Capítulo 4: "A família de Getúlio"



Getúlio ficou viúvo há muitos anos. Maria, sua mulher, adoeceu no parto de Amélia e nunca mais recuperou a saúde. Sempre recolhida, saía mesmo só para visitar a Capelinha que o marido construiu no alto de uma colina, próxima da Sede. Nunca mais saiu de casa a passear nos sítios vizinhos ou para ir ao Arraial, desde que nasceu Amélia. Recusava-se terminantemente a entrar no automóvel de Getúlio, pois sentia terror ao barulho do motor e da trepidação do carro. Todavia, quando Maria sentia saudade de alguma comadre, mandava chamar, através dos filhos ou de algum empregado:
__ Vai lá na casa da Salvina, diz para ela trazer um bocado de açúcar, que o meu é pouco. As galinhas estão botando muito, e vamos fazer umas “quitandas” aqui em casa. Assim posso prosear um bocado com ela. Quero saber como vai o afilhado, que outro dia espetou o pé com prego enferrujado.
__ A Palmira faz dias que não aparece…. Vai saber se tá perrengue! Menino, corre lá na casa dela, leva um bocado desse polvilho que já foi curado e veja se está tudo bem com ela. Se estiver boa, diga-lhe que venha aqui em casa! Manda trazer o Terço, que depois da prosa às vezes a gente reza um.
E desse jeito, uma ou outra comadre sempre vinha até sua casa visitá-la. Porém, Maria só saía mesmo para ir à Missa na Capelinha, ainda assim conduzida lentamente pelas mãos das filhas, num e noutro Domingo – se nesse dia ela estivesse se sentindo bem, pois vivia doente e frequentemente acamada.
Até que um dia adoeceu de vez e nunca mais se levantou. Passaram-se os anos e definhou na cama. Com o tempo, também perdeu a voz, depois a lucidez e, por fim, morreu. Cecília era bem pequena, quando perdeu a avó.
Os três tios de Cecília, homens sérios, calados, viviam para trabalhar. Narciso se casou pouco depois que a mãe faleceu. Se casou e a princípio foi morar nas terras do sogro. Os outros dois, Sebastião e Antônio, se casaram bem depois. Quando conheci a família de Getúlio, esses dois eram solteiros ainda, apesar de não estarem mais na juventude, e procuravam com afinco prosseguir a missão do pai, que era zelar da propriedade, da lavoura e do gado. Conheciam a cidade grande, o polo desenvolvido de Curuajubá, pois havia necessidade de comerciar a safra e trazer coisas que não se produziam na roça. Mas sendo tímidos, não se detinham muito tempo por lá. E como passa rápido o tempo, sem perceber acabaram chegando à idade dos trinta e cinco ou trinta e sete anos sem se casar.
As tias eram todas casadas, e assim como Irene - a mãe de Cecília, elas também moravam nas redondezas, em terras cedidas pelo pai ou em dotes recebidos dos sogros, com exceção de Amélia, que nasceu por último, e mesmo casada nunca se apartou do pai, sempre cuidando da mãe enferma. E depois, quando morreu a mãe, permaneceu na Sede por causa da viuvez do pai, ajudando nos afazeres de casa. Por esses motivos, sempre morou ela e o marido na mesma casa da Sede.
A casa da Sede foi construída nos traços e linhas mais tradicionais das casas do interior de Minas: Tinha uma varanda enorme em forma de “L” que dava sombra na frente da casa e na lateral que se voltava para o Poente, que era a parede lateral mais quente da construção. Havia uma sala ampla, onde se recebia primeiramente as visitas. Ao lado direito e esquerdo da sala haviam dois quartos. A sala se comunicava com outro cômodo, uma sala secundária a que se dá o nome de “Copa”. Era nesta Copa que serviam as quitandas quando recebiam a visita do Vigário ou de alguém importante. Os móveis mais refinados da casa mobiliavam essas duas salas. Na primeira ficavam o relógio de cuco e a cadeira patronal, a antiga cadeira de tempos imemoriais, herdada de pai para filho, e onde se assentava o chefe de família nos tempos antigos. Agora, não se usava mais essa tradição, mas era mantida como relíquia e ornamento da sala.
Possuíam um jogo de poltronas comprado na cidade, e nas paredes muitos quadros pendurados, com fotos antigas da família, as imagens dos santos, uma imagem de Ambrogio Damiano o Papa Pio XI, que naquele tempo dirigia a Igreja, e a folhinha com as datas santificadas e os bons dias de plantio marcados em vermelho, e que era cedida pela Cooperativa anualmente.

 
Mas o tesouro da casa se encontrava num canto da sala: Era o Gramofone que Getúlio mandou trazer do Rio de Janeiro, e algumas dúzias de discos finamente encerados com cera de carnaúba – os últimos lançamentos da gravadora Odeon, que através desses discos gravados em apenas uma face, reproduziam as vozes de cantores famosos, óperas e também as gravações feitas pela Orquestra do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro... O êxtase de Cecília era ouvi-los, intrigada com a “mágica” de se poder ouvir as canções sem que o cantor esteja presente. Fechando os olhos sonhadores, ficava a imaginar... Nunca pensou em ser cantora, mas desejou muito aprender as notas musicais para compor canções.
Na Copa havia uma cristaleira – um grande armário feito de mogno – com a porcelana mais fina. Tinha também uma mesa pequena e seis cadeiras. E da Copa, abriam-se portas para mais dois quartos e um banheiro. Um dos quartos era maior, e tinha uma pequena despensa. Era o quarto de Getúlio, e onde Maria passou seus últimos e dolorosos anos.
A Copa se comunicava finalmente com a cozinha, que tinha o piso rebaixado na altura de um degrau, tornando-a por isso, mais alta que os demais cômodos da casa. Era ampla e num canto abria-se uma porta para outra despensa onde ficavam as latas de mantimento seco – como a farinha, o polvilho, o fubá, o açúcar e onde se moía o café. Havia na cozinha mais duas janelas e uma porta voltada para o terreiro. Um grande fogão de lenha estava assentado no canto de uma parede e possuía uma enorme mesa de jacarandá que ocupava o centro da cozinha. Não tinha cadeiras ali: mas havia dois grandes bancos cercando a mesa e outro banco encostado à parede. Ali se reuniam os pais, filhos e demais familiares ou parentes onde faziam a refeição comum e diária. E como era abençoada a mão de Amélia! Sabia fazer pratos deliciosos, e ela cozinhava com perfeição. Sabia controlar o calor daquele enorme fogão, sem deixar que a lenha esfumaçasse o ambiente e mantinha as panelas sempre polidas – apesar do fogão a lenha. E o caldo de galinha ou torresmo que Amélia sabia fazer eram especiais. O arroz sempre foi soltinho e bem temperado, o feijão era suculento, e sempre havia um caldo de galinha polvilhado com “cebolinhas de folha” que era servido frio, acompanhado com macarrão e molho de pimenta sobre o arroz; e farinha de mandioca torrada. E tudo isso tornavam a refeição que ela preparava de um sabor sublime, inigualável! O verdadeiro gostinho da comida mineira... Quem já comeu das refeições servidas por Amélia jamais se esqueceu do sabor. E Cecília aprendeu com ela!
A família de Getúlio viveu sempre unida, era uma família respeitada na região; tinham prestígio até mesmo em Curuajubá, onde negociavam com a Cooperativa.