Há
três dias estivera a edícula fechada. Não se tinha notícias de
Maurício na cidade, e Divino começou a se preocupar.
Seu
contato com Heitor fora muito breve e no dia seguinte viu aquele
casal partir à tarde, saindo da Chácara com destino a Imperador, de
onde partiram na Estação de Trens. Um carroção os levou.
O
que teria acontecido? A última notícia que sabia de Maurício, é
que estivera um final de tarde diante da chácara para terminar sua
pintura. Mesmo assim, não se encontraram naquele dia, pois Divino
saiu do serviço duas horas antes do rapaz chegar ali. Seus patrões
disseram-lhe ter visto a moça e o rapaz conversando por um tempo sob
a sombra das árvores, no mesmo lugar que Maurício ficava quando
pintou sua aquarela nos dias anteriores. E depois disso Maurício
partiu, já quando tinha anoitecido, enquanto a moça entrava para
dentro do casarão carregando algo em suas mãos, na mesma hora que
Heitor chegava da cidade. Não falara com ninguém, mas trancou-se no
quarto. Mesmo com as insistentes chamadas de Heitor, a moça não
respondeu e nem abriu a porta, e precisaram arranjar-lhe outro
quarto, onde passasse a noite. No dia seguinte, quando finalmente a
porta se abriu, o homem entrou por ela e quando saiu do quarto,
simplesmente anunciou o cancelamento da estadia: Partiriam naquela
mesma tarde, às pressas, de volta para casa.
Isso
era tudo que sabiam.
Mas
de Maurício, ninguém tinha notícias.
Maurício,
porém, não dormiu a noite toda. Guardou seus pertences dentro da
edícula, encerrando dentro do
armário seu cavalete com a tinta e
os pincéis.
Saiu, e
perambulou pelas ruas desertas da cidade a noite inteira, sem paz,
sem sossego, perturbado.
No
dia seguinte, na alvorada, partiu a pé em direção a Imperador,
onde prevendo o retorno de Cecília, pretendia vê-la pela última
vez. Sem se alimentar desde o dia anterior, postou-se próximo à
Estação, num lugar de onde pudesse observar o movimento dos
passageiros sem ser notado pelos funcionários que o conheciam.
Já
era de tarde quando o carroção se aproximou. Parando na Estação,
desembarcou um casal: Eram Heitor e Cecília.
Maurício
olhava fixamente para a amada, sem que ela o percebesse. Tinha mudado
bastante, era agora uma jovem senhora. Mas seus traços continuavam
lindos do mesmo jeito, apenas o olhar era um pouco triste. Maurício
pensou: “Está madura. Mas o tempo só lhe fez bem! Ainda que
tivesse sentido a ação do tempo e envelhecido, para mim teria a
mesma beleza, pois nunca amei Cecília pelo seu aspecto, mas amei-a
pela pessoa que é”.
A
Locomotiva do outro lado da Estação resfolegava, esperando seus
últimos passageiros tomarem assento. Heitor e Cecília embarcaram.
Maurício instintivamente agarrou-se firme no gradil da Estação,
como se pudesse segurar a Locomotiva ali, por um pouco mais de tempo.
Mas as rodas de tração se moveram e o Grande Cavalo Negro de Aço
partiu, indiferente à dor de Maurício. De sua janela, Cecília
olhava melancolicamente a paisagem que seria deixada para trás. De
repente, num último instante, seus olhos encontraram os de Maurício,
num último olhar entre os dois. Foram poucos segundos, mas que
pareceram uma eternidade. Uma eternidade que falava ao coração dos
dois tudo aquilo que ainda sentiam um pelo outro. A Locomotiva ganhou
velocidade e Maurício foi diminuindo na distância, enquanto a
Locomotiva avançava nos trilhos rumo à próxima cidade. Cecília se
foi.
Divino
resolveu forçar a porta da edícula, que com algum esforço se
abriu. Esperando o olhar se acostumar com a penumbra, viu Maurício
sentado à cabeceira da cama, imóvel com o olhar vazio e distante.
Estivera ali desde que voltara de Imperador a pé, sem comer nem
beber, sem falar com ninguém, sem se mover. Inerte, não olhou nem
respondeu às perguntas de Divino. Maurício enlouquecera.
