Certo
dia Leandro foi até Acemira e encontrando Maurício na rua, fez-lhe
um convite:
A Capela realizaria uma festa – a primeira depois que Amélia
faleceu, e os filhos de Getúlio convidaram as pessoas da região, os
fazendeiros e agregados para estarem lá. Getúlio já estava velho e
cansado, mesmo assim se animou um pouco e propôs matar duas vacas e
fazer um grande churrasco oferecendo aos convivas.
O velho nunca esquecera daquela família de agregados. Por muito
tempo repreendeu Narciso por sua atitude mesquinha, enquanto ele
estava doente. Sentia saudade de Alécio e dizia que eles jamais
mereceram o tratamento que receberam de Narciso.
Portanto naquele dia, em nome do velho Getúlio, Leandro também
convidava a família de Alécio para participarem da festa.
Maurício animou-se e apesar da resistência do velho pai, aceitaram
o convite, aguardando o dia. Naquele tempo a família começou a
progredir vagarosamente, e os filhos puderam comprar sua própria
cavalgadura, roupas melhores e bonitos chapéus. Compareceriam à
festa, com certeza. E apesar de Narciso, e seu modo rude de tratar
sua família, o velho Alécio tinha ainda entre os agregados da
Fazenda Águas Frias muitos amigos. Os meninos também conquistaram a
confiança dos rapazes locais e Adriana tinha muito apreço por
Cecília, a neta de Getúlio.
Certamente tudo correria bem, a festa seria boa e eles seriam muito
bem recebidos com a educação e o respeito de sempre que a família
de Getúlio tinha pelas pessoas que os visitavam. E não haveriam de
se arrepender por ter aceitado o convite.
Mas tem dias que seria melhor que o Sol não nascesse, e pudéssemos
ficar em casa dormindo, para que certas coisas não acontecessem em
nossas vidas... O destino é o alfaiate da vida. Ele corta, traceja e
costura. Algumas vezes, rasga e separa também. Nunca sabemos o que
há de se começar nos próximos minutos, nas próximas horas ou nos
próximos dias... Podemos até fazer previsões, mas só o tempo dirá
o que havemos de passar por causa de cada alinhavada que o destino
nos dá nas costuras da vida.
Os dois irmãos mais velhos se recusaram a ir na Fazenda Águas
Frias. Preferiram ficar em casa, na companhia da mãe, em Acemira.
Porém, ficou combinado na família que Maurício subiria com seu pai
e a irmã Adriana à festa da Capela.
Foi um Domingo, no começo de Setembro. Nuvenzinhas de algodão se
arrastavam num céu de tom azul rosado. Nem todos compareceriam à
festa na Capela. Mas Alécio levou consigo seus filhos Maurício e
Adriana. Cingiram os cavalos e Maurício sentiu-se orgulhoso de sua
cavalgadura.
Estava muito bem: a botina – embora fosse a mesma que usava todos
os dias no trabalho – fora polida e foi trocado o solado. O chapéu
era novo, de feltro negro e foi comprado para aquela ocasião:
possuía uma fita bordada de vermelho e dourado em volta da copa; e
um cordão que unia as duas pontas dentro de uma esfera de madeira
completavam o acessório, impedindo o vento de lhe arrancar o chapéu
da cabeça. Um cinto de couro com fivela prateada do irmão mais
velho e a camisa xadrez engomada que fora emprestada de seu outro
irmão, lhe caíram muito bem. Como ornamento, pendurou seu canivete
na cintura. Maurício também percebeu que seu aspecto era melhor,
pois já não era tão magro como aquele menino que foi tantas vezes
vaiado na Escola.
Na verdade Maurício queria impressionar Cecília, sobre quem andava
pensando muito nos últimos meses, imaginando o quanto ela já
estaria bonita, com a idade maravilhosa da adolescência. Se antes já
era linda, imagine agora! Mas o rapaz era bem reservado e nem mesmo à
sua irmã Adriana ele falou sobre seus pensamentos.
Chegaram por volta das oito horas diante da Capela, pois Alécio e os
dois filhos se puseram a caminho no finalzinho da madrugada,
percorrendo o caminho que dá a volta por cima do espigão, porque a
cavalo não se dá para atravessar o lago. Havia no lugar um grande
ajuntamento de pessoas que acorreram ao evento: gente das terras
vizinhas, fazendeiros e agregados.
