A Escola Rural que havia no Arraial não seguia um padrão convencional
de planos de aula. Mantida pela Prefeitura de Acemira com parcos
recursos e com a ajuda da Paróquia (que tinha cedido o prédio),
tanto a Escola quanto o Arraial estavam em área de litígio que
havia entre Acemira e Curuajubá. Assim, meio que abandonada,
sobrevivia da boa vontade dos fazendeiros locais e da mão de obra
dos agregados que às vezes lhe respaldavam as paredes, pintavam a
construção e reformavam seu telhado.
As três
professoras eram enviadas por Acemira uma vez na semana, e tinham de
atravessar o lago no batelão. Cobrava-se uma taxa na travessia, mas
a Prefeitura pagava a passagem das três professoras. E só era
possível fazer a travessia quando o tempo estivesse bom. Por causa
disso, o aluno da Escola Rural seguia um ritmo mais lento de
aprendizado. E a conclusão do Curso seguia lentamente, nunca
terminando exatamente num ano, mas estendendo suas matérias até
mesmo por dois anos ou mais, conforme a disponibilidade das
professoras, a frequência dos alunos e o volume de matérias
aplicado. Não projetada para incluir seus alunos em graus superiores
da Educação, a Escola Rural limitava-se a ensinar noções básicas
da Língua Portuguesa, Matemática, História e Geografia. O aluno
terminava o Curso com capacidade de fazer contas e negociar, de ler
razoavelmente bem qualquer texto – desde que não se aplicasse
palavras complexas. E era só isso.
Maurício completou o Curso quando estava já com quinze anos de
idade. E com dezessete foi para Acemira.
Na pequena cidade Maurício se viu pela primeira vez independente,
com a responsabilidade de tomar agora suas próprias decisões –
desde que não esquecesse jamais dos bons exemplos de moral que
sempre recebeu de seus pais. Os primeiros meses foram muito difícil,
era adaptação e o trabalho exigia assiduidade no emprego e lhe
consumia o tempo por doze horas ao dia – das sete horas da manhã
até as sete da noite e de Segunda a Sábado. Na Escola Pública –
que também só oferecia o Primário naquela época – disseram-lhe
que talvez precisasse voltar um ou dois graus no estudo, para se
enquadrar com as outras crianças, em conformidade com aquilo que
estavam estudando – crianças que por sua vez eram bem mais jovens
do que ele! Somente assim Maurício conseguiria o diploma exigido e
as condições necessárias para prosseguir com os estudos e fazer
algum curso superior no futuro, procedimentos que deveriam ser
continuados em outra cidade, distante e mais desenvolvida...
Diante de tantas dificuldades, Maurício, porém, com sua
determinação, não desistiu. Embora de imediato não fosse possível
continuar os estudos, todavia permaneceu em Acemira trabalhando no
Bar do Josias e a cada quinze dias voltava à casa dos pais para
almoçar com eles e matar a saudade.
Saudade foi um sentimento que acompanhou Maurício desde sempre:
Ligado aos pais, porém morando agora do outro lado do lago, o rapaz
viu a distância impor limites no contato que havia entre eles.
Cansado da jornada de trabalho, quando terminava o dia às vezes
descia até o lago para observar as águas e as terras que existiam
depois dele, contemplando a estradinha que subia o barranco do outro
lado em direção às terras de Getúlio, enquanto o Sol recolhia
seus últimos clarões por detrás das montanhas...
Naquele Domingo haveria de tomar o barco emprestado e atravessar o
lago. Seria uma boa caminhada, pois deveria percorrer todo o caminho,
desde o barranco onde o barco atracava até o Arraial. Eram três
quilômetros de muita subida e a estrada judiava dos pés – mesmo
calçado com sapatos fechados, pois a estrada era cascalhada. O
caminho era ladeado por antigos – porém firmes – mourões de
candeia ligados entre si por arame farpado, que cercavam os pastos
dos dois lados da estrada – Candeia é a madeira de uma árvore
abundante na região, cujo cerne duríssimo é capaz de sustentar uma
cerca por mais de uma década.
Esse pedaço de estrada é riquíssimo em frutas nativas, fáceis de
serem colhidas por quem ali caminha com fome, pois crescem livremente
à beira da estrada: pés de gabiroba, maria-pretinha, murici,
uvalha, mamica-de-cadela, fruta-de-grilo e outras, que só as
conhecem quem já viveu em Minas Gerais...
