Cecília
passara o dia na chácara. Visitou a cozinha, fez amizade com as
pessoas da casa, foi conhecer a grande horta que Divino cuidava tão
bem. Sentia o cansaço da viagem, mas não quis se retirar ao quarto,
por isso desde a hora que se levantara – por volta das nove horas
da manhã – até aquela hora da tarde, manteve-se acordada e ativa.
Heitor saiu antes mesmo que Cecília se levantasse, e passou o dia
todo fora. Cecília resolveu sentar-se na grande varanda e observar
dali a estrada que levava à cidade, numa pouca distância...
Maurício deu sua última pincelada, delineando os lábios carnudos
daquela mulher. Fizera-a dessa vez com chapéu de telinha e um
ramalhete fixado na copa do chapéu. Os cabelos dourados descendo em
ondulações sobre os ombros, e ela estava sentada debaixo de um
frondoso pé de manacá a olhar para o pintor, tendo ao fundo a
chácara com sua grande varanda.
Cecília firmou as vistas, parecendo reconhecer aquele homem que de
longe a observava, petrificado, desde a hora em que ela surgiu na
porta do casarão.
Maurício não se moveu, apenas olhava do lugar onde estava, sem
acreditar que a personagem de seus desenhos, enfim criara vida e
estava ali bem à sua frente, a poucos metros de distância!
Cecília numa reação mista de espanto, dor e medo quis recuar
refugiando-se dentro da casa, mas suas pernas não lhe obedeceram.
Foi quando Maurício gritou, num grito quase sufocado pela emoção:
__Cecília, por acaso é você?
Sim! Era Cecília – que quis responder, sem, no entanto, conseguir
articular uma palavra sequer.
Cecília desceu aqueles três degraus e caminhou rapidamente em
direção a Maurício, que ainda surpreso não sabia se acreditava
naquilo que via ou se era tudo fruto da imaginação. Cecília
acercou-se dele ofegante e disse:
__Sim! Sou eu, Maurício. Não imaginava que o encontraria outra vez!
E você, como está?
__Eu vou indo... como você pode ver – foram as únicas palavras
que Maurício conseguiu responder.
Hesitando, sem saber se o abraçava ou não, Cecília estendeu-lhe
primeiramente as mãos como sempre fazia nos tempos distantes, quando
o namorado chegava até sua casa nos finais de semana.
As pernas de Maurício não o sustentaram, e o rapaz, caindo de
joelhos diante de Cecília, recolheu ternamente aquelas mãos
delicadas, aninhando nelas seu rosto molhado de lágrimas e num
soluço profundo, sussurrou:
__Eu tenho pensado em você todos os dias, Cecília... Todos os dias!
Você jamais teve ideia do Inferno em que você me atirou... Mas vou
sobrevivendo, como você pode ver.
Cecília respondeu:
__Eu sei, Maurício. E preciso do teu perdão...
__Não há nada a ser perdoado, pois para que haja perdão, precisa
haver primeiro uma condenação, mas como eu poderia condenar aquela
que é a minha própria vida? Jamais te condenei... – Falou
Maurício, interrompendo Cecília e demonstrando o quanto a jovem
mulher era importante para ele.
Cecília prosseguiu:
__Também passei por dias terríveis, mas vou tocando a vida assim
mesmo. O que se há de fazer? O destino assim o quis... Você nunca
lutou por aquilo que queria. Esperei-te tanto tempo e jamais
apareceu! Se tivesse voltado, quem sabe as coisas teriam sido
diferentes, mas você não veio, resolveu partir.
Maurício explicou:
__Casou-se com Heitor, não é? Mas eu poderia ter lutado antes por
você, Cecília. Passaria por cima de todas as coisas que eu vi. (Ao
falar assim, Maurício referia-se às manobras de Narciso e a suposta
investida de Heitor na tentativa de lhe tomar a namorada quando a
visitou na casa de Irene naquele fatídico Sábado, pouco antes de
Maurício chegar).
