Capítulo 11: "O caminho que vem do Lago"



  

Já disse que gosto de observar daqui desse ponto diante da Sede e desse cactus antigo, a estrada que vem da Serra, serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos?
Se disse, desculpa-me, por favor. Ando relapso ultimamente e as memórias recentes me falham. Provavelmente já falei, mas se falei, não me lembro. Todavia, ainda que ando esquecendo dos fatos recentes, nada me escapa das lembranças antigas, daquele tempo quando tudo era cheio de gente, tudo cheio de vidas.
Essa estrada que Maurício percorreu tantas vezes, e que sobe das margens do lago atravessando o Arraial, passando diante do Cemitério e da Escola Rural, e seguindo cruza a porteira da Sede e depois segue em direção à casinha de agregados onde uma delas possui um Ipê frondoso plantado ao lado da porteira, e seguindo adiante serpenteia a Serra em direção às terras mais desenvolvidas de Curuajubá, onde havia a Cooperativa... Ah, meu amigo! Essa estrada e seu aspecto me fixou bem na memória e lembro do movimento que havia sobre ela durante toda a semana e também aos Domingos.
Era gente para lá e gente para cá, uns caminhando em direção ao Arraial, outros voltando dele. O trote dos cavalos e a cantiga dos carros de bois eram constantes. O gado sendo tocado pelos capatazes estrada afora – na mudança de um pasto a outro, e as crianças vindo da Escola, o Vigário chegando em seu cavalo até a Capela, a turma de agregados carregando a enxada nas costas, seguindo até a Sede depois do mutirão... Lembranças vivíssimas daqueles tempos persistem na memória.


 Tudo passou. A enxurrada das chuvas abriu enormes valetas nos lados da estrada. Dos pequenos arbustos nascidos nas paredes do barranco, sobraram agora troncos nodosos de árvores penduradas, cujas raízes à mostra se agarram precariamente à terra traiçoeira dos barrancos, só na espera de uma chuva mais forte para cair. Animais perderam o medo natural dos humanos e circulam aqui e ali: tatus, ratos-do-mato, gambás, lobo-guará e até mesmo uma jaguatirica eu já vi passar por aqui. Pontes apodreceram e riachos assorearam, mudando seus cursos onde cruzavam com a estrada. A Escolinha já fechou. Não tem mais alunos para ensinar. Suas janelas e portas permanecem fechadas, até parece uma velha senhora que fecha os olhos, não querendo ver seus filhos indo embora...
O Arraial ainda tem moradores. Mas são bem menos do que naquele tempo. Da parede das casas, voltadas para a rua, em muitos pontos se vê os tijolos de adobe, nus, depois que o reboco caiu. As ruas estão malcuidadas e a Igreja precisando de reformas que há muitos anos não acontece pois se acabaram as quermesses e as festas para angariar dinheiro. Não tem gente suficiente para festejar. E a pracinha acanhada, hoje está cheia de matos e arbustos selvagens.
O aspecto geral desse lugar dá pouca evidência de que por aqui ainda existe alguma civilização ativa.
O Cemitério às vezes recebe um “novo morador”, mas até mesmo a chegada de um novo morador vem diminuindo sua frequência a cada ano, pois os vivos que morrem não estão sendo substituídos por outros vivos no Arraial, porque há tempos que já não nascem mais crianças por aqui e as famílias que sobraram aos poucos se retiram para a área urbana mais desenvolvida. Em breve, poderá se abrir o portão do Cemitério ou talvez lhe derrubar os muros e deixá-lo se integrar com a paisagem do Arraial, visto que em pouco tempo, tudo isso será um local de mortos. Um Arraial fantasma visitado apenas por animais silvestres.
O Cemitério é dividido em duas alas: a esquerda onde sepultam os fazendeiros e seus familiares, e a direita onde o restante da população é sepultada.
 Seguindo pela via principal que vem desde o portão até a quarta entrada à esquerda, onde o terreno principia a descer num declive, encontra-se o túmulo de Amélia... Sei-o de cor, e não poderia saber de outro modo, pois não restou nenhuma indicação mais precisa: a cruz já foi consumida pelos cupins e o mato tomou conta de tudo ao seu redor. Há um vestígio, um montículo só, ressaltado, e que indica haver ali uma sepultura. E eu sei: É ali o descanso final de Amélia.
Houve um grande cortejo e muita comoção por ocasião da morte, com a família de Getúlio, os fazendeiros da região e todos os agregados da Fazenda Águas Frias no seu funeral. A Missa foi rezada na Capelinha mesmo, pelo vigário de Acemira. E depois seguiram todos em fila indiana trazendo o caixão. A estrada ainda era boa, e o Arraial se preparou com esmero para receber o corpo de Amélia. Faixas negras e roxas foram penduradas em todas as portas e o comércio fechou. A Igreja repicou dolorosamente o sino em dobraduras tristes enquanto as pessoas ao lado da praça – naquele tempo bem cuidada – observaram de olhar triste e chapéus nas mãos a passagem do cortejo que conduzia o féretro lentamente. As pessoas persignavam-se gravemente ao passar o caixão. E por fim, depositaram-na bem ali, naquele jazigo do Cemitério.
Eu lembro de como foram tristes aqueles dias. Ainda que o tempo destruiu sua cruz e levou com ela seu nome e qualquer identidade, eu sei que Amélia está ali.
Ou, pelo menos, seu corpo...



Agora está tudo assim: Tudo abandonado e esquecido – bom, nem de todos esquecido – mas está assim, solitário: tanto o Arraial com todas as suas construções, como o Cemitério, a Escola Rural e toda a extensão da estrada que Maurício percorrera naquele longínquo Domingo em direção à casa de seus pais. Tudo agora tão vazio e tão só...
Hoje está assim, mas naquele tempo fora melhor.