Capítulo 30: "Catatonia"

Há três dias estivera a edícula fechada. Não se tinha notícias de Maurício na cidade, e Divino começou a se preocupar.
Seu contato com Heitor fora muito breve e no dia seguinte viu aquele casal partir à tarde, saindo da Chácara com destino a Imperador, de onde partiram na Estação de Trens. Um carroção os levou.
O que teria acontecido? A última notícia que sabia de Maurício, é que estivera um final de tarde diante da chácara para terminar sua pintura. Mesmo assim, não se encontraram naquele dia, pois Divino saiu do serviço duas horas antes do rapaz chegar ali. Seus patrões disseram-lhe ter visto a moça e o rapaz conversando por um tempo sob a sombra das árvores, no mesmo lugar que Maurício ficava quando pintou sua aquarela nos dias anteriores. E depois disso Maurício partiu, já quando tinha anoitecido, enquanto a moça entrava para dentro do casarão carregando algo em suas mãos, na mesma hora que Heitor chegava da cidade. Não falara com ninguém, mas trancou-se no quarto. Mesmo com as insistentes chamadas de Heitor, a moça não respondeu e nem abriu a porta, e precisaram arranjar-lhe outro quarto, onde passasse a noite. No dia seguinte, quando finalmente a porta se abriu, o homem entrou por ela e quando saiu do quarto, simplesmente anunciou o cancelamento da estadia: Partiriam naquela mesma tarde, às pressas, de volta para casa.
Isso era tudo que sabiam.
Mas de Maurício, ninguém tinha notícias.
Maurício, porém, não dormiu a noite toda. Guardou seus pertences dentro da edícula, encerrando dentro do armário seu cavalete com a tinta e os pincéis. Saiu, e perambulou pelas ruas desertas da cidade a noite inteira, sem paz, sem sossego, perturbado.
No dia seguinte, na alvorada, partiu a pé em direção a Imperador, onde prevendo o retorno de Cecília, pretendia vê-la pela última vez. Sem se alimentar desde o dia anterior, postou-se próximo à Estação, num lugar de onde pudesse observar o movimento dos passageiros sem ser notado pelos funcionários que o conheciam.
Já era de tarde quando o carroção se aproximou. Parando na Estação, desembarcou um casal: Eram Heitor e Cecília.
Maurício olhava fixamente para a amada, sem que ela o percebesse. Tinha mudado bastante, era agora uma jovem senhora. Mas seus traços continuavam lindos do mesmo jeito, apenas o olhar era um pouco triste. Maurício pensou: “Está madura. Mas o tempo só lhe fez bem! Ainda que tivesse sentido a ação do tempo e envelhecido, para mim teria a mesma beleza, pois nunca amei Cecília pelo seu aspecto, mas amei-a pela pessoa que é”.
A Locomotiva do outro lado da Estação resfolegava, esperando seus últimos passageiros tomarem assento. Heitor e Cecília embarcaram. Maurício instintivamente agarrou-se firme no gradil da Estação, como se pudesse segurar a Locomotiva ali, por um pouco mais de tempo. Mas as rodas de tração se moveram e o Grande Cavalo Negro de Aço partiu, indiferente à dor de Maurício. De sua janela, Cecília olhava melancolicamente a paisagem que seria deixada para trás. De repente, num último instante, seus olhos encontraram os de Maurício, num último olhar entre os dois. Foram poucos segundos, mas que pareceram uma eternidade. Uma eternidade que falava ao coração dos dois tudo aquilo que ainda sentiam um pelo outro. A Locomotiva ganhou velocidade e Maurício foi diminuindo na distância, enquanto a Locomotiva avançava nos trilhos rumo à próxima cidade. Cecília se foi.


Divino resolveu forçar a porta da edícula, que com algum esforço se abriu. Esperando o olhar se acostumar com a penumbra, viu Maurício sentado à cabeceira da cama, imóvel com o olhar vazio e distante. Estivera ali desde que voltara de Imperador a pé, sem comer nem beber, sem falar com ninguém, sem se mover. Inerte, não olhou nem respondeu às perguntas de Divino. Maurício enlouquecera.
