Não
fico somente ali, diante daquela porteira, apenas observando a
estrada ou a Sede, nem admirando aquele cactus o tempo todo!
Também gosto de visitar velhos conhecidos. Eles não sabem disso –
é claro – pois se encontram mortos no Cemitério do Arraial.
Como o Cemitério é dividido em
duas alas – a esquerda
para os fazendeiros e familiares, e a direita para o restante da
população – quando
vou lá, à minha direita
está a sepultura de Ananias. Seus últimos dias de
vida foram muito sofridos.
Certa
manhã ao acordar, não
recebeu a visita de “Aristide”, que vinha saudá-lo à porta da
cozinha todos os dias. Preocupado, desceu o pequeno degrau e vagando
pelo quintal apoiado na
bengala, chamava
seu burro, porém,
sem resultados. Descendo até
a margem do riacho, encontrou seu companheiro estirado no chão,
morto. Aristide morrera
de velhice. Por causa disso,
Ananias adoeceu de tristeza.
E com lágrimas nos olhos, na
última visita que Maurício lhe fez, em voz quase inaudível avisou
o menino que talvez não se encontrassem nunca mais. O
velhinho pressentia que
chegava também a sua hora de
partir.
Recusou a ajuda de todos e
nunca aceitou
que o Vigário o levasse para Acemira. Viveu
uma vida inteira
sozinho, excluído da
sociedade por causa da lepra,
e vivera como se estivesse
morto. Resolveu então,
que queria morrer só.
Agradeceu pelas
horas que o menino lhe fez companhia, ajudando na manutenção do
pomar quando suas mãos já sem dedos se tornaram inúteis ao cabo da
enxada. Agradeceu as horas de conversas, onde o menino ouvia com
atenção as suas estórias. Agradeceu
a alegria que tudo isso lhe proporcionou no finalzinho da vida,
espantando a solidão.
E disse a
Maurício:
__Um
dia, menino, vou lhe pagar por toda a caridade que teve com este
velho.
Ananias morreu dois dias depois.
Hoje, olhando
para sua sepultura,
pergunto-lhe se o
mesmo destino
de Lázaro – o leproso da
Bíblia – se repetiu com
ele, e se neste momento Ananias
se encontra consolado no colo
de alguém...
Mas não ouço respostas! Talvez o
sono de Ananias ainda seja
pesado demais, sem poder me
ouvir. E
na paz do silêncio, a pobre alma dormindo
tenta se recuperar da vida
atribulada que teve por aqui. Ou talvez o lugar em que esteja agora
é tão melhor que aqui, que
a distância entre nós é insuperável, e de lá onde está, Ananias
não pode
mais me escutar...
Que
destino irônico! O corpo de
Ananias em vida viveu
isolado, distante de todo
mundo. Mas na morte está
sepultado aqui, lado a lado com toda essa gente!
Com Amélia, também gosto de conversar quando venho aqui: Falo do
tempo longínquo, falo das nuvens, dos céus e do abismo; conto-lhe
do Paraíso e trago notícias do Hades. Falo das árvores e do que
elas me contam, falo da Terra e suas cavernas. Conto-lhe sobre as
horas e sobre as Eras. Falo sobre a vida e sobre a ausência da vida
também. E digo-lhe sobre todo o silêncio que restou por aqui... É
um monólogo apenas, pois Amélia permanece calada, em seu sono da
morte!
Amélia foi sepultada ao lado de sua mãe. Mas ali também se
encontram lado a lado, o sepulcro de seu pai, de Irene, Heitor e de
muitos outros que conheci um dia.
É estranho notar hoje que nossas opiniões, nossas teimosias, nossa
personalidade e tudo mais que somos ou pretendemos ser, se
transformam em nada, quando se morre!
Se não fora eu – a lembrar de quem foi Narciso – quem poderia
agora dizer que a cova hoje malcuidada, sem nenhuma identificação,
parcialmente afundada e que está um pouco adiante do túmulo de
Amélia, é o lugar onde jaz os restos mortais de Narciso?