E prosseguindo sua explicação:
__Mas como chegaria outra vez em sua casa para pedir que retomasse
nosso namoro, depois que Adriana a viu junto de Heitor na festa do
Arraial? Se ele a tomou de mim, ainda naquele tempo quando esperava a
tua decisão, como poderia eu recuperá-la, se tua escolha foi livre,
e mesmo ainda sendo minha namorada, preferiste ele a mim? O que mais
eu poderia lhe oferecer, além daquele amor que já tinha por você?
Eu não possuía mais nada além do amor... Além disso, você me
pediu um tempo que jamais terminou! Nunca mais me chamaste de volta,
nunca me mandou algum recado dizendo que a situação com seus pais
já estava resolvida, e que eu poderia voltar! A conclusão infeliz
que eu tive na hora que recebi aquela notícia, é que você tinha
desistido definitivamente de mim... Então eu parti para bem longe,
evitando assistir seu casamento com Heitor!
Cecília retrucou:
__E como eu poderia te chamar de volta, se tua irmã foi testemunha
daquele beijo que dei em Heitor? Você certamente estaria magoado
comigo, e com toda a razão. Pensei que jamais me aceitaria outra
vez... Mas não me esqueci de você, nunca me desfiz daquela redação
que foi o motivo de nosso primeiro encontro e ainda sei recitar de
cor sua redação sobre o cactus... E o amor se tornou assim,
Maurício: ainda que não foi regado, resistiu todo esse tempo, como
aquele velho pé de cactus que vive na Sede até hoje!
__Do beijo que Adriana testemunhou eu não sabia, Cecília... Eu
nunca soube... Jamais me falaram desse assunto! Mas ainda que me
falassem, eu te aceitaria de qualquer forma, desde que eu soubesse
que ainda me querias... – Foram as palavras com voz sumida que
Maurício conseguiu dizer naquela hora.
Cecília chorava, enxugando o rosto com as mãos.
Agora ela sabia da grande mentira que falam por aí sobre o tempo!
Porque o tempo não cura jamais. O tempo não traz o esquecimento
também. E se um dia alguém se curou de verdade, ou se, de fato,
esqueceu de algum amor, essa pessoa teve a sorte de, na realidade,
nunca ter amado de todo seu coração a pessoa cujo amor o fez sofrer
um dia!
Um longo filme de imagens, sons e cenas se passaram na mente de
Cecília naquela hora, e ela viu brotar outra vez, com força, todo o
sentimento que sempre tivera por Maurício.
De repente, Maurício falou:
__O mundo é grande, Cecília, e estranhamente pequeno. Ele é
pequeno o bastante para que duas pessoas se encontrem outra vez mesmo
depois de décadas passadas, mas também é grande o suficiente para
que escolham um canto qualquer, longe de todos, onde vivam tudo
aquilo que um dia planejaram.
Cecília, espantada, ouvia as palavras do moço, tentando compreender
sua intenção.
__Quem sabe ainda existem aquelas pedras no alto da montanha, e que
repousam sob a sombra de uma grande figueira, onde eu quis, um dia,
fazer um lar para nós... – disse Maurício, já com sinais de
insanidade no olhar, evidentes por causa de um amor a tantos anos
encerrado a sete chaves no peito, que dia após dia Maurício
procurou sufocar sob a aparente máscara da normalidade e de um falso
esquecimento.
Cecília, cujo coração doía tanto como se fosse explodir, chorando
ainda mais, respondeu:
__Já é tarde demais para nós, meu amor. Me casei um ano depois que
você foi embora. A Capela ainda existia e o Vigário veio até lá
só para realizar a cerimônia do meu casamento... Tudo está
realizado, tudo foi sacramentado e com a benção do Vigário. Agora
não posso mais acrescentar sobre todas as minhas dores uma
condenação, que me levaria por fim ao Inferno!
