Capítulo 2: "As terras de Getúlio"




Já disse que gosto de observar a estrada que vem da Serra, não é? Pois meu ponto preferido é bem aqui, defronte à antiga sede da Fazenda Águas Frias.
Hoje está abandonada em ruínas, pois há muito tempo, seus herdeiros se foram para a cidade. Um a um, a começar de Narciso – o filho mais velho, que foi o primeiro a vender seu pedaço da herança.
Aos poucos, cada um vendeu sua parte para o mesmo comprador. E a Fazenda que um dia fora dividida entre os filhos, foi reunida outra vez em um único bloco de terras contínuas, nas mãos de uma Empresa, exceto os pequenos pontos que já estavam vendidos ou cedidos aos antigos agregados e seus descendentes. As terras foram compradas por uma tal “Construtora”, que pretendia formar aqui um enorme complexo turístico. Pretendiam fazer uma estância de veraneio e um hotel no meio da natureza, com janelas voltadas para as montanhas, para o riacho e para o capão de mato. Queriam fazer também um centro de terapias, um spa e um local para retiros religiosos, um condomínio de luxo, enfim, foram muitos planos imaginados e pouco dinheiro disponível, num lugar distante de tudo, numa época ainda atrasada.
E o planejamento não deu certo por falta de recursos financeiros. A administração da empresa calculou mal os recursos necessários em tal investimento.
As terras foram compradas por aquela empresa a preço de banana – e o motivo disso foi que as terras já cansadas, envenenadas e maltratadas deixaram de produzir, empobrecendo seus antigos donos. Esses, tinham pressa em se mudar para a cidade e dar continuidade aos estudos dos filhos, quiseram também abrir pequenos comércios na área urbana com o pouco dinheiro que ainda restava, em vez de permanecer aqui e aplicar inutilmente na recuperação do terreno. Tudo isso contribuiu para a liquidação das terras, na má avaliação de tudo aquilo que venderam. E tanta terra, com tantas histórias herdadas das muitas gerações, foi vendida a estranhos a preço de quase nada!
E mesmo assim com um investimento inicial tão baixo, a Construtora não pôde dar continuidade aos seus planos por falta de um bom projeto, por falta de uma boa administração e por falta de uma melhoria nas estradas, que jamais aconteceu.
Assim, sem o investimento necessário para se transformar, a terra foi abandonada à sua própria sorte até mesmo pela Construtora; e todas as suas construções permaneceram intocadas, com o mesmo aspecto primitivo de quando eram administradas pelos antigos donos. Terra que ficou apenas mais abandonada e destruída pelo tempo… Muito mais abandonada e destruída!
E daqui desse ponto onde estou, tenho ampla visão da Sede: daqui posso ver a família de gambás que fizeram lá sua morada, entrando e saindo pelas frestas das paredes e das portas. E o jaó que timidamente aparece de vez em quando a espiar o terreirão.
Esse lugar que outrora foi tão povoado de alegrias, falas, cantos, rodas e danças, comidas e gentes… tem hoje uma total ausência de vidas humanas! A construção é bem grande e eu conheci pessoalmente o antigo dono. Aliás, quem, morando aqui nessa região, não o conheceu?
Seu nome era Getúlio, e este homem possuiu durante muitos anos o único automóvel que havia nessas terras: Um calhambeque “Ford T”, popularmente conhecido como “Ford bigode”. Era um bonito calhambeque, mas permanecia sempre estacionado na garagem e pouco circulou por essas estradas preparadas para o tráfego de animais, pois com a dificuldade de se encontrar combustível, acabou tornando-se um objeto inútil (o automóvel foi trazido do Rio de Janeiro onde aos poucos se tornava popular, mas aqui na região havia um único posto de combustível, que ficava em Curuajubá e mesmo assim vivia frequentemente fechado).
Getúlio era filho único de um tal “Capitão Francisco” e herdou sozinho as terras da Fazenda Águas Frias. Mas a propriedade que Getúlio recebeu de herança já foi bem maior quando ainda vivia seu pai! Como eu já disse, as casinhas salpicadas aqui e ali ao redor da estrada foram outrora habitadas por agregados, que vinham para trabalhar a terra. E em troca de sua mão de obra, esses agregados receberam de Capitão Francisco: casas, comida e algum dinheiro para cuidar da família. Com o tempo, o Capitão envelheceu e antes de passar a herança a Getúlio, acabou por vender ou doar as casinhas com um pedaço de chão aos agregados, que, por fim, formaram pequenos núcleos subdividindo entre seus filhos o pequeno chão, povoando assim toda a terra. O Getúlio que eu conheci ainda possuiu bastante terra em seu tempo, embora já houvessem muitos agregados estabelecidos ao redor. Alguns em suas próprias casinhas, cedidas pelo Capitão Francisco. Outros, porém, morando ainda sobre terras de propriedade da Fazenda. E teve Getúlio sete filhos: três homens e quatro mulheres.
A Sede é tão antiga que aos fundos ainda existem vestígios do muro construído por escravos – Um muro cuja função era proteger a parte mais baixa dos quintais da Sede de toda aquela enchente que alagava as margens do riacho nos tempos da chuva. E a antiga senzala que ficou vazia depois da alforria ainda está em pé, transformada numa imensa tulha desde o tempo de Capitão Francisco, que passou a armazenar nela os grãos da colheita. Perdeu apenas o telhado, que já desabou. As jabuticabeiras do quintal já caducaram há muito tempo e quase não produzem mais. Suas sementes – levadas pelo vento, chuvas e pássaros, brotaram mais longe, nalgum lugar onde puderam crescer sem disputar o Sol com a copa frondosa do antigo jabuticabal. O resto do pomar cresceu por si só, num emaranhado de árvores frutíferas – algumas com quase dois séculos de existência.
