Capítulo 29: "Reencontro"


Cecília passara o dia na chácara. Visitou a cozinha, fez amizade com as pessoas da casa, foi conhecer a grande horta que Divino cuidava tão bem. Sentia o cansaço da viagem, mas não quis se retirar ao quarto, por isso desde a hora que se levantara – por volta das nove horas da manhã – até aquela hora da tarde, manteve-se acordada e ativa. Heitor saiu antes mesmo que Cecília se levantasse, e passou o dia todo fora. Cecília resolveu sentar-se na grande varanda e observar dali a estrada que levava à cidade, numa pouca distância...
Maurício deu sua última pincelada, delineando os lábios carnudos daquela mulher. Fizera-a dessa vez com chapéu de telinha e um ramalhete fixado na copa do chapéu. Os cabelos dourados descendo em ondulações sobre os ombros, e ela estava sentada debaixo de um frondoso pé de manacá a olhar para o pintor, tendo ao fundo a chácara com sua grande varanda.

Cecília firmou as vistas, parecendo reconhecer aquele homem que de longe a observava, petrificado, desde a hora em que ela surgiu na porta do casarão.
Maurício não se moveu, apenas olhava do lugar onde estava, sem acreditar que a personagem de seus desenhos, enfim criara vida e estava ali bem à sua frente, a poucos metros de distância!
Cecília numa reação mista de espanto, dor e medo quis recuar refugiando-se dentro da casa, mas suas pernas não lhe obedeceram.
Foi quando Maurício gritou, num grito quase sufocado pela emoção:
__Cecília, por acaso é você?
Sim! Era Cecília – que quis responder, sem, no entanto, conseguir articular uma palavra sequer.
Cecília desceu aqueles três degraus e caminhou rapidamente em direção a Maurício, que ainda surpreso não sabia se acreditava naquilo que via ou se era tudo fruto da imaginação. Cecília acercou-se dele ofegante e disse:
__Sim! Sou eu, Maurício. Não imaginava que o encontraria outra vez! E você, como está?
__Eu vou indo... como você pode ver – foram as únicas palavras que Maurício conseguiu responder.




Hesitando, sem saber se o abraçava ou não, Cecília estendeu-lhe primeiramente as mãos como sempre fazia nos tempos distantes, quando o namorado chegava até sua casa nos finais de semana.
As pernas de Maurício não o sustentaram, e o rapaz, caindo de joelhos diante de Cecília, recolheu ternamente aquelas mãos delicadas, aninhando nelas seu rosto molhado de lágrimas e num soluço profundo, sussurrou:
__Eu tenho pensado em você todos os dias, Cecília... Todos os dias! Você jamais teve ideia do Inferno em que você me atirou... Mas vou sobrevivendo, como você pode ver.
Cecília respondeu:
__Eu sei, Maurício. E preciso do teu perdão...
__Não há nada a ser perdoado, pois para que haja perdão, precisa haver primeiro uma condenação, mas como eu poderia condenar aquela que é a minha própria vida? Jamais te condenei... – Falou Maurício, interrompendo Cecília e demonstrando o quanto a jovem mulher era importante para ele.
Cecília prosseguiu:
__Também passei por dias terríveis, mas vou tocando a vida assim mesmo. O que se há de fazer? O destino assim o quis... Você nunca lutou por aquilo que queria. Esperei-te tanto tempo e jamais apareceu! Se tivesse voltado, quem sabe as coisas teriam sido diferentes, mas você não veio, resolveu partir.
Maurício explicou:
__Casou-se com Heitor, não é? Mas eu poderia ter lutado antes por você, Cecília. Passaria por cima de todas as coisas que eu vi. (Ao falar assim, Maurício referia-se às manobras de Narciso e a suposta investida de Heitor na tentativa de lhe tomar a namorada quando a visitou na casa de Irene naquele fatídico Sábado, pouco antes de Maurício chegar).