Chegando ao Arraial, continuaria sempre adiante, passando pela Escola
Rural e tomando um caminho de estrada antiga que com o tempo afundou
no terreno, deixando por vezes barrancos altos dos dois lados da
estrada. Antigamente havia por lá emboscada de onças, que entre uma
curva e outra da estrada atacavam os transeuntes a pé, solitários e
desatentos, pulando sobre eles desde o alto dos barrancos... Agora já
faz tempo que não se ouve casos assim. Ou as onças se extinguiram
ou foram caçar em terras longe daqui.
Do Arraial até a casa de seu pai, Maurício deveria caminhar doze
quilômetros – ou seja, uma légua até a porteira da Sede e
prosseguir adiante por mais uma légua. Essa etapa da viagem que
continuava além da porteira da Sede era mais fácil, pois o caminho
principiava um pequeno declive que se pronunciava conforme a estrada
seguia em direção ao pé da Serra, que estava ainda distante muitas
léguas dali.
Mas para aquele Domingo, Maurício sentiu que tinha uma missão
diferente: tinha de levar uma redação escrita, que foi prometida à
neta de Getúlio antes mesmo de se mudar para Acemira...
A labuta da vida e a saudade da casa paterna que lhe atormentava dia
e noite, consumiram-lhe completamente os pensamentos durante aqueles
dias passados em Acemira, e Maurício sequer tinha se lembrado da
promessa que fizera à Cecília. Além disso, quem garante que não
fora aquele pedido da menina apenas uma forma de entabular conversa?
Quem garante que Cecília não falou sobre a Escola, as redações e
tudo mais apenas para preencher o tempo em que ficaram a sós, ao
lado daquele cactus antigo e mudo, sem outro assunto para conversar?
Porque a neta de Getúlio haveria de querer ler a redação de um
menino que há dois anos saiu da Escola e nem mesmo ele se lembrava
mais do que andou escrevendo?
Já fez tanto papel de bobo na Escola – pensou Maurício –
riram-se dele o tempo todo em que ali estudou e o menino nunca
retrucou nem discutiu com ninguém. Magérrimo, sabia que seus
colegas tinham razão em notar seu físico, inadequado para o
trabalho rural. E não queria agora, depois de tudo isso, fazer papel
de infantil, levando à Cecília uma redação como se fosse uma
pequena criança entregando à professorinha seu dever de casa... É
provável que Cecília agradeceria com educação, mas, com certeza,
estaria se rindo por dentro de tamanha infantilidade... E a última
coisa que Maurício desejava, era ser motivo de risos outra vez.
Decidiu, então: Não faria a redação.
Aliás, mesmo que quisesse fazer, não haveria mais tempo, pois a
tarefa demandava algumas horas de reflexão – tempo que ele já não
tinha mais, pois o Sábado já anoitecera e Maurício precisava
descansar. E descansar bastante, pois a caminhada no dia seguinte
seria longa, debaixo de um Sol quente... Ainda que na volta para
Acemira seu pai o trouxesse na garupa do cavalo até o barco, todavia
percorrer a pé os quinze quilômetros na viagem de ida, num dia de
Domingo – e depois, quando voltasse, enfrentar a semana inteira num
trabalho que lhe consumia doze horas por dia, era algo cansativo,
sobre-humano mesmo, para Maurício.
Olhou pela última vez o espelho d'água cuja superfície o vento
calmo perturbava, e que se escurecia cada vez mais conforme o céu
mudava de violeta escuro a um negro salpicado de estrelas. Do outro
lado do lago as terras de Getúlio mergulhavam na escuridão. O que
fazia agora Cecília? Certamente estava em companhia de seu avô e de
Amélia, na grande casa da Sede. Ou talvez tivesse voltado à casa de
sua mãe, para passar com eles o final de semana...
Do casebre de seu pai, com certeza subia o fumo pela chaminé do
fogão a lenha, na preparação do jantar. O que comeriam esta noite?
Será que o pai já matou aquele porco que criavam por vários meses
no cercado que havia no fundo do quintal?
Maurício lembrou-se que ainda não tinha jantado; deu meia-volta e
retornou à casa. Definitivamente, o rapaz precisava descansar bem
naquela noite.
E sendo assim, não faria a redação e pronto!
Com certeza, Cecília nem se lembrava mais disso.