Capítulo 15: "A desilusão"





Certo dia Leandro foi até Acemira e encontrando Maurício na rua, fez-lhe um convite:
A Capela realizaria uma festa – a primeira depois que Amélia faleceu, e os filhos de Getúlio convidaram as pessoas da região, os fazendeiros e agregados para estarem lá. Getúlio já estava velho e cansado, mesmo assim se animou um pouco e propôs matar duas vacas e fazer um grande churrasco oferecendo aos convivas.
O velho nunca esquecera daquela família de agregados. Por muito tempo repreendeu Narciso por sua atitude mesquinha, enquanto ele estava doente. Sentia saudade de Alécio e dizia que eles jamais mereceram o tratamento que receberam de Narciso.
Portanto naquele dia, em nome do velho Getúlio, Leandro também convidava a família de Alécio para participarem da festa.
Maurício animou-se e apesar da resistência do velho pai, aceitaram o convite, aguardando o dia. Naquele tempo a família começou a progredir vagarosamente, e os filhos puderam comprar sua própria cavalgadura, roupas melhores e bonitos chapéus. Compareceriam à festa, com certeza. E apesar de Narciso, e seu modo rude de tratar sua família, o velho Alécio tinha ainda entre os agregados da Fazenda Águas Frias muitos amigos. Os meninos também conquistaram a confiança dos rapazes locais e Adriana tinha muito apreço por Cecília, a neta de Getúlio.
Certamente tudo correria bem, a festa seria boa e eles seriam muito bem recebidos com a educação e o respeito de sempre que a família de Getúlio tinha pelas pessoas que os visitavam. E não haveriam de se arrepender por ter aceitado o convite.
Mas tem dias que seria melhor que o Sol não nascesse, e pudéssemos ficar em casa dormindo, para que certas coisas não acontecessem em nossas vidas... O destino é o alfaiate da vida. Ele corta, traceja e costura. Algumas vezes, rasga e separa também. Nunca sabemos o que há de se começar nos próximos minutos, nas próximas horas ou nos próximos dias... Podemos até fazer previsões, mas só o tempo dirá o que havemos de passar por causa de cada alinhavada que o destino nos dá nas costuras da vida.
Os dois irmãos mais velhos se recusaram a ir na Fazenda Águas Frias. Preferiram ficar em casa, na companhia da mãe, em Acemira. Porém, ficou combinado na família que Maurício subiria com seu pai e a irmã Adriana à festa da Capela.


Foi um Domingo, no começo de Setembro. Nuvenzinhas de algodão se arrastavam num céu de tom azul rosado. Nem todos compareceriam à festa na Capela. Mas Alécio levou consigo seus filhos Maurício e Adriana. Cingiram os cavalos e Maurício sentiu-se orgulhoso de sua cavalgadura.
Estava muito bem: a botina – embora fosse a mesma que usava todos os dias no trabalho – fora polida e foi trocado o solado. O chapéu era novo, de feltro negro e foi comprado para aquela ocasião: possuía uma fita bordada de vermelho e dourado em volta da copa; e um cordão que unia as duas pontas dentro de uma esfera de madeira completavam o acessório, impedindo o vento de lhe arrancar o chapéu da cabeça. Um cinto de couro com fivela prateada do irmão mais velho e a camisa xadrez engomada que fora emprestada de seu outro irmão, lhe caíram muito bem. Como ornamento, pendurou seu canivete na cintura. Maurício também percebeu que seu aspecto era melhor, pois já não era tão magro como aquele menino que foi tantas vezes vaiado na Escola.
Na verdade Maurício queria impressionar Cecília, sobre quem andava pensando muito nos últimos meses, imaginando o quanto ela já estaria bonita, com a idade maravilhosa da adolescência. Se antes já era linda, imagine agora! Mas o rapaz era bem reservado e nem mesmo à sua irmã Adriana ele falou sobre seus pensamentos.
