Capítulo 1: "A área rural"




A primeira visão que lhe dou é do Arraial, que se chama Cafundós. Guarde bem esse nome, pois não vou mencioná-lo outra vez. Da janela da torre da Igreja se vê cinquenta por cento do povoado. A outra metade está atrás de nós, do outro lado da Igreja. Sim, é isso mesmo! O Arraial é bem pequeno.
Ao fundo, a estrada que corta lavouras e pastagens segue por três quilômetros, até as margens do lago.
O Arraial é pequeno, mas foi aqui que se deu aquela festa.
E Adriana viu tudo... Maldita festa! Maldito bingo! Gostaria que não tivesse acontecido. Seria bom que aquele dia sequer tivesse existido!
Vamos embora daqui, vamos para outro lugar, pois aqui me dá calafrios. Não me sinto bem neste Arraial...

 
Gosto de observar a estrada que vem da Serra, serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos. O terreno, montanhoso e amarelado, é cascalhado por natureza. De tão amarelado e cascalhado que é, por tal motivo uma cidade não muito longe daqui leva o nome indígena de Curuajubá, que significa “Cascalho Amarelo”.
Entre pedregais foi criada a estrada; e por aqui há muito tempo passaram tropas de mulas e carros de bois em formação de comboios, carregando a safra dos sítios e fazendas para serem vendidos na Cooperativa da cidade ou trocados por outros produtos já industrializados que não se fabricavam na roça – como alguns tipos de tecidos, botões, panelas, móveis e utensílios, açúcar, sal e outros provimentos – que os mesmos comboios traziam para cá, na volta.
Havia tropas de cavalo com seus cavaleiros na labuta do dia a dia, com a poeira da estrada a colar no suor da pele sob a camisa rasgada, queimando no Sol de Minas ou fustigado pela chuva tropical. Também passaram nessa estrada as famílias, com a roupa domingueira: Homens e rapazes de chapéus de feltro e camisa de colarinho, canivete na cinta de couro, botina meio cano. Senhoras e mocinhas de sombrinha, vestidos compridos e fitas, carregando suas bolsas a tiracolo; montados em animais de sela ajaezados ou em charretes (carroças a cavalo), em direção às festas do Arraial.
Mas isso foi há muito tempo, sim, muito tempo mesmo…
De tão antiga que é, a estrada em alguns pontos formou sulcos profundos no terreno, chegando mesmo a passar entre barrancos com até dois metros de cada lado, em alguns pontos, rasgando a terra como se fosse o leito seco de um rio.
O terreno é bem acidentado e o clima da região é ameno. O bioma daqui é o Cerrado, com árvores de porte médio, galhos retorcidos e cascudos, capim rasteiro subindo as encostas, e áreas úmidas com árvores frondosas nos capões que existem, nas reentrâncias das montanhas e na beira dos córregos e riachos. A fauna e a flora são ricas, pois aqui há muita vida silvestre. Porém, os agrupamentos de pessoas e povoados estão ficando cada vez mais raros neste lugar…
As casinhas – simples, sem nenhuma ostentação – de quando em quando aparecem aqui e acolá, próximas à estrada. Se fumega a chaminé, elas denunciam que estão ocupadas, e há pessoas e vida dentro delas. Mas não espere encontrar muitas assim, porque quase todas já foram abandonadas.
Para essas casinhas já abandonadas e com suas portas e janelas fechadas, o tempo (e o cupim que vem com ele), já tirou-lhes todo o encanto – como, por exemplo, aquele casebre que existe antes da curva da estrada, e que tem uma enorme e centenária árvore de Ipê na entrada, ao lado dos restos de uma porteira: ali já morou muita gente ao longo de sua existência.
O Honorato que viveu no casebre por muitos anos, foi um velho solteirão. Nunca se aventurou com as mulheres da região por causa de sua gagueira. Seu distúrbio era tão severo que às vezes o pobre Honorato completava as frases com mímicas. Jamais teve coragem de pedir a mão de alguma moça em casamento; assim, envelheceu e morreu solteiro. Mas de todos que viveram naquele casebre, a família de Alécio é a que marcou mais profundamente na memória: Eram pessoas da Cidade Grande, vindos da longínqua Capital Paulista, com sotaque estranho, e que um dia resolveram se mudar para o interior.
Hoje abandonado, o casebre vai ruindo aos poucos. E as guarnições de madeira, apodrecidas e carcomidas pelos cupins e pelas longas décadas, sofrendo a chuva e a estiagem, sem nenhum cuidado de seus antigos habitantes que já não estão mais aqui, se derretem à soleira das portas e umbral das janelas, enquanto o telhado cede com o peso das telhas de barro.
Há muitas casas por aqui, nessa situação. E o mato cresce ao redor das casas abandonadas, das tulhas e dos currais. E assim, como se fosse uma língua verde e faminta, a Natureza se acerca também do interior das residências e construções, como que para resgatar o espaço que outrora lhe foi tomado pelo homem e pela civilização.
Por que esse mundo outrora tão cheio de vida se esvaziou?
