Capítulo 6: "A Missa na Capela"



Domingo amanheceu bonito. Um vento de Agosto empurrou as nuvens para bem longe. O dia estava ensolarado e o clima seco e gostoso. Acontecia um evento religioso na Capelinha. O Vigário reuniu toda a família de Getúlio e os agregados da região.
Eram comuns essas Missas. Desde que Maria adoeceu e não saiu mais da Sede, construíram uma Capela nos termos da Fazenda Águas Frias e o Vigário aparecia ao menos uma vez por mês para rezar Missa e ouvir as confissões. Ali compareciam os filhos, as noras e os genros de Getúlio, os netos, os afilhados e toda a vizinhança de agregados.
Por não ter um Domingo certo que se realizasse a Missa – pois dependia muito das condições climáticas, e o Vigário atendia também a cidade de Acemira e o Arraial – então nem sempre todas famílias compareciam, ficando sempre a incerteza se naquele Domingo haveria Missa ou não. Quando possível, o sacerdote mandava um recado durante a semana, e Getúlio fazia os convites de boca a boca. Mas isso era melhor do que nada! Afinal, nem todos compareciam também à Missa Dominical que acontecia no Arraial, fosse o tempo bom, ou não.
Foi ali nessa Capela que se rezou a Missa de corpo presente quando Maria, a mulher de Getúlio, morreu. E ali também rezaram por Amélia, mais tarde...

Mas naquele dia de festa, as crianças, acostumadas ao ar livre, de maneira alguma se conformavam em ficar junto aos pais na Capela onde o Padre com voz monótona realizava o ofício. Ainda que houvessem reprimendas depois da Missa, a algazarra no terreirão era geral.
Cecília, aborrecida e um pouco mais velha que toda aquela turminha de crianças, observava os irmãos e os primos. Não bastasse esses, ainda tinha as crianças dos agregados para tomar conta!...

Naquele Domingo enquanto as crianças brincavam, Cecília resolveu dar uma volta na estrada, pois logo acima da casa do avô onde a porteira se abre para a estrada, existe o cactus enorme, do qual já falei, e justamente daquele ponto se tem a melhor e mais bonita vista da estrada que desce a Serra serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos...

E Maurício naquele dia, também se sentia entediado. Há tempos que ele vinha considerando as mudanças na sua vida.
Desde que os pais se mudaram para Minas, a vida só piorou. Empobreceram ainda mais e o pai não conseguiu emprego fixo em Acemira. A cidade além de pequenina, foi no passado castigada pelas águas dos dois rios que a cercam. Eram rios que naquele trecho corriam muito próximos e paralelos, um à direita e outro à esquerda da cidade, que ficava metade sobre o espigão de terras e a outra metade numa depressão do terreno. Porém, num ano de muitas chuvas formaram enchentes monstruosas que desciam com ímpeto lambendo as margens dos rios. E a enchente mudou a geografia do lugar para sempre, pois uma barreira natural foi levada pelas águas dos dois rios, e desde aquele momento os dois se juntaram no grande lago à volta do espigão de terra, onde Acemira está assentada. Uma parte considerável da pequena cidade afogou-se no lugar mais baixo do terreno, onde agora o lago faz a curva ligando os dois rios... Por causa disso, até hoje dizem que a cidade nasceu com destino de ser afogada, pois até o seu nome, “Acemira” prediz o mal que recaiu sobre seus habitantes. O nome é uma palavra indígena que significa: “Aquilo que faz doer” - uma alusão aos tristes acontecimentos que traumatizou sua população e estagnou o desenvolvimento da cidade por muitos e muitos anos.
Acemira, que por causa disso adormeceu no tempo, oferecia poucas oportunidades, principalmente às pessoas que não pertenciam ao local. Alécio tentou arranjar serviço no comércio da cidade sem sucesso, e até mesmo um modesto serviço na limpeza pública da cidade lhe foi negado (naquele tempo não se prestavam concursos, mas os funcionários eram escolhidos pela amizade que tinham com o grupo político do local), e essas foram as palavras do Prefeito, quando Alécio recorreu a ele:
__ “Sr. Alécio, eu sinto muito. Não posso tirar o pão da boca das crianças de Acemira e dá-los aos seus filhos. Os empregos são bem disputados e a população local acompanha com bastante interesse a sucessão de cargos e as vagas públicas. Até mesmo as mais humildes funções, como a limpeza das ruas, não posso lhe oferecer. Vocês não são daqui, e reservamos o emprego nos serviços públicos para a população local. Infelizmente, seu Alécio, infelizmente... Acho que na vossa situação, o melhor seria que voltassem para sua terra natal.”
Voltar para São Paulo não foi possível. O dinheiro que já era pouco, se acabou; as crianças cresciam e a situação se apertava cada vez mais. E o jeito foi se arranjar por ali mesmo, na região ao redor, onde o pai e os irmãos mais velhos pudessem trocar a mão de obra diária por um prato de comida e um telhado que abrigasse a família. Qualquer coisa lhe seria bem-vindo, qualquer serviço, desde que pudesse sustentar a família.
Então uma casinha de agregados foi desocupada na Fazenda Águas Frias, do outro lado do lago, depois do Arraial. E naqueles dias Getúlio precisava de mais gente para ajudar na colheita do café.
Foi a “oportunidade salvadora” da família de Maurício! A casinha ficava a duas léguas de distância do Arraial, tendo a Sede – a casa de Getúlio, a meio caminho entre a casinha e o Arraial. Era uma casa simples, com paredes de adobe e chão de terra batido, pequenina com dois quartos apenas, uma sala e uma cozinha. Uma pequena varanda na parede da frente e um terreirão nos fundos da casa. Como todas as casas da região – sem exceção – suas portas e janelas eram de madeira grotesca, resguardadas por taramelas.
Um frondoso Ipê estava plantado ao lado da porteira, projetando sua sombra todo dia de manhã, quando o Sol surgia, no caminho que vai em direção à varanda do casebre.