Maurício, exasperado, retrucou:
__Inferno? Realmente, ele pode existir, eu não duvido disso. Mas
você não tem ideia do que é um Inferno, Cecília... Você não
sabe o que eu tenho vivido por esses longos anos, desde aqueles
tempos! E tão agonizante a vida se tornou para mim, que nem sei mais
dizer a você se o Inferno que eu vivo hoje é mais frio ou mais
quente do que o próximo, o qual terei de enfrentar após a morte!
Então Cecília lhe disse uma coisa que jamais Maurício imaginara
ouvir, desde que perdera a namorada:
__Não conheço tua dor, mas sei muito bem da minha, que, com
certeza, nunca foi menor que a sua, pois enquanto você foi embora
carregando sua dor, eu fiquei lá vivendo no mesmo lugar, cultivando
a minha dor, onde em cada canto daquelas casas, tanto na Sede quanto
na casa da minha mãe e até mesmo a estrada ou aquele poço d'água
têm sempre algum motivo para me lembrar de você!
E prosseguiu falando:
__Vivendo lá, muitas vezes olhei aquele maldito cactus na porteira,
que só sabe ferir minhas lembranças, sangrando meu coração com a
dor da saudade cada vez que olho para ele, pois me faz lembrar de
nosso primeiro encontro... Quantas vezes meus tios quiseram
arrancá-lo de lá, mas eu nunca deixei que tocassem nele, porque ele
me traz você à lembrança! Não conheço tua dor, Maurício, mas
sei que a minha não é menor que a sua... Você desapareceu, mas se
ao menos tivesse surgido na porta daquela Capela no dia do meu
casamento e dali chamasse o meu nome, eu teria deixado tudo para
trás, inclusive Heitor no altar, e sem me importar com a opinião
das pessoas, teria saído correndo e junto com você iríamos a um
lugar bem longe, viver nossas vidas. Teríamos casado: eu e você,
sem esperar pela aprovação de ninguém. Porém já é tarde demais,
e agora não podemos fazer mais nada por isso!
O quadro de repente chamou a atenção de Cecília. Olhou para obra
de Maurício. Estava terminada. Na aquarela, diante do casarão
encontrava-se a imagem perfeita de sua própria pessoa, exatamente
como ela era, em sua juventude: Os cabelos dourados e o ar jovial,
aquele meio sorriso no rosto que tantas vezes encantou Maurício...
O Sol já se punha atrás do horizonte e as sombras das árvores
projetavam manchas escuras no chão. À distância, na curva da
estrada, surgiu Heitor que voltava à Chácara a passos ligeiros.
Cecília perguntou a Maurício:
__Vai cumprimentar Heitor? Ele já está chegando...
__Creio que não me reconheceria mais. Tivemos pouco contato na
juventude, e, com certeza, estamos mudados. É melhor nem saber que
estive aqui – respondeu Maurício.
Decidido, mas claramente amargurado, desarmou o cavalete e começou a
guardar na maleta seu material de pintura.
Cecília então percebeu que estava prestes a perdê-lo outra vez.
Que situação estranhamente louca e desesperadora: Cecília não
queria perder Maurício, mas também não podia ganhar! Num fiapo de
voz, ela suplicou:
__Não se vá agora, Maurício! Há tanto para se dizer! Nós falamos
tão pouco, e possivelmente amanhã mesmo Heitor vai querer ir embora
daqui...
__É preciso que eu vá imediatamente. Se eu não for agora, não
irei nunca mais. Temos vidas diferentes agora; você mesma acabou de
dizer. Embora não seja isso que planejamos no passado, mas agora é
tudo que temos para nós – foi a resposta de Maurício, que
prosseguiu na tarefa de guardar seu material.
Cecília insistiu:
__Fica um pouco mais, eu lhe peço!
Então Maurício, dando-se conta que o sentimento que havia entre os
dois era um só, decidiu:
__Você nunca partiu de dentro de mim. Sempre esteve comigo! Por onde
eu passei, levei comigo tua voz, teu cheiro e teu olhar. E eu irei
onde você for, agora, até o fim do mundo!