E prosseguindo sua explicação:
__Mas como chegaria outra vez em sua casa para pedir que retomasse nosso namoro, depois que Adriana a viu junto de Heitor na festa do Arraial? Se ele a tomou de mim, ainda naquele tempo quando esperava a tua decisão, como poderia eu recuperá-la, se tua escolha foi livre, e mesmo ainda sendo minha namorada, preferiste ele a mim? O que mais eu poderia lhe oferecer, além daquele amor que já tinha por você? Eu não possuía mais nada além do amor... Além disso, você me pediu um tempo que jamais terminou! Nunca mais me chamaste de volta, nunca me mandou algum recado dizendo que a situação com seus pais já estava resolvida, e que eu poderia voltar! A conclusão infeliz que eu tive na hora que recebi aquela notícia, é que você tinha desistido definitivamente de mim... Então eu parti para bem longe, evitando assistir seu casamento com Heitor!
Cecília retrucou:
__E como eu poderia te chamar de volta, se tua irmã foi testemunha daquele beijo que dei em Heitor? Você certamente estaria magoado comigo, e com toda a razão. Pensei que jamais me aceitaria outra vez... Mas não me esqueci de você, nunca me desfiz daquela redação que foi o motivo de nosso primeiro encontro e ainda sei recitar de cor sua redação sobre o cactus... E o amor se tornou assim, Maurício: ainda que não foi regado, resistiu todo esse tempo, como aquele velho pé de cactus que vive na Sede até hoje!
__Do beijo que Adriana testemunhou eu não sabia, Cecília... Eu nunca soube... Jamais me falaram desse assunto! Mas ainda que me falassem, eu te aceitaria de qualquer forma, desde que eu soubesse que ainda me querias... – Foram as palavras com voz sumida que Maurício conseguiu dizer naquela hora.
Cecília chorava, enxugando o rosto com as mãos.
Agora ela sabia da grande mentira que falam por aí sobre o tempo! Porque o tempo não cura jamais. O tempo não traz o esquecimento também. E se um dia alguém se curou de verdade, ou se, de fato, esqueceu de algum amor, essa pessoa teve a sorte de, na realidade, nunca ter amado de todo seu coração a pessoa cujo amor o fez sofrer um dia!
Um longo filme de imagens, sons e cenas se passaram na mente de Cecília naquela hora, e ela viu brotar outra vez, com força, todo o sentimento que sempre tivera por Maurício.
De repente, Maurício falou:
__O mundo é grande, Cecília, e estranhamente pequeno. Ele é pequeno o bastante para que duas pessoas se encontrem outra vez mesmo depois de décadas passadas, mas também é grande o suficiente para que escolham um canto qualquer, longe de todos, onde vivam tudo aquilo que um dia planejaram.
Cecília, espantada, ouvia as palavras do moço, tentando compreender sua intenção.
__Quem sabe ainda existem aquelas pedras no alto da montanha, e que repousam sob a sombra de uma grande figueira, onde eu quis, um dia, fazer um lar para nós... – disse Maurício, já com sinais de insanidade no olhar, evidentes por causa de um amor a tantos anos encerrado a sete chaves no peito, que dia após dia Maurício procurou sufocar sob a aparente máscara da normalidade e de um falso esquecimento.
Cecília, cujo coração doía tanto como se fosse explodir, chorando ainda mais, respondeu:
__Já é tarde demais para nós, meu amor. Me casei um ano depois que você foi embora. A Capela ainda existia e o Vigário veio até lá só para realizar a cerimônia do meu casamento... Tudo está realizado, tudo foi sacramentado e com a benção do Vigário. Agora não posso mais acrescentar sobre todas as minhas dores uma condenação, que me levaria por fim ao Inferno!