Jequitibá
da Mata tem poucos recursos. Um médico de família que também
mantinha a única farmácia da cidade, era o que fazia os
prognósticos e ministrava os medicamentos. Divino levou até ele seu
amigo-irmão.
Mas
o doutor, examinando o caso, nada pode fazer. Recomendou a Divino que
levasse o amigo ao Rio de Janeiro. Em certo lugar não tão distante
dali havia um Hospital Psiquiátrico onde se deixavam os doentes
mentais em tratamento.
Se
há uma ciência tão inexata quanto a Medicina, eu desconheço. E se
há uma profissão tão imprevisível quanto à do médico, também
desconheço... Mas a Psiquiatria – um ramo da Medicina –
ultrapassa todas as expectativas em termos de imprecisão! Pelo menos
naqueles tempos...
Maurício
foi levado para lá. O Hospital Psiquiátrico que era numa construção
centenária pertencente ao Estado do Rio, ficava sobre uma montanha e
sua vista dominava toda região porque estava num lugar muito alto.
Ficava isolado, longe de qualquer cidade e chegava-se até ele por
uma estrada estreita, toda cheia de voltas. Os muros que o cercavam
eram altos e bem afastados; e no espaço que havia entre os muros e o
Hospital, tinha um enorme pátio com árvores e bancos, onde os
doentes que podiam sair de suas celas passavam o dia tomando Sol. O
Hospital foi construído em três níveis, sendo assim: no térreo
funcionava um amplo salão de atendimento público, um ambulatório,
uma capela, uma biblioteca com toda sorte de referências médicas,
um refeitório e diversos quartos para os funcionários e médicos
residentes; no andar do meio ficavam as salas de tratamento –
incluindo a sala de choque – e também as celas sem nenhuma
mobília, exceto um catre, onde encerravam os pacientes mais
violentos que por ali chegavam. E subindo ao terceiro nível, à
esquerda ficavam os internos em melhores condições de saúde. E à
direita, ficava a ala dos catatônicos, lugar destinado àqueles que
não reagiam a nada. Para lá foi levado Maurício.
Trocaram-lhe as roupas por um
pijama, e na despedida recebeu um abraço afetuoso de Divino, que não
teve sua retribuição dos braços inertes de Maurício, que
continuou impassível, imóvel. O homem parecia um vegetal humano.
Parece que desde a hora em que viu Cecília, depois de tantos anos
afastados, seu espírito saiu-lhe pela janela dos olhos. O mal da
loucura, que acompanhou Maurício de perto por todo aqueles anos como
uma sombra, rondando-o e esperando apenas uma oportunidade para
tomá-lo de assalto, finalmente venceu a resistência pelo cansaço
do espírito: A agonia da perda e a não-aceitação daquela situação
foram mais fortes do que ele. Viu a amada, agora, ao lado de outro
homem. E finalmente, Maurício enlouquecera de vez. Seu olhar
mantinha-se vazio e parado, parecia dizer que já não se encontrava
mais ali, mas em algum lugar longínquo. Seus braços inertes não
reagiam ao abraço, nem sua boca respondia às perguntas que Divino
fazia. Com a impossibilidade de comunicação, Divino não teve como
saber o que realmente se passou na vida do amigo naqueles últimos
dias. Naquela situação, melhor seria a Maurício que ficasse por
ali. Um dia, quem sabe se recuperasse, então Divino seria avisado
pela diretoria do Hospital e voltaria para buscar o amigo.
Nem
sempre os pacientes permanecem no mesmo estado o tempo todo. Há
melhoras e há pioras. Naquele lugar, às vezes até Maurício
reagia. Eram fases, onde alternava ausência e vigia. Quando havia
melhora – e ela nunca se prolongava por mais que dois ou três dias
seguidos – Maurício tomava seu banho sozinho e não precisava de
ajuda para se alimentar. Apenas não falava nada, permanecendo sempre
mudo, como uma pedra. Com pequenos pedaços de carvão ou lápis,
mostrava aos agentes do Hospital seu desejo de desenhar. Era então,
colocado no pátio externo, onde com pedaços de carvão fazia
maravilhosas pinturas nas paredes internas do muro.
Eram
pinturas que retratavam a natureza, a maioria das cenas representando
pássaros e a paisagem de toda a terra sendo observada de cima.