Mas o destino que costura os caminhos da vida, também deixa, às
vezes, alguns pontos sem nós... Cecília vendo Heitor aproximar-se
cada vez mais, finalmente se deu conta da grave situação que se
desenrolava naquele momento, envolvendo a vida dos três infelizes.
Horrorizada, temendo o que poderia acontecer nos próximos minutos
quando Heitor finalmente chegasse e compreendesse o que estava
acontecendo, Cecília falou:
__Não! Não Maurício! Você tem razão. Não podemos fazer mais
nada por nós! Por favor, não me siga, porque isto acabará com a
minha vida e com a sua também!
__Não vivo mais sem você. Aliás, depois de você, eu nunca mais
vivi desde a minha adolescência – respondeu Maurício, pouco se
importando agora com a presença iminente de Heitor, que na distância
que estava, embora não pudesse discernir a cena por causa da
escuridão, porém já quase podia ouvir a conversa dos dois.
Num soluço, Cecília implorou:
__Se você ainda me ama, se você me ama de verdade Maurício, não
me procure e nem volte às terras da Fazenda. Não me procure porque
com isso só vamos aumentar esta agonia que não tem fim e nem
solução. Se insistirmos nisso, apenas destruiremos o que restou das
nossas vidas, nada mais. Eu nunca consegui esquecer o passado, porém,
mais uma vez, tentarei. E você, por favor, faça o mesmo!
Procurando pelos olhos de Cecília na pouca luz difusa – agora
projetada por uma Lua oculta entre a folhagem das árvores –
Maurício fitou-a e respondeu:
__Eu sempre te amei, Cecília. De verdade. E se te guardei dentro de
mim até hoje, continuarei guardando-te para sempre. Podemos escolher
os rumos da vida, talvez. Mas os sentimentos do coração, quando ele
determina a quem ele quer amar, jamais! Não podemos mudar suas
escolhas... E para mim, não haverá esquecimentos.
Com todo cuidado, depositou nas mãos de sua amada a melhor
obra-prima que já fizera um dia: Na aquarela estava retratado aquele
casarão ao fundo, com Cecília de chapéu ao lado direito da tela em
primeiro plano. Era a imagem perfeita da mulher quando era moça, e
que sorria maravilhosamente olhando para o pintor.
Contemplou uma última vez sua obra-prima, agora nas mãos da mulher
retratada. Virou-se em direção à estrada e se afastou.
Cecília em prantos soluçou um adeus, que Maurício, de voz
embargada, abafando um soluço, não conseguiu responder.
A escuridão avançava. Tanto na noite, quanto na mente e no coração
de Maurício. Com passos ligeiros, tomou o caminho da cidade,
cruzando a estrada com Heitor que estava chegando. Heitor não o
reconheceu, passando um ao lado do outro em silêncio.
Cecília carregando seu precioso tesouro nas mãos, recuou até o
casarão e trancou-se no quarto. Atirou-se na cama de bruços,
deixando que as lágrimas corressem livremente.
Naquela noite, não abriria a porta a ninguém. Nem mesmo para
Heitor. Queria ficar só.
Cecília e Heitor se foram no
dia seguinte ao encontro: As malas sequer tinham sido desarrumadas.
Quando Heitor ao chegar da cidade sentiu uma piora brusca na saúde
de Cecília, resolveu partir. Estava agora muito mais frágil que
antes de empreender a viagem. Ao abrir a porta do quarto no dia
seguinte, Heitor percebeu o quanto Cecília tinha chorado naquela
noite. Perguntou diligentemente o que tinha acontecido, sem obter
resposta nenhuma.
E também seu encontro com
Divino no dia anterior, e a revelação de que seu pai tivera um caso
ali naquela cidade sem nunca ter sido revelado a ninguém, gerou no
coração de Heitor um desconforto e uma vontade grande de ir embora,
e nunca mais olhar para trás.
Embarcaram à tarde na Estação
Ferroviária em Imperador, seguindo em direção à Curuajubá,
refazendo toda aquela viagem cansativa da volta.
Voltariam às terras desertas
da Fazenda Águas Frias.