Em Acemira, cessara toda notícia sobre Maurício. Com parcos recursos,
a família de Alécio
mal se mantinha. Não
havia condições nenhuma de viajar em busca do filho pródigo, que
nunca mais retornou
à casa paterna. Reuniram as poucas economias, que dariam para uma
única pessoa viajar. Escolheram Adriana, que de todos irmãos era a
mais próxima de Maurício, a que sempre ouvira suas confissões. Os
pais já estavam velhos e sem condições de viajar. A estrada era
ruim e os meios de transporte eram piores
ainda.
Adriana
partiu então, rumo a Curuajubá. Precisava fazer aquela viagem em
busca do irmão. E sem saber, percorreria o mesmo caminho que Cecília
fez, tempos atrás.
Adriana
desceu na Estação Ferroviária em Imperador, onde foi fácil se
identificar e obter alguma notícia do irmão, já que Maurício foi
uma pessoa conhecida e muito querida por lá. Apontaram-lhe a cidade
de Jequitibá da Mata, para onde partiu Adriana em busca de Maurício.
Foi
recebida por Anita, na casa de Divino. O marido encontrava-se no
trabalho. Anita contou-lhe tudo que sabia sobre Maurício e
mostrou-lhe a edícula onde Maurício viveu seus últimos dias. O
homem nunca se casara e sua vida era só trabalhar e pintar
aquarelas. Não participava de festas na cidade, não se importava
com nada e para ele as coisas eram assim: “tanto faz, tanto fez”.
Era tudo que sabia daquele moço misterioso, que viera de São Paulo
alguns anos atrás em companhia de Divino. Mostrou-lhe também
algumas aquarelas, inclusive aquelas onde retratava a entrada da Sede
e a moça, ao lado do cactus.
Falou
sobre a súbita mudança do rapaz, transformada em loucura, quando
Divino o encontrou encerrado por três dias na edícula.
Adriana
olhava as pinturas, e vendo os lugares retratados e a imagem tão bem
reproduzida de Cecília nos tempos de moça, de repente começou a
compreender tudo que se passava na alma de seu querido irmão.
Chegando Divino do trabalho, pediu que a levasse o mais breve
possível ao Hospital Psiquiátrico, onde Maurício passava esses
últimos meses. Partiram para o Rio de Janeiro no dia seguinte.
Quando
Maurício não estava bem, quedava-se inerte na posição que o
colocassem. E nesses dias assim, era transportado pelos corredores do
Hospital numa cadeira de rodas, onde um agente o colocava de frente
às janelas de grades. Assim ficava Maurício no terceiro nível do
Hospital, na ala dos catatônicos, o dia inteiro. Não incomodava
ninguém – aliás, isso é uma das características dos
catatônicos. Com o olhar parado, fixava-o ao longe em algum ponto
vazio, pelos vãos da janela, que pela altura que estava, ficava
sobre a copa das árvores mais altas do pátio. Sua imobilidade era
quebrada apenas para alimentação e higiene, que pacientemente era
ministrada pelo enfermeiro a ele e a todos os pacientes daquela ala.
Era como cuidar de plantas, nada mais.
Naquele
dia, uma linda manhã ensolarada de Novembro, o agente que tomava
conta da ala precisou limpar as janelas, enquanto deixava no fundo da
sala – sentado sobre a cadeira de rodas – o paciente Maurício,
que imóvel, olhava em direção a janela, sem contudo nada ver, com
seu olhar vazio. O agente soltou os cadeados de segurança da janela
e removeu a grade. Abriu as grandes folhas envidraçadas par a par,
deixando que entrasse uma leve e refrescante brisa da manhã, e
afastou-se um pouco em direção ao balde com detergente e pano, para
começar a limpeza da janela.
Não
houve tempo para mais nada. Absolutamente nada.
Num
arranque, Maurício levantou-se da cadeira de rodas. Em alta
velocidade avançou em direção à janela e num impulso atirou-se de
braços abertos no espaço vazio. Ainda no ar, lançou um grito – o
único som depois de tanto tempo em completo mutismo – mas era um
grito sobre-humano, parecia mais com o grito das aves, quando vê a
porta de sua gaiola aberta e por ela se atira, fugindo para a
liberdade.
Maurício
chocou-se contra os galhos da árvore que ficava mais próxima da
janela e rodopiando no ar, num baque surdo estatelou-se no chão,
naquele piso duro do pátio.
Diante da tragédia, o diretor
mandou fechar imediatamente as portas que davam acesso ao pátio.
Naquela manhã, ninguém mais tomaria Sol. Maurício ficara a manhã
toda no pátio, de bruços, com seu rosto voltado contra o concreto,
os braços abertos. O sangue aos poucos formou um círculo escuro em
volta de si, aumentando vagarosamente a área manchada, conforme lhe
saía do corpo. O médico legista demorou para chegar. Quando chegou,
seu corpo foi recolhido, preparado e depois encerrado dentro de um
caixão.
O diretor escrevia uma carta,
um comunicado que seria levado o mais rápido possível até
Jequitibá da Mata, pedindo a Divino que tomasse as providências do
enterro. Mas nesse momento, Divino e Anita entraram com Adriana no
salão de recepção do Hospital, procurando por Maurício!
Adriana sequer viu o corpo do
irmão. Sem condições de mostrar à irmã o que restara de
Maurício, o corpo foi somente reconhecido por Divino, pela obrigação
da lei.
Transportado até Jequitibá
da Mata, Maurício foi velado em caixão fechado. Adriana retornou
para Acemira no dia seguinte ao enterro. E o corpo de Maurício
descansa agora debaixo da sombra de um grande ipê, no Cemitério de
Jequitibá da Mata. Ao seu lado, disputando a luz do Sol com as
folhas do ipê, está crescendo um pé de cactus...
Cecília
entristecera muito desde a viagem. Passavam-se os meses e não
melhorava. Para Heitor, foi um grande erro empreender aquelas férias.
Nunca soube o que realmente aconteceu naquela tarde, na Chácara, mas
sentia em Cecília uma grande ausência desde aquela viagem. A jovem
mulher levantava-se muito tarde da cama, pouco se interessava com os
afazeres domésticos e muito cedo se recolhia outra vez. Instalara as
duas aquarelas que trouxera na viagem bem diante de si, na parede do
quarto. Passava tempos a olhar aquelas paisagens. Na primeira, que
estava emoldurada e foi comprada na Estação de Trens, ainda havia
um nome assinado sem nenhuma outra identificação, o qual Heitor
mesmo lendo, jamais suspeitou quem realmente o tinha pintado. Na
segunda aquarela, Maurício sequer assinou.
“Com
que perfeição Cecília foi desenhada!” Pensava Heitor, que via na
pintura a imagem de Cecília quando ainda era jovem. “Enquanto
andava na cidade em busca de meus amigos, certamente um pintor
habilidoso – provavelmente o moço com quem cruzei o caminho na
estrada, pois levava um cavalete – passou muitas horas a pintar o
quadro, que, por fim, certamente vendeu à Cecília”. Mas Cecília
nunca lhe disse nada sobre aqueles quadros. E Heitor preferiu também
nunca lhe perguntar. As lembranças da viagem eram para ele
dolorosas, e preferiu esquecer. Assim como também esquecera que
“Maurício”, o nome assinado na primeira aquarela, foi o nome do
antigo amor de Cecília.
Era uma linda manhã
ensolarada de Novembro. Cecília outra vez ouviu a revoada dos
pássaros. Mas dessa vez, pressentiu o motivo: alguém que lhe era
muito querido se foi.