Gosto de observar a estrada que vem da Serra, serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos. O terreno – montanhoso e amarelado, é cascalhado por natureza.
Eu
já disse isso uma vez, não é? Bom... acho que disse já várias
vezes... mas o fato é que realmente gosto de estar aqui!
A
princípio vinha aqui sozinho, porque nesse mundo de encontros e
desencontros, nem sempre é possível encontrar a companhia certa
para fazer essas excursões... E sendo assim, como a vida de uma
gralha não pode ultrapassar onze anos, a cada geração obrigava-me
a vir aqui todas as vezes, dia após dia, na solidão. E fazia isso
tão logo reaprendia a voar do ninho, dias depois de me livrar da
casca do ovo, outra vez. Esta foi minha sina, pelas muitas vidas que
já vivi.
Mas
eu sei que agora será diferente e não haverá mais retornos nem
siclos, quando mais uma vez a morte chegar para mim, porque como eu
disse alguns capítulos atrás: “Quem acreditaria hoje na estória
da gralha, se contássemos que as pessoas quando morrem sem cumprir
algum desígnio da vida, transformam-se nesse animal e recomeçam o
ciclo da vida como espectador ou protagonista, até que sua missão
seja cumprida e lhe concedam o descanso?”
Então,
poucos acreditariam, ainda mais porque as gralhas se tornaram um
pássaro tão raro! Mas as lendas existem, mesmo que adormecidas na
memória, e chega um dia que não sabemos até que ponto deixam de
ser fantasias para se transformarem em realidades...
Ou
será que há em tudo isso, uma ajudinha do velho Ananias? Pois ele
prometeu que um dia me recompensaria a caridade de visitá-lo
sempre... E fez a promessa dois dias antes de morrer.
Mas
agora já não importa mais. O importante é que hoje será o meu
dia! Finalmente meu ciclo se fecha quando terminar de contar essa
história a você (e conto-a justamente porque não estarei mais
aqui).
O
ciclo se fecha quando eu e meu par – que já não possui aqueles
belos cabelos dourados, mas que adquiriu agora uma linda plumagem
azul e branca – finalmente voarmos juntos pela última vez até o
pico daquela alta montanha – que existe lá pelas bandas das terras
de Irene – onde há ruínas de pedras brutas, e onde uma enorme
figueira nos aguarda com um ninho encravado nas reentrâncias de sua
casca nodosa. E nas frestas da madeira já bem próximo do ninho,
como é de costume das gralhas, estão ocultos objetos de metal
brilhante: há no interior das frestas, brilhando quando o Sol é
meio-dia, um belo par de alianças que nunca foi usado, com duas
iniciais gravadas no lado de dentro de cada uma delas: “M e C”.
São de ouro verdadeiro, porém muito finas, adquiridas conforme as
possibilidades de seu antigo dono, há muitas décadas passadas.
É
naquele ninho, onde diante de tão esplêndida paisagem que pode ser
vista daquele mirante natural, que cumpriremos nosso papel na vida,
aquele que juntos planejamos numa outra época, cujos corações não
esqueceram por uma vida inteira:
Iremos,
por fim, nos acasalar!
Diga-me:
formamos um belo casal, não é verdade?