Jequitibá da Mata tem poucos recursos. Um médico de família que também mantinha a única farmácia da cidade, era o que fazia os prognósticos e ministrava os medicamentos. Divino levou até ele seu amigo-irmão.
Mas o doutor, examinando o caso, nada pode fazer. Recomendou a Divino que levasse o amigo ao Rio de Janeiro. Em certo lugar não tão distante dali havia um Hospital Psiquiátrico onde se deixavam os doentes mentais em tratamento.
Se há uma ciência tão inexata quanto a Medicina, eu desconheço. E se há uma profissão tão imprevisível quanto à do médico, também desconheço... Mas a Psiquiatria – um ramo da Medicina – ultrapassa todas as expectativas em termos de imprecisão! Pelo menos naqueles tempos...
Maurício foi levado para lá. O Hospital Psiquiátrico que era numa construção centenária pertencente ao Estado do Rio, ficava sobre uma montanha e sua vista dominava toda região porque estava num lugar muito alto. Ficava isolado, longe de qualquer cidade e chegava-se até ele por uma estrada estreita, toda cheia de voltas. Os muros que o cercavam eram altos e bem afastados; e no espaço que havia entre os muros e o Hospital, tinha um enorme pátio com árvores e bancos, onde os doentes que podiam sair de suas celas passavam o dia tomando Sol. O Hospital foi construído em três níveis, sendo assim: no térreo funcionava um amplo salão de atendimento público, um ambulatório, uma capela, uma biblioteca com toda sorte de referências médicas, um refeitório e diversos quartos para os funcionários e médicos residentes; no andar do meio ficavam as salas de tratamento – incluindo a sala de choque – e também as celas sem nenhuma mobília, exceto um catre, onde encerravam os pacientes mais violentos que por ali chegavam. E subindo ao terceiro nível, à esquerda ficavam os internos em melhores condições de saúde. E à direita, ficava a ala dos catatônicos, lugar destinado àqueles que não reagiam a nada. Para lá foi levado Maurício.
Trocaram-lhe as roupas por um pijama, e na despedida recebeu um abraço afetuoso de Divino, que não teve sua retribuição dos braços inertes de Maurício, que continuou impassível, imóvel. O homem parecia um vegetal humano. Parece que desde a hora em que viu Cecília, depois de tantos anos afastados, seu espírito saiu-lhe pela janela dos olhos. O mal da loucura, que acompanhou Maurício de perto por todo aqueles anos como uma sombra, rondando-o e esperando apenas uma oportunidade para tomá-lo de assalto, finalmente venceu a resistência pelo cansaço do espírito: A agonia da perda e a não-aceitação daquela situação foram mais fortes do que ele. Viu a amada, agora, ao lado de outro homem. E finalmente, Maurício enlouquecera de vez. Seu olhar mantinha-se vazio e parado, parecia dizer que já não se encontrava mais ali, mas em algum lugar longínquo. Seus braços inertes não reagiam ao abraço, nem sua boca respondia às perguntas que Divino fazia. Com a impossibilidade de comunicação, Divino não teve como saber o que realmente se passou na vida do amigo naqueles últimos dias. Naquela situação, melhor seria a Maurício que ficasse por ali. Um dia, quem sabe se recuperasse, então Divino seria avisado pela diretoria do Hospital e voltaria para buscar o amigo.
Nem sempre os pacientes permanecem no mesmo estado o tempo todo. Há melhoras e há pioras. Naquele lugar, às vezes até Maurício reagia. Eram fases, onde alternava ausência e vigia. Quando havia melhora – e ela nunca se prolongava por mais que dois ou três dias seguidos – Maurício tomava seu banho sozinho e não precisava de ajuda para se alimentar. Apenas não falava nada, permanecendo sempre mudo, como uma pedra. Com pequenos pedaços de carvão ou lápis, mostrava aos agentes do Hospital seu desejo de desenhar. Era então, colocado no pátio externo, onde com pedaços de carvão fazia maravilhosas pinturas nas paredes internas do muro.
Eram pinturas que retratavam a natureza, a maioria das cenas representando pássaros e a paisagem de toda a terra sendo observada de cima.