Capítulo 22: "Testemunha"



Maurício voltou para Acemira. Explicou tudo aos seus pais, que escutaram a história atônitos, quase sem acreditar.
Adriana ficou indignada. Onde se vira uma coisa dessas? Conhecia seu irmão – seu amado irmão. Jamais deveriam ter colocado a moral de Maurício em suspeitas. Era um rapaz tímido e muito educado. Sempre foi obediente aos pais e seguiu os valores morais que seus pais lhe ensinaram. Não! Aquilo não estava acontecendo! A família de Cecília estava enganada a respeito do moço. Aquilo só poderia ser um imenso mal-entendido e que deveria ser resolvido.
“Visitarei Cecília e vou descobrir o que realmente está acontecendo”, pensou Adriana. Mas a oportunidade nunca surgia, pois a menina tinha medo de atravessar o lago sozinha no barco do Josias, e depois andar naquelas estradas sem nenhuma companhia. E Alécio já cansado e conhecendo bem o espírito belicoso de Narciso também não acompanharia. Os irmãos mais velhos não quiseram se meter no assunto. Na verdade, Alécio e os irmãos de Maurício tiveram a mesma ilusão de Cecília: “O tempo cura todas as coisas”. Atravessar o lago no batelão em companhia das professoras também não foi possível, embora o batelão trabalhasse todos os dias, de Domingo a Domingo, era preciso pagar uma taxa para fazer a travessia (menos as professoras, que faziam a travessia por conta da Prefeitura) e a menina simplesmente não tinha o dinheiro suficiente, que pagasse a viagem...
Passaram-se três meses e Maurício não conseguia se concentrar no serviço. Com o desânimo estampado no rosto, o rapaz parecia uma planta que se esquece de regar e antes de morrer de vez, perde o viço. Trabalhava mecanicamente e vivia calado. E da Sede, não chegava nenhuma notícia.


Aconteceria uma festa no Arraial, num Domingo. Narciso foi até a casa de Irene fazer-lhe o convite:
__Vocês deveriam ir à festa. Será grandiosa. Além disso, Cecília está muito reclusa, precisa se animar, precisa viver. Vão à festa!
Sem dizer sim ou não, Irene pensou em mandar Leandro, Cecília e as duas crianças mais jovens até o Arraial. Para eles, os eventos daquele lugar pouco a pouco perderam o interesse. Já estavam envelhecendo. Mas para os filhos, não. Precisavam viver. Seria bom para eles.
Naquele mesmo dia, Narciso certificou-se de que Heitor também estaria na festa.
Adriana, que três meses antes tinha planejado visitar Cecília, finalmente tomou coragem e emprestando dinheiro do irmão mais velho, decidiu atravessar o lago, pondo-se a caminho em direção à casa da amiga. Com a permissão dos pais, Domingo bem cedo entrou no batelão, que a levou do outro lado do lago. Maurício ainda estava dormindo, sem saber a intenção da irmã. E Adriana não sabia que aconteceria uma festa no Arraial, naquele dia.
Subiu todo o caminho que leva em direção à casa de Irene, passando antes pelo Arraial.
O destino quis assim...


