Já
disse que gosto de observar a estrada que vem da Serra, não é? Pois
meu ponto preferido é bem aqui, defronte à antiga sede da Fazenda
Águas Frias.
Hoje está abandonada em ruínas, pois há muito tempo, seus
herdeiros se foram para a cidade. Um a um, a começar de Narciso –
o filho mais velho, que
foi o primeiro a vender seu pedaço da herança.
Aos poucos, cada um vendeu sua parte para o mesmo comprador. E a
Fazenda que um dia fora dividida entre os filhos, foi reunida outra
vez em um único bloco de terras contínuas, nas mãos de uma
Empresa, exceto os pequenos pontos que já estavam vendidos ou
cedidos aos antigos agregados e seus descendentes. As terras foram
compradas por uma tal “Construtora”, que pretendia formar aqui um
enorme complexo turístico. Pretendiam fazer uma estância de
veraneio e um hotel no meio da natureza, com janelas voltadas para as
montanhas, para o riacho e para o capão de mato. Queriam fazer
também um centro de terapias, um spa e um local para retiros
religiosos, um condomínio de luxo, enfim, foram muitos planos
imaginados e pouco dinheiro disponível, num lugar distante de tudo,
numa época ainda atrasada.
E o planejamento não deu certo por falta de recursos financeiros. A
administração da empresa calculou mal os recursos necessários em
tal investimento.
As terras foram compradas por aquela empresa a preço de banana – e
o motivo disso foi que as terras já cansadas, envenenadas e
maltratadas deixaram de produzir, empobrecendo seus antigos donos.
Esses, tinham pressa em se mudar para a cidade e dar continuidade aos
estudos dos filhos, quiseram também abrir pequenos comércios na
área urbana com o pouco dinheiro que ainda restava, em vez de
permanecer aqui e aplicar inutilmente na recuperação do terreno.
Tudo isso contribuiu para a liquidação das terras, na má avaliação
de tudo aquilo que venderam. E tanta terra, com tantas histórias
herdadas das muitas gerações, foi vendida a estranhos a preço de
quase nada!
E mesmo assim com um investimento inicial tão baixo, a Construtora
não pôde dar continuidade aos seus planos por falta de um bom
projeto, por falta de uma boa administração e por falta de uma
melhoria nas estradas, que jamais aconteceu.
Assim, sem o investimento necessário para se transformar, a terra
foi abandonada à sua própria sorte até mesmo pela Construtora; e
todas as suas construções permaneceram intocadas, com o mesmo
aspecto primitivo de quando eram administradas pelos antigos donos.
Terra que ficou apenas mais abandonada e destruída pelo tempo…
Muito mais abandonada e destruída!
E daqui desse ponto onde estou, tenho ampla visão da Sede: daqui
posso ver a família de gambás que fizeram lá sua morada, entrando
e saindo pelas frestas das paredes e das portas. E o jaó que
timidamente aparece de vez em quando a espiar o terreirão.
Esse lugar que outrora foi tão povoado de alegrias, falas, cantos,
rodas e danças, comidas e gentes… tem hoje uma total ausência de
vidas humanas! A construção é bem grande e eu conheci pessoalmente
o antigo dono. Aliás, quem, morando aqui nessa região, não o
conheceu?
Seu nome era Getúlio, e este homem possuiu durante muitos anos o
único automóvel que havia nessas terras: Um calhambeque “Ford T”,
popularmente conhecido como “Ford bigode”. Era um bonito
calhambeque, mas permanecia sempre estacionado na garagem e pouco
circulou por essas estradas preparadas para o tráfego de animais,
pois com a dificuldade de se encontrar combustível, acabou
tornando-se um objeto inútil (o automóvel foi trazido do Rio de
Janeiro onde aos poucos se tornava popular, mas aqui na região havia
um único posto de combustível, que ficava em Curuajubá e mesmo
assim vivia frequentemente fechado).
Getúlio era filho único de um tal “Capitão Francisco” e herdou
sozinho as terras da Fazenda Águas Frias. Mas a propriedade que
Getúlio recebeu de herança já foi bem maior quando ainda vivia seu
pai! Como eu já disse, as casinhas salpicadas aqui e ali ao redor da
estrada foram outrora habitadas por agregados, que vinham para
trabalhar a terra. E em troca de sua mão de obra, esses agregados
receberam de Capitão Francisco: casas, comida e algum dinheiro para
cuidar da família. Com o tempo, o Capitão envelheceu e antes de
passar a herança a Getúlio, acabou por vender ou doar as casinhas
com um pedaço de chão aos agregados, que, por fim, formaram
pequenos núcleos subdividindo entre seus filhos o pequeno chão,
povoando assim toda a terra. O Getúlio que eu conheci ainda possuiu
bastante terra em seu tempo, embora já houvessem muitos agregados
estabelecidos ao redor. Alguns em suas próprias casinhas, cedidas
pelo Capitão Francisco. Outros, porém, morando ainda sobre terras
de propriedade da Fazenda. E teve Getúlio sete filhos: três
homens e quatro mulheres.
A Sede é tão antiga que aos fundos ainda existem vestígios do muro
construído por escravos – Um muro cuja função era proteger a
parte mais baixa dos quintais da Sede de toda aquela enchente que
alagava as margens do riacho nos tempos da chuva. E a antiga senzala
que ficou vazia depois da alforria ainda está em pé, transformada
numa imensa tulha desde o tempo de Capitão Francisco, que passou a
armazenar nela os grãos da colheita. Perdeu apenas o telhado, que já
desabou. As jabuticabeiras do quintal já caducaram há muito tempo e
quase não produzem mais. Suas sementes – levadas pelo vento,
chuvas e pássaros, brotaram mais longe, nalgum lugar onde puderam
crescer sem disputar o Sol com a copa frondosa do antigo jabuticabal.
