Hoje
o céu está nublado. Nuvens pesadas se arrastam pachorrentas pelo
firmamento. O ar cá embaixo está parado, mas no alto do céu o
vento empurra as nuvens e prenuncia a chuva que logo virá.
É mês de Agosto e nem todos “Agostos” são iguais. Se a Missa
da Capelinha fosse hoje, ninguém compareceria, devido ao mau tempo.
Aliás, o céu está assim a semana toda e se fosse naqueles tempos,
certamente o Vigário nem faria o convite para Missa e a Capelinha
permaneceria fechada.
À minha direita, agora vejo a Capela. Ou seja, apenas o seu
esqueleto. As paredes enegreceram e o teto ruiu, restando apenas
parte da armação de madeira. Uma enorme rachadura fendeu-lhe a
parede da frente desde o topo até o vão onde existiu a porta,
ameaçando a estabilidade e o equilíbrio da torre. Não há mais
portas nem janelas. Os vitrais que Getúlio mandou trazer de São
Paulo estouraram em milhões de cacos, quando o fogo a envolveu
completamente.
Engraçado, como são as coisas! Falava-se do Céu e do Paraíso nos
sermões do Padre dentro da Capela, mas este lugar tão sagrado para
alguns, terminou seus dias em línguas de fogo dignas de um terrível
Inferno! Ainda tem o pedestal da cruz do lado de fora, pouco adiante
do que sobrou da Capela, e sobre ele um pequeno toco em pé, de
aproximadamente sessenta centímetros. Mas é tudo o que resta
intacto do Cruzeiro, porque a cruz já caiu há muito tempo. E dentro
da Capela lhe nasceu arbustos pequenos que rebentaram o chão com as
raízes. E há um pé de goiaba também, que hoje ultrapassa a altura
das paredes, onde um bando de maritacas às vezes pousa e faz
algazarras. Um pouco de vida ao menos, naquilo que já morreu!
E pensar quantas vezes os camponeses se acomodaram ali dentro! Bancos
repletos e um corredor no meio que seguia em direção ao altar.
Homens, mulheres, jovens, crianças e as velhas de véu negro sobre a
cabeça... Patrões e agregados... Quantas histórias, quantas
esperanças, quantas promessas, quantos conselhos e quantas ameaças
foram ditas e ouvidas entre as quatro paredes altas, outrora
decoradas com quadros de Santos e cenas religiosas. Quantas juras
feitas lá dentro! Quantos batizados de recém-nascidos e quantas
despedidas em Missas de corpo presente. E até casamentos o Vigário
realizou ali...
Mas tudo passa nesta vida... Ou quase tudo.
Com o passar do tempo, até os dois filhos solteiros de Getúlio se
casaram na Capelinha. A tradição mandava que escolhessem entre as
famílias de fazendeiros nas vizinhanças, e a tradição deveria ser
seguida à risca, pois junto com o casamento vem partilhas e comunhão
de bens, e as terras teriam de permanecer entre as mesmas famílias
pelas próximas gerações.
Eram bons rapazes.
Mas nem todos são iguais. Trabalhadores, é verdade, mas nem todos
possuíam o mesmo gênio, o mesmo caráter. E vez por outra, Narciso,
o filho mais velho de Getúlio, se indispunha com algum agregado e
até mesmo com seus próprios irmãos.
E com Alécio – o agregado paulista – não foi diferente. Já
desde o começo, Narciso dizia ao seu pai que não fora correto ceder
a casa “pra esse pessoal de fora”, havendo tanta gente nas
redondezas, pessoas experimentadas no trabalho braçal da roça,
famílias cujos membros – pais e filhos – de compleição
robusta, seriam mais úteis à Fazenda. Esse Alécio só tinha filhos
magrelas, e sem vocação para o serviço da roça. O menino que
estuda com Leandro, por exemplo, (referindo-se a Maurício) não
daria conta sequer de laçar um burro no pasto, capar um porco, nem
mesmo ordenhar as vacas no curral...
Getúlio retrucava, dizendo que nem tudo era força bruta. Precisavam
também de pessoas que fizessem contas, que soubessem ler e
compreender um documento, que pudessem consertar o telhado e reformar
a tulha, e tantas outras coisas que eles não tinham tempo de fazer
ou de aprender, e que além de tudo, Alécio e sua família eram
pessoas “de fora” mas eram pessoas honestas, bem diferentes de
uns e de outros que mesmo sendo dali, lhe roubaram milho, café,
arroz e gado na primeira oportunidade que tiveram.
Mas Narciso não se convencia. Nunca aceitou. Retrucava que para
isso, já bastava o Cássio, que viera de Curuajubá.
Na verdade, Getúlio sabia que Narciso estava com a razão, se fosse
olhar pelo lado prático. Mas desde que Alécio veio lhe pedir
serviço, o velho senhor das terras concedeu emprego à família
porque se compadecera deles. Narciso não entendia. E por causa de
uma vaca que seu pai cedeu à família de Alécio, começou a
implicância mordaz e amarga de Narciso contra Alécio, o agregado
que viera de São Paulo na esperança de dar aos filhos uma vida mais
sossegada, tranquila e menos atribulada do que aquela vida que a
cidade grande oferece às pessoas pobres.
Ah! Soubesse Alécio como seriam as coisas, e talvez não tivesse
aceitado o convite de vir morar na Fazenda. Mas como sempre dizia
Amélia, em suas conversas com Cecília: “não sabemos o que há de
vir em nossas vidas no futuro e nem conhecemos nossos destinos”. As
coisas poderiam ter sido melhores, mas também poderiam ter sido
piores. Quem vai saber? Porém, as coisas são como elas são. E
simplesmente as vivemos, querendo ou não. E a vida vai correndo o
seu curso, ela não faz atalhos nem volta algum ponto para desfazer
um malfeito e recomeçar o que já fez. Algumas vezes o tempo apaga
suas marcas, outras vezes verte em consequências vindouras, e ainda
outras vezes se transforma em lembranças... E o punho poderoso do
tempo vai escrevendo suas histórias, das quais o homem é somente um
personagem coadjuvante e sem muita importância.