Capítulo 14: "Heitor"

   

Não fico somente ali, diante daquela porteira, apenas observando a estrada ou a Sede, nem admirando aquele cactus o tempo todo!
Também gosto de visitar velhos conhecidos. Eles não sabem disso – é claro – pois se encontram mortos no Cemitério do Arraial.
Como o Cemitério é dividido em duas alas – a esquerda para os fazendeiros e familiares, e a direita para o restante da população – quando vou lá, à minha direita está a sepultura de Ananias. Seus últimos dias de vida foram muito sofridos. Certa manhã ao acordar, não recebeu a visita de “Aristide”, que vinha saudá-lo à porta da cozinha todos os dias. Preocupado, desceu o pequeno degrau e vagando pelo quintal apoiado na bengala, chamava seu burro, porém, sem resultados. Descendo até a margem do riacho, encontrou seu companheiro estirado no chão, morto. Aristide morrera de velhice. Por causa disso, Ananias adoeceu de tristeza. E com lágrimas nos olhos, na última visita que Maurício lhe fez, em voz quase inaudível avisou o menino que talvez não se encontrassem nunca mais. O velhinho pressentia que chegava também a sua hora de partir.
Recusou a ajuda de todos e nunca aceitou que o Vigário o levasse para Acemira. Viveu uma vida inteira sozinho, excluído da sociedade por causa da lepra, e vivera como se estivesse morto. Resolveu então, que queria morrer só.
Agradeceu pelas horas que o menino lhe fez companhia, ajudando na manutenção do pomar quando suas mãos já sem dedos se tornaram inúteis ao cabo da enxada. Agradeceu as horas de conversas, onde o menino ouvia com atenção as suas estórias. Agradeceu a alegria que tudo isso lhe proporcionou no finalzinho da vida, espantando a solidão. E disse a Maurício:
__Um dia, menino, vou lhe pagar por toda a caridade que teve com este velho.
Ananias morreu dois dias depois.
Hoje, olhando para sua sepultura, pergunto-lhe se o mesmo destino de Lázaro – o leproso da Bíblia – se repetiu com ele, e se neste momento Ananias se encontra consolado no colo de alguém...
Mas não ouço respostas! Talvez o sono de Ananias ainda seja pesado demais, sem poder me ouvir. E na paz do silêncio, a pobre alma dormindo tenta se recuperar da vida atribulada que teve por aqui. Ou talvez o lugar em que esteja agora é tão melhor que aqui, que a distância entre nós é insuperável, e de lá onde está, Ananias não pode mais me escutar...
Que destino irônico! O corpo de Ananias em vida viveu isolado, distante de todo mundo. Mas na morte está sepultado aqui, lado a lado com toda essa gente!
Com Amélia, também gosto de conversar quando venho aqui: Falo do tempo longínquo, falo das nuvens, dos céus e do abismo; conto-lhe do Paraíso e trago notícias do Hades. Falo das árvores e do que elas me contam, falo da Terra e suas cavernas. Conto-lhe sobre as horas e sobre as Eras. Falo sobre a vida e sobre a ausência da vida também. E digo-lhe sobre todo o silêncio que restou por aqui... É um monólogo apenas, pois Amélia permanece calada, em seu sono da morte!
Amélia foi sepultada ao lado de sua mãe. Mas ali também se encontram lado a lado, o sepulcro de seu pai, de Irene, Heitor e de muitos outros que conheci um dia.
É estranho notar hoje que nossas opiniões, nossas teimosias, nossa personalidade e tudo mais que somos ou pretendemos ser, se transformam em nada, quando se morre!
Se não fora eu – a lembrar de quem foi Narciso – quem poderia agora dizer que a cova hoje malcuidada, sem nenhuma identificação, parcialmente afundada e que está um pouco adiante do túmulo de Amélia, é o lugar onde jaz os restos mortais de Narciso?
Quem poderia dizer que ali se encerrou toda teimosia e opinião de alguém que fora outrora de personalidade tão marcante e de olhar soberbo, que sabia impor suas vontades e exigia o cumprimento de suas determinações? Se não fora eu a lembrar de ti, Narciso, quem poderia dizer que é justamente tu quem jaz aí nessa campa? Se não fora eu lembrar de ti, quem poderia dizer agora que um dia você existiu? Pois não deixou filhos, não ficou herança, nem um retrato sequer para mostrar às próximas gerações como tu eras, e essa terra sempre emudecida jamais dirá às pessoas que guarda você aí dentro...
As gerações passam e as pessoas que aqui viveram também foram embora. Um dia tudo aquilo que viveu acaba ficando no esquecimento do tempo, por faltar alguém vivo que ainda se lembre de como foram as coisas.
Tudo passa nessa vida. Ou quase tudo... Porque algumas lembranças, sejam elas felizes ou amargas, acabam sempre ficando, desde que haja alguém, que de uma forma ou de outra aqui esteja, para lembrá-las.