A relação entre agregados e os donos da terra sempre foi amistosa e cordial. Sempre haviam convites para assistir a Missa na Capela. E nos dias de mutirão, havia almoço ou jantar, com todos reunidos nos terreirão. Mas geralmente os contatos não passavam disso. Os vínculos entre patrões e agregados deveriam ser vínculos de trabalho. Mão de obra, e nada mais...

Naquele Domingo, enquanto os mais velhos assistiam a Missa na Capela e os mais novos brincavam no terreirão, Maurício resolveu andar pela estrada, pois queria paz e sossego naquela manhã. Acordou com uns planos na cabeça e queria pensar melhor sobre isso. Na Escola Rural a professorinha elogiou seu desempenho, no dia em que houve a reunião com os pais dos alunos:
__ Menino inteligente, Dona Marina; aprendeu fácil as letras, tira boas notas, sabe escrever muito bem, é criativo e tem uma linda redação! Vocês não podem deixar esse menino aqui. É uma dó! Dão um jeito de mandá-lo para a cidade, onde possa estudar e se formar. Vocês não têm parentes por lá? Esse menino pode ser um doutor, no futuro! Pensem nisso.
Agora, Maurício já tinha completado o período escolar e a dois anos estava sem ir à Escola. Mas o conselho que a professora deu à sua mãe nunca mais lhe saiu da cabeça: Maurício queria voltar para São Paulo.

Maurício sempre foi diferente de seus irmãos. Aqueles, em pouco tempo se integraram bem com a população local, e a despeito do sotaque estranho da metrópole paulista – bem diferente do palavreado simples do povo da roça – esses “moços de fora” eram pessoas queridas por todos os jovens da mesma idade, e com eles jogavam bola no campinho do Arraial, participavam das quermesses e das Festas Juninas, saíam a pescar juntos com os moços de outras famílias de agregados, conquistaram muita amizade com os alunos da Escola Rural e sempre davam um jeito de ir à Curuajubá junto com os filhos do Getúlio, quando estes levavam a safra para vender.
Maurício, porém, era diferente. De personalidade totalmente oposta aos seus irmãos, o menino cresceu “amuado”, quieto e tímido. Magrinho, sempre foi zombado na Escola pelos coleguinhas que o chamavam de “pau-de-virar-tripas”, “vareta”, “espeto”, “vara de bambu” e “magricela”, sem dizer das incontáveis vezes que algum moleque mais forte lhe tomava o lanche que a mãe preparava em casa!
Como havia apenas uma aula por semana, essa era dada em período integral desde as sete horas da manhã até a tardinha, com uma pausa para o lanche e alguma recreação – estratégia inédita para a época, que visava o descanso dos alunos pelo cansativo período de estudos.
O menino, porém, não gostava de jogar bola na hora do “recreio”, isolando-se na biblioteca da Escola, distraindo-se com a leitura de algum livro; e como consequência, não conquistou muita amizade. Esse período escolar ensinou muita coisa a Maurício, porém, ao manter-se isolado, marcou-o também em sua complexa personalidade. Um período que pode passar relativamente rápido para um adulto, costuma ser demasiadamente demorado para uma criança, cuja experiência de vida resume-se apenas naqueles poucos anos que já viveu. E a boa convivência na Escola é que vai determinar muitos fatores de uma vida adulta, depois. Talvez não influencie tanto no caráter; mas, com certeza, influencia no modo de interagir com as pessoas, depois de adulto. O menino – que era zombado na Escola – nunca reclamou aos seus irmãos mais velhos nem disse nada aos pais quando voltava para casa depois da aula. Porém, isolando-se, dedicou todo o seu tempo em estudar as poucas lições que a Escola Rural foi capaz de fornecer aos alunos. Devorava os livros que a professora trazia da cidade, e lia todos almanaques agrícolas vindos de Curuajubá. Não perdia nem mesmo as notícias velhas daquelas folhas soltas de jornais que os comerciantes usavam para embrulhar utensílios, e que chegavam até ele depois de cada viagem de seus irmãos à cidade. O menino sabia escrever muito bem.
Vez por outra, ensaiava uma conversa com um dos colegas de sala de aula, o menino que sentava mais próximo de sua carteira – um dos netos de Getúlio, o irmão de Cecília. Mas não tinham muito assunto que conversar; assuntos que logo morriam sem terminar, sem conclusão, pois Leandro entendia de café e de vacas. Maurício só entendia de todas as outras coisas que lia nos livros, almanaques e jornais. De tudo um pouco, menos de roça.
De compleição franzina, o serviço duro e pesado da roça realmente estava além da capacidade física daquele menino magérrimo. Nada o prendia ali, naquelas terras onde se sentia um estrangeiro: sempre isolado, Maurício tinha pouca companhia, poucos amigos. Então Maurício se convenceu que era mesmo um “desperdício” estar ali, na roça, pés descalços no chão e mãos calejadas num cabo de enxada.