Está vazio porque a terra cansou e agora produz cada vez menos. O tratamento da lavoura, muitas vezes feito de modo incorreto com produtos químicos, ajudou a destruir a fertilidade do chão. E também o maquinário que foi implantado nos polos agrícolas ao redor das grandes cidades, provocou uma concorrência desleal, onde se oferece ao consumidor um produto agrícola cada vez mais barato e em maior abundância por causa da tecnologia e da facilidade no transporte, enquanto os pequenos sítios e as tradicionais fazendas, enterradas no mais isolado sertão e desprovidas do desenvolvimento, vão ficando cada vez mais à deriva, e a população rural então inicia seu êxodo até as grandes regiões urbanas em busca do desenvolvimento e do conforto que já não encontram mais por aqui.
As famílias que ainda permanecem habitam construções rústicas, quase primitivas, muitas delas com paredes de adobe levantadas sobre esteiras de bambu, rebocadas com uma mistura de barro e estrume de vaca. Possuem o piso interior das casas de barro batido; e forros de taquara pendurados no teto. E essas casas, quando habitadas, são iluminadas por lamparinas, pois a energia elétrica – considerada um artigo de luxo – até hoje não chegou. Há sempre um jardinzinho de margaridas viçosas na porta da sala, ou um pé de manacá projetando sombras na varanda. E os quintais estão sempre varridos pelas donas de casa, que ainda usam vassouras de guanxuma.
As casas que sobraram – estejam elas habitadas ou não – são testemunhas de muitas vidas, gerações de pessoas simples e trabalhadoras, que sonhavam com o cair do orvalho e da chuva nas plantações. Que aguardavam a mudança da lua para colher ou plantar, gente de mãos calejadas e de falar compassado, quase tímido. Hospitaleiros e solidários uns com os outros, que se ajudavam mutuamente no plantio, na manutenção e na colheita da lavoura. Faziam mutirão; e depois do estafante trabalho, com o Sol já querendo se esconder, cercavam a mesa farta disposta no “terreirão” e preparada pelas senhoras e comadres, onde não faltava a leitoa assada, o arroz com quiabo, a farofa de milho e a farinha de mandioca torrada, o feijãozinho e o frango no suculento caldo, o suco de frutas frescas, a cachacinha e a pimenta.
Ali, os chefes de família traçavam seus planos de compra e venda da safra, do comércio de gado, de animal de montaria, as possíveis negociações na cidade e os melhores caminhos a tomar, para que todo esse trabalho lhes rendesse o máximo de lucro com o mínimo prejuízo. Os filhos mais velhos falavam de suas viagens à cidade grande, e aqueles que nunca tinham saído dali se reuniam em roda para escutar as histórias com atenção – os grupos de jovens separados do grupo de pais, que conversavam sobre negócios.
As meninas mais velhas – entre uma tarefa e outra na cozinha – com olhar esperançoso conversavam entre si sobre os mais diversos assuntos: desde o pano novo com estampa diferente que veio da cidade, as aulas dadas pela professorinha uma vez por semana na Escola Rural, o primo da cidade que veio visitá-los no último fim de semana e até o Sermão do Padre, na Missa de Domingo… Entre risadas, confissões e segredinhos nem sempre sinceros, consideravam entre si as possíveis cunhadas, irmãs de seus possíveis e futuros maridos, que nesse momento poderiam estar ali mesmo, na roda dos rapazes… Pois na roça é assim: o povo se dá em casamento entre vizinhos; a herança das terras em cada casamento se divide ou se junta, e no fim, fica tudo entre eles mesmos: o povo dali.
Exceto, é claro, quando aparece alguém da cidade, ou de outro lugar, e cai nas graças de alguma família; quando isso acontece, então é possível que uma das filhas se case com o moço… Mas são casos raros. Muito raros.
Enquanto adultos e jovens conversavam nessas reuniões de mutirão, as crianças pequenas faziam algazarra e brincavam de pique-esconde, ou saíam procurando tanajuras e cigarras, ou então, caçando um imaginário tatu que se escondera nos arbustos, às margens do terreirão…
O terreirão era aquele espaço aberto que existia ao lado da casa, onde secavam a colheita do arroz, do feijão e do café, e onde também se reunia todo esse pessoal após o mutirão, para comer, cantar e conversar. E era dessa forma que se relacionavam as famílias do lugar.
A vida era simples, trabalhosa, mas era animada e feliz. As coisas por aqui aconteciam de forma previsível: era como se os camponeses, que sabiam a época certa do plantio e da colheita, soubessem também dirigir suas vidas sob outros aspectos, de um modo calculado.
Hoje tudo se transformou em algo pior: O lamento dos carros de bois só posso ouvir agora na imaginação. A cantiga do carrieiro ralhando com a boiada: Ôôâ Malhado! Afaaasta Cruzeiro! Vamos, Tourinho! Eiaaa Curisco! Xiiispa, Campeiro! Fooorça Carrapicho… Tudo isso agora só ouço na imaginação. Fecho os olhos para ver, e quando os vejo, também vejo mais: Vejo as famílias que viveram aqui, vejo as histórias, os “causos”, as alegrias e as tristezas, o riso e o choro, as dores e os gemidos das almas e das vidas que aqui viveram.
Mas só na imaginação mesmo… Porque tudo se foi, tudo passou, tudo ficou esquecido. Aliás, nem tudo…