Na casa de Irene, Leandro preparou os cavalos que levariam os quatro irmãos à festa no Arraial. Com palavras de ânimo, incentivou Cecília a acompanhá-lo, embora a moça, demonstrando todo seu desânimo, oferecesse resistência.
Todavia, diante da insistência do irmão, foi também.
Chegando lá, Narciso veio lhes receber e levá-los para dentro do grande barracão que foi armado na praça, diante da Igreja.
Haviam mesas alinhadas, dispostas de um jeito que as pessoas pudessem circular à vontade. Começariam os jogos de bingo e havia uma grande animação presente entre as pessoas. Narciso conduziu-os até sua mesa, onde sentava também sua esposa e Heitor.
Narciso tivera desde o princípio muita afeição por Heitor, talvez porque nunca tivera filhos – quem sabe seja esta a explicação – mas o fato é que Narciso realmente desejava ver Cecília e Heitor casados um dia.
O moço procurava ser simpático com Leandro, que diante dos últimos acontecimentos até aceitava a ideia de ver a irmã se casando com ele. E Heitor puxava conversa com Cecília a toda hora. Sempre educada, a moça respondia ora com um sorriso, ora com algum comentário, e assim prosseguiu o assunto entre eles na festa do Arraial durante toda aquela manhã.
__Dizem que para ter sorte no jogo, o rapaz precisa de um beijo de moça! – brincou Heitor.
__Temos aqui nossa donzela, Dona Cecília – respondeu o tio da moça.
Na mesa, eram todos gente de família, e a moça não estava só, mas acompanhada dos tios e irmãos. Uma brincadeira leve não seria mal interpretada pela ignorância das pessoas, pensou Cecília. Mas ainda assim, recusou-se.
__Sempre tive muito apreço por você, Cecília e te respeito bastante. Estamos aqui todos juntos, seus irmãos também estão. É apenas uma brincadeira, não precisa se ofender... – retrucou Heitor, fazendo um muxoxo, uma cara triste, já desistindo do beijo.
Adriana sem saber da festa, aproximava-se do Arraial, quando notou o grande movimento que acontecia por lá. Adriana ia continuar seu caminho, mas sentia sede. Resolveu então pedir um copo d’água antes de prosseguir adiante. Chegou-se na porta do barracão e olhando para dentro, conseguiu de longe discernir as pessoas que se encontravam ao redor de uma das mesas: Eram Narciso, sua esposa, Leandro, Cecília e seus dois irmãos mais novos. Também reconheceu Heitor, que nesse momento... recebia aquele beijo tão esperado, de Cecília!
Narciso olhava em direção à porta. Nada podia ser tão perfeito como aquele momento! Como as coisas se encaixaram na hora certa! Pois vira surgir na entrada do barracão aquela “moça de fora”, uma menina pouco mais nova que Maurício – aquela menina, filha do Alécio! Cutucou o braço de Leandro, apontando-a. Como era mesmo o nome daquela menina?
Ah, sim! Adriana.
Adriana percebeu que também foi reconhecida. Encabulada por presenciar tal cena, Adriana que esperava ouvir de Cecília (quando a encontrasse na casa dela) qualquer coisa, qualquer desculpa, jamais imaginou que poderia ser testemunha do que acabou de ver. Deu meia-volta e começou seu caminho para Acemira, voltando em direção ao batelão...
Leandro passou entre as pessoas, as cadeiras e as mesas, e da entrada do barracão procurava distinguir a presença de Adriana no meio da multidão. Mas não poderia jamais encontrá-la, pois a moça se ocultara por trás de um coqueiro, onde deixou que as lágrimas corressem pelo seu rosto.