Ao fazer o convite, Leandro não explicara o motivo da festa, porém,
além da Missa, haveria também um bingo que seria realizado no
terreirão da Sede, agora protegido por enorme barraca de oleado
(tecido revestido de cera impermeabilizante, com a qual se cobriam as
coisas, era o tipo de lona daqueles tempos), disposta sobre troncos
que faziam as vezes de colunas. Era um enorme barracão, preparado
justamente para aquela ocasião. E depois, quando se juntassem as
mesas, seria servido um grande almoço no terreirão, sob a barraca,
como nos velhos tempos do mutirão – só que dessa vez com pessoas
bem-vestidas, preparadas para uma festa.
Maurício ainda montado sobre o cavalo, virava-se à direita e à
esquerda, buscando em vão com os olhos a cabeleira dourada de
Cecília em meio a toda aquela gente.
Leandro se aproximou deles com um largo sorriso e agradeceu a
presença, convidando Alécio a descer até a Sede, para visitar
Getúlio, que ainda naquele dia perguntou se eles tinham aceitado o
convite.
Adriana nesse momento perguntou a Leandro:
__E Cecília, como vai? Ela está por aqui?
__Ela vai bem – respondeu Leandro – ainda não está aqui, mas
logo chega. Ontem ela voltou à casa de meu pai, pois Heitor, aquele
rapaz que mora na fazenda ao lado, quis ir até lá para conversar
com minha família sobre Cecília. Ele está querendo se casar com
ela...
Naquele momento tudo perdeu o sentido para Maurício que viera por
muito tempo acalentando esperanças e fantasias dentro do coração.
A festa, as pessoas, a Capela e o churrasco... Tudo perdeu o sentido
para Maurício naquela hora.
Em pensamento, o rapaz começou a repreender a si mesmo: “eu sabia
que não deveria pensar nada sobre Cecília! Pois sou um ex-agregado,
sou pobre, sou feio e tímido. Que importância teria eu para essa
moça? Burro fui eu de acalentar sonhos, cultivar esperanças! Mas
que grande bobagem, a minha! E tudo isso começou com um texto, uma
redação idiota! Cultivei muito sentimento por uma relação que
imaginei que havia entre nós, porém, hoje vejo que não teve
nenhuma importância a ela... Pois agora Heitor foi pedi-la em
casamento e Cecília sequer se importa se eu compareci ou não à
festa. Certamente a festa é para marcar o noivado do casal, e eu
estou aqui para assistir tudo, agora!”
Por volta das onze horas apareceu a família de Cecília, montados a
cavalo. Vinha Irene, o pai, Cecília e o casal de irmãos mais novos,
pois Leandro já se encontrava por ali.
Maurício amuou-se num canto, sentado ao degrau da varanda assistindo
com olhar perdido todo o burburinho da festa, o corre-corre das
pessoas, suas conversas e suas risadas... Tudo era diversão para
aquela gente, menos para ele, que perdido em pensamentos, sequer
notou a chegada de Cecília, e muito menos a ausência de Heitor.
Adriana se desprendeu do pai e procurou Cecília em meio à festa.
Maurício não viu mais ninguém, chegou-se à grande mesa no
terreirão onde estava sendo servido o almoço e retirou-se até um
canto isolado, com seu prato nas mãos. Rapazes de sua idade
cumprimentavam-no e faziam rodas de conversa próximos de Maurício,
que com ar ausente apenas acompanhava com o olhar todo aquele
movimento, sem se envolver com nenhum dos grupos de rapazes.
Às três horas da tarde, subiu aborrecido em direção à porteira
sozinho e postou-se ao lado do cactus, alheio a todo barulho, com
olhar distante rumo ao Arraial, na direção de Acemira onde se
encontrava agora sua mãe.