Quem poderia dizer que ali se encerrou toda teimosia e opinião de
alguém que fora outrora de personalidade tão marcante e de olhar
soberbo, que sabia impor suas vontades e exigia o cumprimento de suas
determinações? Se não fora eu a lembrar de ti, Narciso, quem
poderia dizer que é justamente tu quem jaz aí nessa campa? Se não
fora eu lembrar de ti, quem poderia dizer agora que um dia você
existiu? Pois não deixou filhos, não ficou herança, nem um retrato
sequer para mostrar às próximas gerações como tu eras, e essa
terra sempre emudecida jamais dirá às pessoas que guarda você aí
dentro...
As gerações passam e as pessoas que aqui viveram também foram
embora. Um dia tudo aquilo que viveu acaba ficando no esquecimento do
tempo, por faltar alguém vivo que ainda se lembre de como foram as
coisas.
Tudo passa nessa vida. Ou quase tudo... Porque algumas lembranças,
sejam elas felizes ou amargas, acabam sempre ficando, desde que haja
alguém, que de uma forma ou de outra aqui esteja, para lembrá-las.
Naqueles tempos, Narciso por fim expulsou Alécio e seus filhos da
terra. Como último favor prestado, a Fazenda lhe dispôs dois carros
de bois que levaram a pouca e maltratada mobília da família até
Acemira. Os filhos conseguiram emprego braçal nas fazendas vizinhas.
Como diaristas, ganhavam o pão de dia para comer à noite. Alécio
foi trabalhar no comércio local, como escarneador de bois no
açougue. Outra ironia do destino: Cortava os melhores pedaços de
carne todos os dias a pedido dos fregueses, porém, não tinha
dinheiro suficiente para comprar um quilo de pelancas!
Adriana manteve amizade com Cecília, com quem se correspondia de
tempos em tempos através de recados pelas professorinhas que
atravessavam o lago de batelão. Era um sistema falho e impreciso de
comunicação. E de vez em quando Maurício via Leandro na cidade,
ora comprando remédio para o gado, ora negociando qualquer coisa.
Enfim, de alguma forma as notícias chegavam lá da Fazenda, onde
tanto Adriana quanto Maurício acabavam por saber o que ocorria do
outro lado do lago.
Getúlio após alguns meses melhorou e voltou à Sede. Cecília veio
lhe fazer companhia outra vez.
A menina se tornava cada vez mais linda. Dedos longos, e silhueta
esguia, a pele alva, cabelos louros que caiam por sobre os ombros em
mechas douradas, emoldurando um rosto de olhar doce, lábios carnudos
e traços muito bonitos.
E com tal menina assim tão linda morando na casa da Sede, os rapazes
da região começaram então a se lembrar que deviam uma visita ao
velho Getúlio...
Apareceram muitos para cortejar Cecília, mas o preferido de Narciso
sempre foi Heitor.
Heitor, como eu já disse, viera de terras longínquas, da divisa com
o Rio de Janeiro. Viera com seus pais e irmãos para possuir a
herança do avô, cujas terras eram vizinhas da Fazenda Águas Frias.
E além disso, Narciso conhecera bem os seus avós. Apesar de a
aversão que ele tinha por pessoas de outros locais, na verdade, sua
mulher tinha até um parentesco com aquela família do Heitor. E
Narciso considerando isso, resolveu trabalhar nesse assunto, para ver
se conseguia que sua sobrinha se casasse com o moço. Convidava-o
sempre a vir na casa de Getúlio e havendo qualquer oportunidade,
falava-lhe muito bem da moça; e conseguiu assim despertar um vivo
interesse no coração de Heitor.
Cecília se considerava jovem ainda para o casamento. Não tinha
interesse algum pelo moço, e se alguém lhe perguntasse o motivo,
não saberia explicar se não tinha interesse no moço ou no
casamento, pois agora se dedicava inteiramente em cuidar da saúde do
avô.
Mas o fato é que Cecília não pensava em se casar com Heitor de
forma alguma. Todavia, Narciso resoluto investiu no assunto,
apostando que a sobrinha haveria de se casar com Heitor de qualquer
maneira.
O rapaz, é
claro, percebeu
que seria ideal e sensato que aquele desfecho terminasse em
casamento, ainda mais com uma
menina tão linda,
e resolveu que deveria pedir
a mão da moça o mais breve
possível, antes que outros rapazes da região conseguissem despertar
algum sentimento no coração de
Cecília. Pensando
assim, marcou um dia para ir à casa de Irene conversar com os pais
da moça.