Capítulo 31: "Desencontro"


Em Acemira, cessara toda notícia sobre Maurício. Com parcos recursos, a família de Alécio mal se mantinha. Não havia condições nenhuma de viajar em busca do filho pródigo, que nunca mais retornou à casa paterna. Reuniram as poucas economias, que dariam para uma única pessoa viajar. Escolheram Adriana, que de todos irmãos era a mais próxima de Maurício, a que sempre ouvira suas confissões. Os pais já estavam velhos e sem condições de viajar. A estrada era ruim e os meios de transporte eram piores ainda.
Adriana partiu então, rumo a Curuajubá. Precisava fazer aquela viagem em busca do irmão. E sem saber, percorreria o mesmo caminho que Cecília fez, tempos atrás.
Adriana desceu na Estação Ferroviária em Imperador, onde foi fácil se identificar e obter alguma notícia do irmão, já que Maurício foi uma pessoa conhecida e muito querida por lá. Apontaram-lhe a cidade de Jequitibá da Mata, para onde partiu Adriana em busca de Maurício.
Foi recebida por Anita, na casa de Divino. O marido encontrava-se no trabalho. Anita contou-lhe tudo que sabia sobre Maurício e mostrou-lhe a edícula onde Maurício viveu seus últimos dias. O homem nunca se casara e sua vida era só trabalhar e pintar aquarelas. Não participava de festas na cidade, não se importava com nada e para ele as coisas eram assim: “tanto faz, tanto fez”. Era tudo que sabia daquele moço misterioso, que viera de São Paulo alguns anos atrás em companhia de Divino. Mostrou-lhe também algumas aquarelas, inclusive aquelas onde retratava a entrada da Sede e a moça, ao lado do cactus.
Falou sobre a súbita mudança do rapaz, transformada em loucura, quando Divino o encontrou encerrado por três dias na edícula.
Adriana olhava as pinturas, e vendo os lugares retratados e a imagem tão bem reproduzida de Cecília nos tempos de moça, de repente começou a compreender tudo que se passava na alma de seu querido irmão. Chegando Divino do trabalho, pediu que a levasse o mais breve possível ao Hospital Psiquiátrico, onde Maurício passava esses últimos meses. Partiram para o Rio de Janeiro no dia seguinte.


Quando Maurício não estava bem, quedava-se inerte na posição que o colocassem. E nesses dias assim, era transportado pelos corredores do Hospital numa cadeira de rodas, onde um agente o colocava de frente às janelas de grades. Assim ficava Maurício no terceiro nível do Hospital, na ala dos catatônicos, o dia inteiro. Não incomodava ninguém – aliás, isso é uma das características dos catatônicos. Com o olhar parado, fixava-o ao longe em algum ponto vazio, pelos vãos da janela, que pela altura que estava, ficava sobre a copa das árvores mais altas do pátio. Sua imobilidade era quebrada apenas para alimentação e higiene, que pacientemente era ministrada pelo enfermeiro a ele e a todos os pacientes daquela ala. Era como cuidar de plantas, nada mais.
Naquele dia, uma linda manhã ensolarada de Novembro, o agente que tomava conta da ala precisou limpar as janelas, enquanto deixava no fundo da sala – sentado sobre a cadeira de rodas – o paciente Maurício, que imóvel, olhava em direção a janela, sem contudo nada ver, com seu olhar vazio. O agente soltou os cadeados de segurança da janela e removeu a grade. Abriu as grandes folhas envidraçadas par a par, deixando que entrasse uma leve e refrescante brisa da manhã, e afastou-se um pouco em direção ao balde com detergente e pano, para começar a limpeza da janela.
Não houve tempo para mais nada. Absolutamente nada.
Num arranque, Maurício levantou-se da cadeira de rodas. Em alta velocidade avançou em direção à janela e num impulso atirou-se de braços abertos no espaço vazio. Ainda no ar, lançou um grito – o único som depois de tanto tempo em completo mutismo – mas era um grito sobre-humano, parecia mais com o grito das aves, quando vê a porta de sua gaiola aberta e por ela se atira, fugindo para a liberdade.
Maurício chocou-se contra os galhos da árvore que ficava mais próxima da janela e rodopiando no ar, num baque surdo estatelou-se no chão, naquele piso duro do pátio.
Diante da tragédia, o diretor mandou fechar imediatamente as portas que davam acesso ao pátio. Naquela manhã, ninguém mais tomaria Sol. Maurício ficara a manhã toda no pátio, de bruços, com seu rosto voltado contra o concreto, os braços abertos. O sangue aos poucos formou um círculo escuro em volta de si, aumentando vagarosamente a área manchada, conforme lhe saía do corpo. O médico legista demorou para chegar. Quando chegou, seu corpo foi recolhido, preparado e depois encerrado dentro de um caixão.
O diretor escrevia uma carta, um comunicado que seria levado o mais rápido possível até Jequitibá da Mata, pedindo a Divino que tomasse as providências do enterro. Mas nesse momento, Divino e Anita entraram com Adriana no salão de recepção do Hospital, procurando por Maurício!
Adriana sequer viu o corpo do irmão. Sem condições de mostrar à irmã o que restara de Maurício, o corpo foi somente reconhecido por Divino, pela obrigação da lei.
Transportado até Jequitibá da Mata, Maurício foi velado em caixão fechado. Adriana retornou para Acemira no dia seguinte ao enterro. E o corpo de Maurício descansa agora debaixo da sombra de um grande ipê, no Cemitério de Jequitibá da Mata. Ao seu lado, disputando a luz do Sol com as folhas do ipê, está crescendo um pé de cactus...


Cecília entristecera muito desde a viagem. Passavam-se os meses e não melhorava. Para Heitor, foi um grande erro empreender aquelas férias. Nunca soube o que realmente aconteceu naquela tarde, na Chácara, mas sentia em Cecília uma grande ausência desde aquela viagem. A jovem mulher levantava-se muito tarde da cama, pouco se interessava com os afazeres domésticos e muito cedo se recolhia outra vez. Instalara as duas aquarelas que trouxera na viagem bem diante de si, na parede do quarto. Passava tempos a olhar aquelas paisagens. Na primeira, que estava emoldurada e foi comprada na Estação de Trens, ainda havia um nome assinado sem nenhuma outra identificação, o qual Heitor mesmo lendo, jamais suspeitou quem realmente o tinha pintado. Na segunda aquarela, Maurício sequer assinou.
Com que perfeição Cecília foi desenhada!” Pensava Heitor, que via na pintura a imagem de Cecília quando ainda era jovem. “Enquanto andava na cidade em busca de meus amigos, certamente um pintor habilidoso – provavelmente o moço com quem cruzei o caminho na estrada, pois levava um cavalete – passou muitas horas a pintar o quadro, que, por fim, certamente vendeu à Cecília”. Mas Cecília nunca lhe disse nada sobre aqueles quadros. E Heitor preferiu também nunca lhe perguntar. As lembranças da viagem eram para ele dolorosas, e preferiu esquecer. Assim como também esquecera que “Maurício”, o nome assinado na primeira aquarela, foi o nome do antigo amor de Cecília.



Era uma linda manhã ensolarada de Novembro. Cecília outra vez ouviu a revoada dos pássaros. Mas dessa vez, pressentiu o motivo: alguém que lhe era muito querido se foi.