Chegaram por volta das oito horas diante da Capela, pois Alécio e os dois filhos se puseram a caminho no finalzinho da madrugada, percorrendo o caminho que dá a volta por cima do espigão, porque a cavalo não se dá para atravessar o lago. Havia no lugar um grande ajuntamento de pessoas que acorreram ao evento: gente das terras vizinhas, fazendeiros e agregados.
Ao fazer o convite, Leandro não explicara o motivo da festa, porém, além da Missa, haveria também um bingo que seria realizado no terreirão da Sede, agora protegido por enorme barraca de oleado (tecido revestido de cera impermeabilizante, com a qual se cobriam as coisas, era o tipo de lona daqueles tempos), disposta sobre troncos que faziam as vezes de colunas. Era um enorme barracão, preparado justamente para aquela ocasião. E depois, quando se juntassem as mesas, seria servido um grande almoço no terreirão, sob a barraca, como nos velhos tempos do mutirão – só que dessa vez com pessoas bem-vestidas, preparadas para uma festa.
Maurício ainda montado sobre o cavalo, virava-se à direita e à esquerda, buscando em vão com os olhos a cabeleira dourada de Cecília em meio a toda aquela gente.
Leandro se aproximou deles com um largo sorriso e agradeceu a presença, convidando Alécio a descer até a Sede, para visitar Getúlio, que ainda naquele dia perguntou se eles tinham aceitado o convite.
Adriana nesse momento perguntou a Leandro:
__E Cecília, como vai? Ela está por aqui?
__Ela vai bem – respondeu Leandro – ainda não está aqui, mas logo chega. Ontem ela voltou à casa de meu pai, pois Heitor, aquele rapaz que mora na fazenda ao lado, quis ir até lá para conversar com minha família sobre Cecília. Ele está querendo se casar com ela...
Naquele momento tudo perdeu o sentido para Maurício que viera por muito tempo acalentando esperanças e fantasias dentro do coração. A festa, as pessoas, a Capela e o churrasco... Tudo perdeu o sentido para Maurício naquela hora.
Em pensamento, o rapaz começou a repreender a si mesmo: “eu sabia que não deveria pensar nada sobre Cecília! Pois sou um ex-agregado, sou pobre, sou feio e tímido. Que importância teria eu para essa moça? Burro fui eu de acalentar sonhos, cultivar esperanças! Mas que grande bobagem, a minha! E tudo isso começou com um texto, uma redação idiota! Cultivei muito sentimento por uma relação que imaginei que havia entre nós, porém, hoje vejo que não teve nenhuma importância a ela... Pois agora Heitor foi pedi-la em casamento e Cecília sequer se importa se eu compareci ou não à festa. Certamente a festa é para marcar o noivado do casal, e eu estou aqui para assistir tudo, agora!”
Por volta das onze horas apareceu a família de Cecília, montados a cavalo. Vinha Irene, o pai, Cecília e o casal de irmãos mais novos, pois Leandro já se encontrava por ali.
Maurício amuou-se num canto, sentado ao degrau da varanda assistindo com olhar perdido todo o burburinho da festa, o corre-corre das pessoas, suas conversas e suas risadas... Tudo era diversão para aquela gente, menos para ele, que perdido em pensamentos, sequer notou a chegada de Cecília, e muito menos a ausência de Heitor.
Adriana se desprendeu do pai e procurou Cecília em meio à festa. Maurício não viu mais ninguém, chegou-se à grande mesa no terreirão onde estava sendo servido o almoço e retirou-se até um canto isolado, com seu prato nas mãos. Rapazes de sua idade cumprimentavam-no e faziam rodas de conversa próximos de Maurício, que com ar ausente apenas acompanhava com o olhar todo aquele movimento, sem se envolver com nenhum dos grupos de rapazes.
Às três horas da tarde, subiu aborrecido em direção à porteira sozinho e postou-se ao lado do cactus, alheio a todo barulho, com olhar distante rumo ao Arraial, na direção de Acemira onde se encontrava agora sua mãe.
