Getúlio
ficou viúvo há muitos anos. Maria, sua mulher, adoeceu no parto de
Amélia e nunca mais recuperou a saúde. Sempre recolhida, saía
mesmo só para visitar a Capelinha que o marido construiu no alto de
uma colina, próxima da Sede. Nunca mais saiu de casa a passear nos
sítios vizinhos ou para ir ao Arraial, desde que nasceu Amélia.
Recusava-se terminantemente a entrar no automóvel de Getúlio, pois
sentia terror ao barulho do motor e da trepidação do carro.
Todavia, quando Maria sentia saudade de alguma comadre, mandava
chamar, através dos filhos ou de algum empregado:
__ Vai lá na casa da Salvina, diz para ela trazer um bocado de
açúcar, que o meu é pouco. As galinhas estão botando muito, e
vamos fazer umas “quitandas” aqui em casa. Assim posso prosear um
bocado com ela. Quero saber como vai o afilhado, que outro dia
espetou o pé com prego enferrujado.
__ A Palmira faz dias que não aparece…. Vai saber se tá
perrengue! Menino, corre lá na casa dela, leva um bocado desse
polvilho que já foi curado e veja se está tudo bem com ela. Se
estiver boa, diga-lhe que venha aqui em casa! Manda trazer o Terço,
que depois da prosa às vezes a gente reza um.
E desse jeito, uma ou outra comadre sempre vinha até sua casa
visitá-la. Porém, Maria só saía mesmo para ir à Missa na
Capelinha, ainda assim conduzida lentamente pelas mãos das filhas,
num e noutro Domingo – se nesse dia ela estivesse se sentindo bem,
pois vivia doente e frequentemente acamada.
Até que um dia adoeceu de vez e nunca mais se levantou. Passaram-se
os anos e definhou na cama. Com o tempo, também perdeu a voz, depois
a lucidez e, por fim, morreu. Cecília era bem pequena, quando perdeu
a avó.
Os três tios de Cecília, homens sérios, calados, viviam para
trabalhar. Narciso se casou pouco depois que a mãe faleceu. Se casou
e a princípio foi morar nas terras do sogro. Os outros dois,
Sebastião e Antônio, se casaram bem depois. Quando conheci a
família de Getúlio, esses dois eram solteiros ainda, apesar de não
estarem mais na juventude, e procuravam com afinco prosseguir a
missão do pai, que era zelar da propriedade, da lavoura e do gado.
Conheciam a cidade grande, o polo desenvolvido de Curuajubá, pois
havia necessidade de comerciar a safra e trazer coisas que não se
produziam na roça. Mas sendo tímidos, não se detinham muito tempo
por lá. E como passa rápido o tempo, sem perceber acabaram chegando
à idade dos trinta e cinco ou trinta e sete anos sem se casar.
As tias eram todas casadas, e assim como Irene - a mãe de Cecília,
elas também moravam nas redondezas, em terras cedidas pelo pai ou em
dotes recebidos dos sogros, com exceção de Amélia, que nasceu por
último, e mesmo casada nunca se apartou do pai, sempre cuidando da
mãe enferma. E depois, quando morreu a mãe, permaneceu na Sede por
causa da viuvez do pai, ajudando nos afazeres de casa. Por esses
motivos, sempre morou ela e o marido na mesma casa da Sede.
A casa da Sede foi construída nos traços e linhas mais tradicionais
das casas do interior de Minas: Tinha uma varanda enorme em forma de
“L” que dava sombra na frente da casa e na lateral que se voltava
para o Poente, que era a parede lateral mais quente da construção.
Havia uma sala ampla, onde se recebia primeiramente as visitas. Ao
lado direito e esquerdo da sala haviam dois quartos. A sala se
comunicava com outro cômodo, uma sala secundária a que se dá o
nome de “Copa”. Era nesta Copa que serviam as quitandas quando
recebiam a visita do Vigário ou de alguém importante. Os móveis
mais refinados da casa mobiliavam essas duas salas. Na primeira
ficavam o relógio de cuco e a cadeira patronal, a antiga cadeira de
tempos imemoriais, herdada de pai para filho, e onde se assentava o
chefe de família nos tempos antigos. Agora, não se usava mais essa
tradição, mas era mantida como relíquia e ornamento da sala.
Possuíam um jogo de poltronas comprado na cidade, e nas paredes
muitos quadros pendurados, com fotos antigas da família, as imagens
dos santos, uma imagem de Ambrogio Damiano
– o Papa Pio XI,
que naquele tempo dirigia a Igreja, e a folhinha com as datas
santificadas e os bons dias de plantio marcados em vermelho, e que
era cedida pela Cooperativa anualmente.
Mas o tesouro da casa se encontrava num canto da sala: Era o
Gramofone que Getúlio mandou trazer do Rio de Janeiro, e algumas
dúzias de discos finamente encerados com cera de carnaúba – os
últimos lançamentos da gravadora Odeon, que através desses discos
gravados em apenas uma face, reproduziam as vozes de cantores
famosos, óperas e também as gravações feitas pela Orquestra do
Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro... O êxtase de Cecília era
ouvi-los, intrigada com a “mágica” de se poder ouvir as canções
sem que o cantor esteja presente. Fechando os olhos sonhadores,
ficava a imaginar... Nunca pensou em ser cantora, mas desejou muito
aprender as notas musicais para compor canções.
Na Copa havia uma cristaleira – um grande armário feito de mogno –
com a porcelana mais fina. Tinha também uma mesa pequena e seis
cadeiras. E da Copa, abriam-se portas para mais dois quartos e um
banheiro. Um dos quartos era maior, e tinha uma pequena despensa. Era
o quarto de Getúlio, e onde Maria passou seus últimos e dolorosos
anos.
A Copa se comunicava finalmente com a cozinha, que tinha o piso
rebaixado na altura de um degrau, tornando-a por isso, mais alta que
os demais cômodos da casa. Era ampla e num canto abria-se uma porta
para outra despensa onde ficavam as latas de mantimento seco – como
a farinha, o polvilho, o fubá, o açúcar e onde se moía o café.
Havia na cozinha mais duas janelas e uma porta voltada para o
terreiro. Um grande fogão de lenha estava assentado no canto de uma
parede e possuía uma enorme mesa de jacarandá que ocupava o centro
da cozinha. Não tinha cadeiras ali: mas havia dois grandes bancos
cercando a mesa e outro banco encostado à parede. Ali se reuniam os
pais, filhos e demais familiares ou parentes onde faziam a refeição
comum e diária. E como era abençoada a mão de Amélia! Sabia fazer
pratos deliciosos, e ela cozinhava com perfeição. Sabia controlar o
calor daquele enorme fogão, sem deixar que a lenha esfumaçasse o
ambiente e mantinha as panelas sempre polidas – apesar do fogão a
lenha. E o caldo de galinha ou torresmo que Amélia sabia fazer eram
especiais. O arroz sempre foi soltinho e bem temperado, o feijão era
suculento, e sempre havia um caldo de galinha polvilhado com
“cebolinhas de folha” que era servido frio, acompanhado com
macarrão e molho de pimenta sobre o arroz; e farinha de mandioca
torrada. E tudo isso tornavam a refeição que ela preparava de um
sabor sublime, inigualável! O verdadeiro gostinho da comida
mineira... Quem já comeu das refeições servidas por Amélia jamais
se esqueceu do sabor. E Cecília aprendeu com ela!
A família de Getúlio viveu sempre unida, era uma família
respeitada na região; tinham prestígio até mesmo em Curuajubá,
onde negociavam com a Cooperativa.