Maurício, exasperado, retrucou:
__Inferno? Realmente, ele pode existir, eu não duvido disso. Mas você não tem ideia do que é um Inferno, Cecília... Você não sabe o que eu tenho vivido por esses longos anos, desde aqueles tempos! E tão agonizante a vida se tornou para mim, que nem sei mais dizer a você se o Inferno que eu vivo hoje é mais frio ou mais quente do que o próximo, o qual terei de enfrentar após a morte!
Então Cecília lhe disse uma coisa que jamais Maurício imaginara ouvir, desde que perdera a namorada:
__Não conheço tua dor, mas sei muito bem da minha, que, com certeza, nunca foi menor que a sua, pois enquanto você foi embora carregando sua dor, eu fiquei lá vivendo no mesmo lugar, cultivando a minha dor, onde em cada canto daquelas casas, tanto na Sede quanto na casa da minha mãe e até mesmo a estrada ou aquele poço d'água têm sempre algum motivo para me lembrar de você!
E prosseguiu falando:
__Vivendo lá, muitas vezes olhei aquele maldito cactus na porteira, que só sabe ferir minhas lembranças, sangrando meu coração com a dor da saudade cada vez que olho para ele, pois me faz lembrar de nosso primeiro encontro... Quantas vezes meus tios quiseram arrancá-lo de lá, mas eu nunca deixei que tocassem nele, porque ele me traz você à lembrança! Não conheço tua dor, Maurício, mas sei que a minha não é menor que a sua... Você desapareceu, mas se ao menos tivesse surgido na porta daquela Capela no dia do meu casamento e dali chamasse o meu nome, eu teria deixado tudo para trás, inclusive Heitor no altar, e sem me importar com a opinião das pessoas, teria saído correndo e junto com você iríamos a um lugar bem longe, viver nossas vidas. Teríamos casado: eu e você, sem esperar pela aprovação de ninguém. Porém já é tarde demais, e agora não podemos fazer mais nada por isso!

O quadro de repente chamou a atenção de Cecília. Olhou para obra de Maurício. Estava terminada. Na aquarela, diante do casarão encontrava-se a imagem perfeita de sua própria pessoa, exatamente como ela era, em sua juventude: Os cabelos dourados e o ar jovial, aquele meio sorriso no rosto que tantas vezes encantou Maurício...
O Sol já se punha atrás do horizonte e as sombras das árvores projetavam manchas escuras no chão. À distância, na curva da estrada, surgiu Heitor que voltava à Chácara a passos ligeiros.
Cecília perguntou a Maurício:
__Vai cumprimentar Heitor? Ele já está chegando...
__Creio que não me reconheceria mais. Tivemos pouco contato na juventude, e, com certeza, estamos mudados. É melhor nem saber que estive aqui – respondeu Maurício.
Decidido, mas claramente amargurado, desarmou o cavalete e começou a guardar na maleta seu material de pintura.
Cecília então percebeu que estava prestes a perdê-lo outra vez. Que situação estranhamente louca e desesperadora: Cecília não queria perder Maurício, mas também não podia ganhar! Num fiapo de voz, ela suplicou:
__Não se vá agora, Maurício! Há tanto para se dizer! Nós falamos tão pouco, e possivelmente amanhã mesmo Heitor vai querer ir embora daqui...
__É preciso que eu vá imediatamente. Se eu não for agora, não irei nunca mais. Temos vidas diferentes agora; você mesma acabou de dizer. Embora não seja isso que planejamos no passado, mas agora é tudo que temos para nós – foi a resposta de Maurício, que prosseguiu na tarefa de guardar seu material.
Cecília insistiu:
__Fica um pouco mais, eu lhe peço!
Então Maurício, dando-se conta que o sentimento que havia entre os dois era um só, decidiu:
__Você nunca partiu de dentro de mim. Sempre esteve comigo! Por onde eu passei, levei comigo tua voz, teu cheiro e teu olhar. E eu irei onde você for, agora, até o fim do mundo!