Naqueles tempos, Narciso por fim expulsou Alécio e seus filhos da terra. Como último favor prestado, a Fazenda lhe dispôs dois carros de bois que levaram a pouca e maltratada mobília da família até Acemira. Os filhos conseguiram emprego braçal nas fazendas vizinhas. Como diaristas, ganhavam o pão de dia para comer à noite. Alécio foi trabalhar no comércio local, como escarneador de bois no açougue. Outra ironia do destino: Cortava os melhores pedaços de carne todos os dias a pedido dos fregueses, porém, não tinha dinheiro suficiente para comprar um quilo de pelancas!
Adriana manteve amizade com Cecília, com quem se correspondia de tempos em tempos através de recados pelas professorinhas que atravessavam o lago de batelão. Era um sistema falho e impreciso de comunicação. E de vez em quando Maurício via Leandro na cidade, ora comprando remédio para o gado, ora negociando qualquer coisa. Enfim, de alguma forma as notícias chegavam lá da Fazenda, onde tanto Adriana quanto Maurício acabavam por saber o que ocorria do outro lado do lago.
Getúlio após alguns meses melhorou e voltou à Sede. Cecília veio lhe fazer companhia outra vez.
A menina se tornava cada vez mais linda. Dedos longos, e silhueta esguia, a pele alva, cabelos louros que caiam por sobre os ombros em mechas douradas, emoldurando um rosto de olhar doce, lábios carnudos e traços muito bonitos.
E com tal menina assim tão linda morando na casa da Sede, os rapazes da região começaram então a se lembrar que deviam uma visita ao velho Getúlio...
Apareceram muitos para cortejar Cecília, mas o preferido de Narciso sempre foi Heitor.
Heitor, como eu já disse, viera de terras longínquas, da divisa com o Rio de Janeiro. Viera com seus pais e irmãos para possuir a herança do avô, cujas terras eram vizinhas da Fazenda Águas Frias. E além disso, Narciso conhecera bem os seus avós. Apesar de a aversão que ele tinha por pessoas de outros locais, na verdade, sua mulher tinha até um parentesco com aquela família do Heitor. E Narciso considerando isso, resolveu trabalhar nesse assunto, para ver se conseguia que sua sobrinha se casasse com o moço. Convidava-o sempre a vir na casa de Getúlio e havendo qualquer oportunidade, falava-lhe muito bem da moça; e conseguiu assim despertar um vivo interesse no coração de Heitor.
Cecília se considerava jovem ainda para o casamento. Não tinha interesse algum pelo moço, e se alguém lhe perguntasse o motivo, não saberia explicar se não tinha interesse no moço ou no casamento, pois agora se dedicava inteiramente em cuidar da saúde do avô.
Mas o fato é que Cecília não pensava em se casar com Heitor de forma alguma. Todavia, Narciso resoluto investiu no assunto, apostando que a sobrinha haveria de se casar com Heitor de qualquer maneira.
O rapaz, é claro, percebeu que seria ideal e sensato que aquele desfecho terminasse em casamento, ainda mais com uma menina tão linda, e resolveu que deveria pedir a mão da moça o mais breve possível, antes que outros rapazes da região conseguissem despertar algum sentimento no coração de Cecília. Pensando assim, marcou um dia para ir à casa de Irene conversar com os pais da moça.