A casinha do moinho também já ruiu e a pedra de mó – nua, despida de seu telhado e de seus equipamentos, alumia agora aos raios de Sol, como a calva de um ancião. Já não gira mais porque a água do riacho corre livre por baixo dela, sem as pás de madeira para girar.
O poço ainda está aqui, perto da porta da cozinha e não foi soterrado. Com certeza aquela moeda também permanece lá dentro, desde o dia em que foi jogada por um rapaz sonhador… Mas ao poço lhe falta a corda e o sarilho, por onde a filha mais nova de Getúlio, Amélia, puxava a água – límpida e fresca.
O pé de romã, apesar de ser uma árvore naturalmente pequena, se tornou um vegetal de troncos largos e caule robusto; quando o conheci, era pouco mais alto do que eu! Mas a idade se encarregou de lhe dar volume.

 
Me deixa triste ver o que sobrou do monjolo…. Antes poderoso, mastigava dia e noite os grãos de milho para fazer canjica e os grãos de arroz para tirar-lhe a casca. Sua música – uma percussão cadenciada, ressoava madrugada afora, com o balancete gangorrando sempre, num incansável vai e vem socando os grãos com sua mão de madeira forte e maciça; e de manhã os grãos já estavam beneficiados. Hoje lhe resta somente uma tora carcomida, dormindo para sempre, de bruços sobre o pouco que restou do pilão.
Também levaram embora o carneiro mecânico, aquela bomba hidráulica que empurrava a água do riacho pelas mangueiras enviando-a aos mais diversos pontos da Sede e para as mais diversas finalidades, como aguar a horta, encher os cochos dos animais no curral, lavar e abastecer a pocilga (para quem não sabe, é o lugar onde se confina os porcos), etc.
Deixaram apenas a fossa onde ele estava, que sem a manutenção necessária, a água do riacho já escavou e destruiu.
O paiol foi invadido por animais silvestres à procura de alimento, e o tempo lhe fez um estrago enorme, mudando totalmente seu aspecto. Na ocasião da compra do Ford T, Getúlio mandou fazer “um puxadinho” no telhado do paiol. Pavimentou o chão com lajes de pedras tiradas lá do riacho e levantou uma parede nos fundos. Fez assim uma garagem, onde deixava guardado sua preciosidade: O automóvel...
O carro se foi há muito tempo, quando a família, em dificuldades financeiras por causa de um empréstimo na Cooperativa, venderam-no para ajudar a saldar dívidas. E da garagem ao lado do paiol só sobraram as pedras de laje, mais nada.
Do curral – com seus cochos vazios e cancelas abertas, rangindo de maneira lúgubre a cada lufada de vento mais forte – as paredes enegrecidas exalam a solidão.
Aliás, tudo agora exala vazio e solidão. O piado amargo do jaó, o canto triste do urutau e o lamento do curiango à noite refletem bem a situação de penúria em que ficou essas terras por aqui. Hoje, pouquíssimas pessoas passam pela estrada diante da Fazenda. E as pessoas que passam, dizem ouvir aqui um som abafado, de músicas antigas sendo tocadas ou cantadas. Um e outro mais corajoso já entrou na casa procurando a origem dos sons, mas nada encontrou. Outros, limitam-se a passar diante da Sede cabisbaixos, persignando-se com o sinal da cruz... Atitude, aliás, que não tem ajudado em nada a resolver o problema. Mas os sons – dizem alguns – podem ser apenas boatos de viajantes e andarilhos medrosos!
Mas ainda assim, gosto de estar aqui e observar a estrada desse ponto… diante de mim há uma velha porteira e ao seu lado um enorme cactus, com mais de dois metros de altura. Seu caule principal já se tornou cerne, madeira dura como de uma árvore qualquer, e forte o suficiente para sustentar as ramificações cada vez mais altas e pesadas, cascudo e velho, tão antigo como os tempos em que os filhos de Getúlio eram moços solteiros e Amélia – a filha mais nova – ainda vivia, e os carros de bois circulavam na estrada, as terras eram cultivadas, e havia Escola Rural, e as crianças ainda inocentes viviam felizes.
Naquele tempo as crianças gostavam de escrever-lhe os nomes, ferindo a casca do cactus. Tomando cuidado com os espinhos e riscando com a ponta do canivete, deixavam no caule ainda tenro uma cicatriz em forma de letras iniciais ou desenhos, que logo se ocultavam pelos brotos que surgiam. Às vezes eram vistos novamente, se por algum motivo os brotos caíssem ou fossem arrancados. Todavia, notava-se que o próprio cactus se encarregava de apagar a cicatriz, fazendo surgir, por baixo da ferida, novas camadas de celulose, expulsando a cicatriz para fora, até que por fim, com o tempo todas elas desapareciam.
Mas isso nem sempre funcionou. E nem todas as marcas o tempo apagou. Crianças travessas! Ainda hoje posso ver – gravados no cactus – duas iniciais dentro de um coração desenhado!