Mas o destino que costura os caminhos da vida, também deixa, às vezes, alguns pontos sem nós... Cecília vendo Heitor aproximar-se cada vez mais, finalmente se deu conta da grave situação que se desenrolava naquele momento, envolvendo a vida dos três infelizes. Horrorizada, temendo o que poderia acontecer nos próximos minutos quando Heitor finalmente chegasse e compreendesse o que estava acontecendo, Cecília falou:
__Não! Não Maurício! Você tem razão. Não podemos fazer mais nada por nós! Por favor, não me siga, porque isto acabará com a minha vida e com a sua também!
__Não vivo mais sem você. Aliás, depois de você, eu nunca mais vivi desde a minha adolescência – respondeu Maurício, pouco se importando agora com a presença iminente de Heitor, que na distância que estava, embora não pudesse discernir a cena por causa da escuridão, porém já quase podia ouvir a conversa dos dois.
Num soluço, Cecília implorou:
__Se você ainda me ama, se você me ama de verdade Maurício, não me procure e nem volte às terras da Fazenda. Não me procure porque com isso só vamos aumentar esta agonia que não tem fim e nem solução. Se insistirmos nisso, apenas destruiremos o que restou das nossas vidas, nada mais. Eu nunca consegui esquecer o passado, porém, mais uma vez, tentarei. E você, por favor, faça o mesmo!
Procurando pelos olhos de Cecília na pouca luz difusa – agora projetada por uma Lua oculta entre a folhagem das árvores – Maurício fitou-a e respondeu:
__Eu sempre te amei, Cecília. De verdade. E se te guardei dentro de mim até hoje, continuarei guardando-te para sempre. Podemos escolher os rumos da vida, talvez. Mas os sentimentos do coração, quando ele determina a quem ele quer amar, jamais! Não podemos mudar suas escolhas... E para mim, não haverá esquecimentos.
Com todo cuidado, depositou nas mãos de sua amada a melhor obra-prima que já fizera um dia: Na aquarela estava retratado aquele casarão ao fundo, com Cecília de chapéu ao lado direito da tela em primeiro plano. Era a imagem perfeita da mulher quando era moça, e que sorria maravilhosamente olhando para o pintor.
Contemplou uma última vez sua obra-prima, agora nas mãos da mulher retratada. Virou-se em direção à estrada e se afastou.
Cecília em prantos soluçou um adeus, que Maurício, de voz embargada, abafando um soluço, não conseguiu responder.
A escuridão avançava. Tanto na noite, quanto na mente e no coração de Maurício. Com passos ligeiros, tomou o caminho da cidade, cruzando a estrada com Heitor que estava chegando. Heitor não o reconheceu, passando um ao lado do outro em silêncio.
Cecília carregando seu precioso tesouro nas mãos, recuou até o casarão e trancou-se no quarto. Atirou-se na cama de bruços, deixando que as lágrimas corressem livremente.
Naquela noite, não abriria a porta a ninguém. Nem mesmo para Heitor. Queria ficar só.
Cecília e Heitor se foram no dia seguinte ao encontro: As malas sequer tinham sido desarrumadas. Quando Heitor ao chegar da cidade sentiu uma piora brusca na saúde de Cecília, resolveu partir. Estava agora muito mais frágil que antes de empreender a viagem. Ao abrir a porta do quarto no dia seguinte, Heitor percebeu o quanto Cecília tinha chorado naquela noite. Perguntou diligentemente o que tinha acontecido, sem obter resposta nenhuma.
E também seu encontro com Divino no dia anterior, e a revelação de que seu pai tivera um caso ali naquela cidade sem nunca ter sido revelado a ninguém, gerou no coração de Heitor um desconforto e uma vontade grande de ir embora, e nunca mais olhar para trás.
Embarcaram à tarde na Estação Ferroviária em Imperador, seguindo em direção à Curuajubá, refazendo toda aquela viagem cansativa da volta.
Voltariam às terras desertas da Fazenda Águas Frias.