ouvidos o machucariam outra vez com imagens ou palavras que o machucaram tanto, antes de abandonar Acemira.
A vida talvez recomeçasse, agora num ambiente mais familiar e menos hostil que a vida em São Paulo.
O casebre de Divino foi outra vez ocupado. Seu dono, após longa ausência, finalmente chegara! Era pequenino e estivera o tempo todo fechado. Possuía dois quartos – um deles foi o quarto de sua mãe. Havia uma saleta e também uma pequena cozinha. Um pequeno banheiro ficava do lado de fora. O quintal era grande e precisava de uma boa limpeza. Mas o lugar era o suficiente, era tudo que precisavam para abrigá-los depois de um árduo dia de trabalhos.





 


Conseguiram algum serviço na região: Maurício se empregou no pequenino Empório que havia na cidade: O trem que passava ali perto sempre trazia os mantimentos e toda a mercadoria encomendada pelo patrão.
A função de Maurício era viajar até Imperador, que era a cidade próxima onde havia a Estação de Trens, e trazer de lá as encomendas e os pedidos do Empório. Além disso, também ajudava nas vendas do balcão e na faxina do estabelecimento.
Enquanto isso, seu amigo Divino voltou à antiga função de hortelão na chácara ao lado da cidade, que abastecia a região com verduras e legumes. E nas horas vagas, ensinava Maurício na arte de pintura em aquarelas.