“Certamente” – pensou Maurício – “teria sido melhor ter
ficado junto à mãe”. E virou-se para o cactus, como se ele
pudesse ouvir seus pensamentos. Percorreu o cactus com olhar. O
vegetal estava mudo, porém Maurício notou algo diferente em seu
caule principal: Viu ali duas novas iniciais gravadas fundas, feitas
por algum material cortante: Eram as letras “M e C”. As duas
letras estavam bem próximas uma da outra, quase juntas, e pelo
desenho das letras, percebeu que tinham sido feitas pela mesma mão.
Eram recentes, muito recentes. O rapaz não tinha ideia de quem
seriam as iniciais, nem quem as escreveu. Mas lembrou-se que
“Maurício e Cecília” começavam com essas letras também...
E com o canivete Maurício feriu o cactus, desenhando em volta das
iniciais um coração.
O dia já estava indo embora, e Alécio e seus dois filhos deveriam
apertar o passo para que a noite alta não os alcançasse na estrada.
Setembro ainda é tempo de aragem fresca e a idade de Alécio não
lhe permitia tomar sereno. Era, então, quatro e meia da tarde,
quando resolveram partir.
Após procurarem Maurício na festa, lembrou-se Adriana que mais cedo
o rapaz parecia estar chateado. Avisou seu pai e seguindo em direção
à porteira, encontraram-no impaciente, já montado em seu cavalo, à
espera apenas do pai e da moça para voltarem à cidade.
Partiram em direção à Acemira, e Alécio seguia contente, pois
conversara bastante com Getúlio. Havia uma relação melhor do que a
de patrão e ex-funcionário. Eram amigos também. Getúlio queria
muito bem à família de Alécio.
Maurício seguia logo atrás, ao lado da irmã, calado, quando
Adriana, ainda entusiasmada com o ar da festa, lhe perguntou:
__Você viu a Cecília?
__Não. Não vi ninguém – respondeu secamente o rapaz.
__Pois deveria tê-la procurado na festa! Ela perguntou duas vezes
por você...
__Procurar para quê? E eu quero lá causar ciúmes no noivo logo no
dia de seu noivado?
__E quem lhe disse que você provocaria ciúmes ao noivo? Você,
Maurício? Há! Jamais deixaria o noivo com ciúmes! – provocou
Adriana.
Então Maurício visivelmente irritado, respondeu:
__De fato. Não provocaria mesmo! Quem haverá de sentir ciúmes de
um Zé-Ninguém, do filho de um ex-agregado expulso, que sequer tem a
simpatia de Narciso?
Alécio ouvindo esta parte da conversa, que Maurício irritado falou
em tom mais alto, limitou-se a puxar as abas do chapéu, enterrando-o
na cabeça... Apertou o passo distanciando-se dos jovens.
Adriana então resolveu desfazer o mal-entendido:
__Não provocaria ciúmes porque ela não ficou noiva, meu
irmãozinho. Não existe nenhum noivo. Heitor foi até sua casa ontem
para pedi-la em namoro, como você bem escutou Leandro falando, mas
Cecília recusou o pedido. Ela não quer se casar com Heitor, e ponto
final. E a festa, meu irmão, não tinha nada a ver com noivado. Era
só um bingo que angariou dinheiro para reforma da Escola Rural. Por
isso te digo: Você deveria ter procurado Cecília... Deveria mesmo!
Você deveria se abrir mais com as pessoas, e quando tivesse dúvidas,
procurar saber a razão, e não se fechar como você costuma fazer.
Agindo assim, do jeito que você faz, nunca saberá ao certo o que
realmente está acontecendo à sua volta. E às vezes as coisas não
são como aparentam ser. Uma vez já lhe disse e volto a repetir:
Deve aceitar sempre a mão de quem lhe estende...
Maurício sentindo-se um bobo e miserável, teve vontade de chorar,
mas prosseguiu calado ao lado da irmã, sem desviar os olhos do
horizonte da estrada. Percebeu que menosprezara a si mesmo, sem
nenhum motivo.
Uma nuvem escura de revolta contra si mesmo, provocada pelo demasiado
sentimento de inferioridade, se aproximava do coração de Maurício.
Era uma nuvem negra e tempestuosa, dessas nuvens que não faz bem a
ninguém, e que se o rapaz soubesse o quanto seria nocivo para si,
teria procurado se desfazer dela o mais rápido possível.