Capítulo 33: "O ciclo"


Gosto de observar a estrada que vem da Serra, serpenteando toda poeirenta, fazendo um zigue-zague em volta dos morros e cortando riachos. O terreno – montanhoso e amarelado, é cascalhado por natureza.
Eu já disse isso uma vez, não é? Bom... acho que disse já várias vezes... mas o fato é que realmente gosto de estar aqui!

A princípio vinha aqui sozinho, porque nesse mundo de encontros e desencontros, nem sempre é possível encontrar a companhia certa para fazer essas excursões... E sendo assim, como a vida de uma gralha não pode ultrapassar onze anos, a cada geração obrigava-me a vir aqui todas as vezes, dia após dia, na solidão. E fazia isso tão logo reaprendia a voar do ninho, dias depois de me livrar da casca do ovo, outra vez. Esta foi minha sina, pelas muitas vidas que já vivi.
Mas eu sei que agora será diferente e não haverá mais retornos nem siclos, quando mais uma vez a morte chegar para mim, porque como eu disse alguns capítulos atrás: “Quem acreditaria hoje na estória da gralha, se contássemos que as pessoas quando morrem sem cumprir algum desígnio da vida, transformam-se nesse animal e recomeçam o ciclo da vida como espectador ou protagonista, até que sua missão seja cumprida e lhe concedam o descanso?”
Então, poucos acreditariam, ainda mais porque as gralhas se tornaram um pássaro tão raro! Mas as lendas existem, mesmo que adormecidas na memória, e chega um dia que não sabemos até que ponto deixam de ser fantasias para se transformarem em realidades...
Ou será que há em tudo isso, uma ajudinha do velho Ananias? Pois ele prometeu que um dia me recompensaria a caridade de visitá-lo sempre... E fez a promessa dois dias antes de morrer.
Mas agora já não importa mais. O importante é que hoje será o meu dia! Finalmente meu ciclo se fecha quando terminar de contar essa história a você (e conto-a justamente porque não estarei mais aqui).
O ciclo se fecha quando eu e meu par – que já não possui aqueles belos cabelos dourados, mas que adquiriu agora uma linda plumagem azul e branca – finalmente voarmos juntos pela última vez até o pico daquela alta montanha – que existe lá pelas bandas das terras de Irene – onde há ruínas de pedras brutas, e onde uma enorme figueira nos aguarda com um ninho encravado nas reentrâncias de sua casca nodosa. E nas frestas da madeira já bem próximo do ninho, como é de costume das gralhas, estão ocultos objetos de metal brilhante: há no interior das frestas, brilhando quando o Sol é meio-dia, um belo par de alianças que nunca foi usado, com duas iniciais gravadas no lado de dentro de cada uma delas: “M e C”. São de ouro verdadeiro, porém muito finas, adquiridas conforme as possibilidades de seu antigo dono, há muitas décadas passadas.

É naquele ninho, onde diante de tão esplêndida paisagem que pode ser vista daquele mirante natural, que cumpriremos nosso papel na vida, aquele que juntos planejamos numa outra época, cujos corações não esqueceram por uma vida inteira:
Iremos, por fim, nos acasalar!

Diga-me: formamos um belo casal, não é verdade?