“Certamente” – pensou Maurício – “teria sido melhor ter ficado junto à mãe”. E virou-se para o cactus, como se ele pudesse ouvir seus pensamentos. Percorreu o cactus com olhar. O vegetal estava mudo, porém Maurício notou algo diferente em seu caule principal: Viu ali duas novas iniciais gravadas fundas, feitas por algum material cortante: Eram as letras “M e C”. As duas letras estavam bem próximas uma da outra, quase juntas, e pelo desenho das letras, percebeu que tinham sido feitas pela mesma mão. Eram recentes, muito recentes. O rapaz não tinha ideia de quem seriam as iniciais, nem quem as escreveu. Mas lembrou-se que “Maurício e Cecília” começavam com essas letras também...
E com o canivete Maurício feriu o cactus, desenhando em volta das iniciais um coração.


O dia já estava indo embora, e Alécio e seus dois filhos deveriam apertar o passo para que a noite alta não os alcançasse na estrada. Setembro ainda é tempo de aragem fresca e a idade de Alécio não lhe permitia tomar sereno. Era, então, quatro e meia da tarde, quando resolveram partir.
Após procurarem Maurício na festa, lembrou-se Adriana que mais cedo o rapaz parecia estar chateado. Avisou seu pai e seguindo em direção à porteira, encontraram-no impaciente, já montado em seu cavalo, à espera apenas do pai e da moça para voltarem à cidade.
Partiram em direção à Acemira, e Alécio seguia contente, pois conversara bastante com Getúlio. Havia uma relação melhor do que a de patrão e ex-funcionário. Eram amigos também. Getúlio queria muito bem à família de Alécio.
Maurício seguia logo atrás, ao lado da irmã, calado, quando Adriana, ainda entusiasmada com o ar da festa, lhe perguntou:
__Você viu a Cecília?
__Não. Não vi ninguém – respondeu secamente o rapaz.
__Pois deveria tê-la procurado na festa! Ela perguntou duas vezes por você...
__Procurar para quê? E eu quero lá causar ciúmes no noivo logo no dia de seu noivado?
__E quem lhe disse que você provocaria ciúmes ao noivo? Você, Maurício? Há! Jamais deixaria o noivo com ciúmes! – provocou Adriana.
Então Maurício visivelmente irritado, respondeu:
__De fato. Não provocaria mesmo! Quem haverá de sentir ciúmes de um Zé-Ninguém, do filho de um ex-agregado expulso, que sequer tem a simpatia de Narciso?
Alécio ouvindo esta parte da conversa, que Maurício irritado falou em tom mais alto, limitou-se a puxar as abas do chapéu, enterrando-o na cabeça... Apertou o passo distanciando-se dos jovens.
Adriana então resolveu desfazer o mal-entendido:
__Não provocaria ciúmes porque ela não ficou noiva, meu irmãozinho. Não existe nenhum noivo. Heitor foi até sua casa ontem para pedi-la em namoro, como você bem escutou Leandro falando, mas Cecília recusou o pedido. Ela não quer se casar com Heitor, e ponto final. E a festa, meu irmão, não tinha nada a ver com noivado. Era só um bingo que angariou dinheiro para reforma da Escola Rural. Por isso te digo: Você deveria ter procurado Cecília... Deveria mesmo! Você deveria se abrir mais com as pessoas, e quando tivesse dúvidas, procurar saber a razão, e não se fechar como você costuma fazer. Agindo assim, do jeito que você faz, nunca saberá ao certo o que realmente está acontecendo à sua volta. E às vezes as coisas não são como aparentam ser. Uma vez já lhe disse e volto a repetir: Deve aceitar sempre a mão de quem lhe estende...


Maurício sentindo-se um bobo e miserável, teve vontade de chorar, mas prosseguiu calado ao lado da irmã, sem desviar os olhos do horizonte da estrada. Percebeu que menosprezara a si mesmo, sem nenhum motivo.
Uma nuvem escura de revolta contra si mesmo, provocada pelo demasiado sentimento de inferioridade, se aproximava do coração de Maurício. Era uma nuvem negra e tempestuosa, dessas nuvens que não faz bem a ninguém, e que se o rapaz soubesse o quanto seria nocivo para si, teria procurado se desfazer dela o mais rápido possível.