Acabada a festa, voltaram contentes. Heitor despediu-se de de todos que estavam com ele à mesa, e foi embora. Leandro seguiu com Cecília e seus outros irmãos para casa também. Chegando lá, contou a Cecília o que tinha visto:
__Cecília, você não imagina o que eu vi na hora da festa...
__O quê? – perguntou Cecília.
__A filha de Alécio. Apareceu na porta da barraca por breves instantes. Mas apareceu bem na hora daquele beijo...
__Não é verdade! – Cecília não quis admitir.
Leandro, então confirmou:
__Sim, é verdade. Tio Narciso viu primeiro e me cutucou, apontando a menina. Eu olhei para a porta e vi que Adriana estava nos observando. E aí ela percebeu que eu a tinha visto, e foi embora. Ainda saí lá fora para procurá-la, mas no meio de tanta gente não foi possível...
Se Maurício já vivia um Inferno em vida, começou naquele momento o Inferno de Cecília também.
Embora pedisse um tempo ao moço, e soubesse o quão difícil era a situação entre ela, seus pais e o restante da família, todavia ela conservava em si alguma esperança (ainda que pequena) de que as coisas ainda se resolveriam e um dia reatariam o namoro; afinal, Cecília acreditava em Destino, e desde aquele dia em frente ao cactus, quando pediu uma redação ao menino – um rapazote tão tímido – sentiu Cecília bem no íntimo do coração que aquele seria o seu futuro marido. Era o “moço de fora” de quem ela tanto falou à tia Amélia...
Mas agora tudo estava perdido: Adriana viu a cena que aconteceu no barracão da festa, e logo em seguida foi embora sem esperar por explicações. Cecília imaginou o que haveria de ser contado por Adriana a Maurício. Aliás, se é que ele mesmo não estava por ali junto a irmã, e viu a cena também! O que fazer agora?
Durante a semana Heitor apareceu na casa de Irene. Foi pedir outra vez a mão da moça em namoro. Ela se recusou. Seu coração pertencia à outra pessoa. Mas o moço acreditava que agora era sua chance, afinal, tudo conspirava para que as coisas acontecessem como ele queria.
Não. Heitor não desistiria tão fácil.
O tempo seguia lentamente. Em casa, Adriana permanecia calada. O semblante era triste e vez por outra, observava seu irmão, que se preparava para ir trabalhar.
Maurício emagrecera bastante nos últimos meses. Chegou realmente a ficar doente, uma semana de febre alta. Agora se recuperava devagarzinho. Mas mudou bastante.
Sempre fora um rapaz quieto, desde criança. Mas desde que começou o namoro com Cecília, o rapaz acordou para a vida. Sorridente, amável com todos, carregava a alegria estampada no rosto. Quando as coisas deram errado, ele se fechou para as pessoas, tornou-se taciturno, sisudo. Maurício carregava perguntas em seu coração:
De sua cabeça não saía a imagem de Heitor naquele dia de Sábado, quando pela última vez Maurício viera de Acemira para namorar Cecília. Vira-o saindo da casa de Cecília. O que foi fazer lá? Logo depois, notou a diferença das pessoas em relação a ele. Então Cecília contou-lhe sobre a intriga de Narciso e pediu um tempo...
Esse tempo nunca mais terminara, pois o rapaz temia atravessar o lago, e ouvir um “não definitivo” de sua amada. Também Cecília nunca mais resolveu a situação com os pais – deduziu Maurício – porque nem Leandro apareceu em Acemira para convidá-lo a ir na Fazenda outra vez... Até que Adriana resolveu tomar suas dores e atravessou o lago em busca de notícias. Mas que notícias ela trouxe? Voltou calada e sempre fugia do assunto... Maurício percebeu um clima triste em volta de Adriana. Acabou de calçar as botas e se foi trabalhar.
Adriana enxugou uma lágrima no canto dos olhos.
“Maurício não merecia isto”, pensou Adriana.
À tarde, Maurício resolveu quebrar o silêncio. Reunindo coragem, fez a pergunta que tanto o atormentava:
__Então, minha irmã. Como foi sua visita à Cecília? – perguntou Maurício, já temendo a resposta.
Adriana respondeu, tentando adiar o máximo possível a amarga notícia:
__Não fui até a casa dela, Maurício. Houve uma festa no Arraial e vi muita gente por lá.
__Cecília também estava? – perguntou o moço.
__Sim, Cecília também estava lá – revelou Adriana.
__E então, como foi? O que vocês conversaram? – perguntou Maurício já aflito, percebendo que a irmã relutava em dar as respostas.
Então finalmente Adriana contou:
__Meu irmão, seja forte. Leandro e todos seus irmãos estavam na festa. Todos muito alegres, jogando bingo... Cecília estava lá, Heitor também estava. E os dois estavam juntos... Infelizmente, foi isto que eu vi. Então dei meia-volta e vim para casa.
A escuridão da angústia finalmente tomou conta do coração já corroído de Maurício, que logo respondeu à irmã:
__O que sinto agora, Adriana, é pior que a morte. Porque quando a morte chega, ela nos leva – ou então leva alguém que nós amamos. Nesse momento, quem vai embora para sempre sabe que tudo terminou naquela hora. E quem ficou, sabe que apesar de tão dura realidade, deve dar um passo adiante e prosseguir, pois uma nova fase virá. Um capítulo se encerra quando chega a morte e uma página da vida é virada. É o fim de um ciclo para quem morre – e o começo de outro, para quem fica. Porém no meu caso, é diferente: Vivemos os dois, próximos, quase um ao lado do outro. Mas apesar de tão próximos, não poderei estar junto a ela. Continuarei amando, mas apesar de amar, não serei correspondido. A partir de agora viverei amando, mas sem poder amar! E ainda verei o amor de minha vida entregando seu coração à outra pessoa. Para mim, querida irmã, não haverá ciclos que se fecham, nem páginas viradas. É uma situação muito dolorosa e difícil de suportar. Teria eu morrido mil vezes, e teria sido ainda melhor do que estar vivo agora, para ver e ouvir tudo isso. Não sei o que será daqui em diante, pois para mim, a vida não tem mais sentido.

Então Adriana poupou o irmão de saber o detalhe do beijo e não contou sobre isto, pois Maurício acabava de perder o chão sob seus pés.