A Escola Rural foi estabelecida numa antiga casa à beira da estrada, no caminho que saía do Arraial em direção à Sede da Fazenda Águas Frias. A casa era propriedade da Paróquia, mas com o avanço da Educação que acontecia no País, o Vigário – seguindo o exemplo de outros lugares – cedeu a propriedade ao Arraial para que se estabelecesse uma célula de ensino naquela área rural. A casa possuía uma imensa varanda nos fundos, de frente para o quintal, onde havia o campinho de futebol. Por dentro, foi dividida em cinco partes, sendo uma a sala laboral das professoras (ou a “Diretoria”), onde elas organizavam o material de ensino, funcionando ao mesmo tempo como uma simples e primitiva biblioteca; em outra parte ficava o refeitório e as outras três partes restantes eram as salas de aula, onde três professoras que vinham de Acemira, atravessando o lago de batelão (um barco de cobertura onde cabiam dez passageiros), ensinavam os alunos, que eram divididos assim: Na primeira sala – a maior – ficavam os meninos mais novos. Na segunda sala – de tamanho médio – eram os rapazes já quase adultos que assistiam as aulas. A terceira sala – a menor de todas e separada das outras pelo refeitório – era a sala das meninas, porém só compareciam aquelas que tinham também algum irmão estudando, e que se responsabilizasse por ela na ida e na volta para a Escola. E uma dessas meninas que frequentava a Escola era Cecília, que acompanhava Leandro toda semana.
Maurício conhecera Cecília apenas “de vista”, quando frequentava a Escola. Como nunca estudaram na mesma sala, também nunca se falaram, exceto um “oi”, “bom dia” ou “boa tarde” quando fosse necessário. Sempre distantes, nunca se olharam nos olhos uma única vez enquanto estudaram na mesma Escola. Mas o menino sabia que ela era neta de Getúlio, o patrão de seu pai. Havia já um tempo que quase não se viam, desde que se encerrou o período escolar e todos alcançaram o máximo que aquela Escola de poucos recursos poderia oferecer. De Cecília, quase não lembrava sequer o nome.
Cecília permanecia agora quase o tempo todo na casa do avô, ajudando Amélia nos afazeres domésticos. E Maurício voltou a trabalhar com o pai na lavoura em tempo integral, ajudando cultivar café para a família de Getúlio.