O resto do pomar cresceu por si só, num emaranhado de árvores
frutíferas – algumas com quase dois séculos de existência.
A casinha do moinho também já ruiu e a pedra de mó – nua,
despida de seu telhado e de seus equipamentos, alumia agora aos raios
de Sol, como a calva de um ancião. Já não gira mais porque a água
do riacho corre livre por baixo dela, sem as pás de madeira para
girar.
O poço ainda está aqui, perto da porta da cozinha e não foi
soterrado. Com certeza aquela moeda também permanece lá dentro,
desde o dia em que foi jogada por um rapaz sonhador… Mas ao poço
lhe falta a corda e o sarilho, por onde a filha mais nova de Getúlio,
Amélia, puxava a água – límpida e fresca.
O pé de romã, apesar de ser uma árvore naturalmente pequena, se
tornou um vegetal de troncos largos e caule robusto; quando o
conheci, era pouco mais alto do que eu! Mas a idade se encarregou de
lhe dar volume.
Me deixa triste ver o que sobrou do monjolo…. Antes poderoso,
mastigava dia e noite os grãos de milho para fazer canjica e os
grãos de arroz para tirar-lhe a casca. Sua música – uma percussão
cadenciada, ressoava madrugada afora, com o balancete gangorrando
sempre, num incansável vai e vem socando os grãos com sua mão de
madeira forte e maciça; e de manhã os grãos já estavam
beneficiados. Hoje lhe resta somente uma tora carcomida, dormindo
para sempre, de bruços sobre o pouco que restou do pilão.
Também levaram embora o carneiro mecânico, aquela bomba hidráulica
que empurrava a água do riacho pelas mangueiras enviando-a aos mais
diversos pontos da Sede e para as mais diversas finalidades, como
aguar a horta, encher os cochos dos animais no curral, lavar e
abastecer a pocilga (para quem não sabe, é o lugar onde se confina
os porcos), etc.
Deixaram apenas a fossa onde ele estava, que sem a manutenção
necessária, a água do riacho já escavou e destruiu.
O paiol foi invadido por animais silvestres à procura de alimento, e
o tempo lhe fez um estrago enorme, mudando totalmente seu aspecto. Na
ocasião da compra do Ford T, Getúlio mandou fazer “um puxadinho”
no telhado do paiol. Pavimentou o chão com lajes de pedras tiradas
lá do riacho e levantou uma parede nos fundos. Fez assim uma
garagem, onde deixava guardado sua preciosidade: O automóvel...
O carro se foi há muito tempo, quando a família, em dificuldades
financeiras por causa de um empréstimo na Cooperativa, venderam-no
para ajudar a saldar dívidas. E da garagem ao lado do paiol só
sobraram as pedras de laje, mais nada.
Do curral – com seus cochos vazios e cancelas abertas, rangindo de
maneira lúgubre a cada lufada de vento mais forte – as paredes
enegrecidas exalam a solidão.
Aliás, tudo agora exala vazio e solidão. O piado amargo do jaó, o
canto triste do urutau e o lamento do curiango à noite refletem bem
a situação de penúria em que ficou essas terras por aqui. Hoje,
pouquíssimas pessoas passam pela estrada diante da Fazenda. E as
pessoas que passam, dizem ouvir aqui um som abafado, de músicas
antigas sendo tocadas ou cantadas. Um e outro mais corajoso já
entrou na casa procurando a origem dos sons, mas nada encontrou.
Outros, limitam-se a passar diante da Sede cabisbaixos,
persignando-se com o sinal da cruz... Atitude, aliás, que não tem
ajudado em nada a resolver o problema. Mas os sons – dizem alguns –
podem ser apenas boatos de viajantes e andarilhos medrosos!
Mas ainda assim, gosto de estar aqui e observar a estrada desse
ponto… diante de mim há uma velha porteira e ao seu lado um enorme
cactus, com mais de dois metros de altura. Seu caule principal já se
tornou cerne, madeira dura como de uma árvore qualquer, e forte o
suficiente para sustentar as ramificações cada vez mais altas e
pesadas, cascudo e velho, tão antigo como os tempos em que os filhos
de Getúlio eram moços solteiros e Amélia – a filha mais nova –
ainda vivia, e os carros de bois circulavam na estrada, as terras
eram cultivadas, e havia Escola Rural, e as crianças ainda inocentes
viviam felizes.
Naquele tempo as crianças gostavam de escrever-lhe os nomes, ferindo
a casca do cactus. Tomando cuidado com os espinhos e riscando com a
ponta do canivete, deixavam no caule ainda tenro uma cicatriz em
forma de letras iniciais ou desenhos, que logo se ocultavam pelos
brotos que surgiam. Às vezes eram vistos novamente, se por algum
motivo os brotos caíssem ou fossem arrancados. Todavia, notava-se
que o próprio cactus se encarregava de apagar a cicatriz, fazendo
surgir, por baixo da ferida, novas camadas de celulose, expulsando a
cicatriz para fora, até que por fim, com o tempo todas elas
desapareciam.
Mas isso nem sempre funcionou. E nem todas as marcas o tempo apagou.
Crianças travessas! Ainda hoje posso ver – gravados no cactus –
duas iniciais dentro de um coração desenhado!