Mas naquele Domingo houve um convite, e todo mundo compareceu à Missa na Capelinha, inclusive a família de Alécio.
E Maurício, que acompanhou os pais, resolveu sair da Missa e perambular pela estrada... Aproximou-se ressabiado do enorme cactus onde Cecília, postada ao lado e com uma das mãos em concha sobre os olhos, observava atenta o serpentear da estrada. O cactus era tão alto que dava para se proteger do Sol debaixo de sua sombra!
__Olá menino. Parece que vejo uns pontinhos se mexendo lá adiante na Serra, por onde desce a estrada. Será que os carros de bois de vovô já estão chegando? Há três dias meus tios foram até Curuajubá levar milho que o pessoal ensacou. – disse Cecília a Maurício.
__Provavelmente sim. Meu irmão mais velho está com eles no comboio e ele sempre diz que a viagem é rápida quando se tem pressa. E eles tinham pressa para chegar, por causa da Missa na Capela. – respondeu Maurício.
Então, desviando o olhar da estrada e fitando Maurício, Cecília observou-o mais atentamente, e perguntou-lhe:
__É você o filho do “seu” Alécio, aquele agregado do vovô, que mora na casinha do Ipê, não é?
__Sim, sou um deles – respondeu Maurício em curta resposta.
__Lá em casa o Leandro já falou de você. Ele te elogia muito sabia? Diz que você é um menino quieto, e é o único da sala que ainda não levou “bolacha” de palmatória da professora... Ele também contou que seus colegas de sala gostam de zombar de você, mas Leandro nunca concordou com isso. Ele diz que é uma injustiça. Diz também que suas notas são altas e a professora gosta bastante das redações que você faz. Sabe, menino, também gosto muito de estudar, mas o que eu queria mesmo era aprender a música... – disse Cecília.
__Um de seus tios sabe tocar violão! No dia do mutirão vi que ele tocava umas modas bem bonitas. Porque não pede umas aulas a ele? Daí se você for bem, teu pai lhe compra um violão – retrucou Maurício.
__Não, não. Quero aprender mesmo a música. Eles não sabem música. Tocam só “de ouvido”, e eu quero aprender as notas: do, ré, mi, fá... – respondeu Cecília.
__Bom... nesse caso não sei o que dizer. Então acho que só na “cidade grande” você conseguiria estudar música com algum Mestre... E por falar nisso, estou querendo voltar para lá também, mas ainda sou novo, meu pai não deixaria, né? – e foi assim que Maurício contou pela primeira vez a uma pessoa aquilo que estava pensando, aqueles planos da sua cabeça.
__Voltar para a cidade grande? Aquele lugar de onde vocês vieram? Teria coragem de deixar seus pais aqui e se mudar para tão longe? – perguntou Cecília, sem compreender os projetos do rapaz.
Não houve resposta, pois nesse momento chegou Adriana, irmã de Maurício e que era um ano mais nova que ele – chamando-o de volta, pois o ofício religioso terminara, e estava na hora de ir embora.
__Escreve uma redação para mim? – perguntou de supetão Cecília.
Maurício ruborizou e sem saber negar, respondeu que sim, talvez um dia desses, falou gaguejando em voz embargada pela timidez.
E nesse momento Adriana se dirigindo à Cecília, responde:
__Pode deixar Cecília, que eu faço ele escrever sim. Aliás, é o que ele mais gosta de fazer e isso vai distraí-lo, pois anda muito aborrecido ultimamente, acho que as aulas da Escola estão lhe fazendo falta!
Assim, voltou Maurício em companhia de sua irmã Adriana, enquanto Cecília permanecia no mesmo local, não mais olhando a estrada que serpenteia descendo a Serra, mas observando os dois a se distanciar dali...
O rapazinho de fato era bem magro, quase franzino – analisou Cecília. Tinha um andar desengonçado pela magreza, e talvez poderia até ser motivo de risadas na Escola... Porém suas mãos eram delicadas, com dedos longos, eram mãos apropriadas para escrever, bem diferente das mãos rudes, desproporcionais, que geralmente os meninos da roça possuem, característica de quem já se adaptou ao trabalho duro e pesado na lavoura. Havia muita inteligência, simpatia e doçura naquele olhar meigo. Os traços do rosto eram suaves e seus olhos eram grandes e bem expressivos, talvez indicando bondade de alma, acreditou Cecília.
Também era um menino sério e muito educado. Leandro sempre dizia que Maurício conversava pouco na Escola e não brincava no recreio. Obedecia à professora e nunca deixou de trazer o dever de casa, que era feito com um capricho impecável.
O fato é que o menino tinha um aspecto bem diferente dos outros rapazes que moravam por ali.
Pois sim! Maurício era um rapaz “de fora”!

Os pontinhos que Cecília viu se movimentando na estrada desapareceram! Provavelmente estavam fora do alcance das vistas: atravessavam agora as baixadas onde as pontes cortavam riachos em diversos lugares.
E o menino também já desaparecera após a curva da estrada... Então Cecília olhou mais uma vez para o cactus e teve uma ideia.
Porém, nesse momento seu avô gritou-lhe o nome, e a menina apressadamente desceu a estrada em direção ao casarão da Sede; precisava ajudar Amélia nos afazeres de casa. Seus tios chegariam dentro de poucas horas.