Saindo
do Arraial em direção à Fazenda Águas Frias, já no comecinho da
estrada está o Cemitério. E após a primeira curva, avista-se o
portão da Escola Rural; seguindo mais uma centena de metros, ao lado
esquerdo da estrada existe uma trilha estreita e escura, meio oculta
entre árvores frondosas e que leva até o casebre de Ananias.
Ananias era um velho mestiço
de pele morena,
descendente de escravos africanos
e senhores brancos.
Velho demais, Ananias desconhecia a própria idade, embora
a rugosidade da pele
indicasse
passar há muito dos
noventa anos. Acometido
pela hanseníase que naquela época se alastrava facilmente pelos
sertões mineiros, o ancião vivia isolado do mundo em seu pequeno
rancho: um casebre de adobe, coberto de sapé.
Muito bem cuidada, a residência mostrava o capricho do dono, que
apesar das dificuldades e limitações impostas pela doença, ainda
dava conta de arrumar os feixes de sapé no telhado e consertar as
portas e janelas. Vivia só, na companhia de um burrinho manso com
idade aproximada de cinquenta anos, e que ele afirmava ter criado
desde filhote. O burrinho chamava-se “Aristide”. Não me pergunte
o por quê, mas acredito que lhe foi dado nome de gente porque o
burrinho estava mais próximo de Ananias do que os próprios
humanos...
As crianças do Arraial tinham medo do Ananias, que embora sempre
andasse maltrapilho e com faixas de pano enroladas nas mãos, nos
braços e nas pernas cobrindo-lhe as chagas, não fazia mal a
ninguém. Parece até que o velho compreendia que o seu aspecto
inspirava terror nas crianças, que aconselhados pelos pais, jamais
se aproximavam dele, com medo de “pegar a doença”. Por isso,
pouquíssimas vezes saía do casebre à luz do dia para ir ao
Arraial. E quando fazia isso, era hostilizado pelas crianças, que de
longe apontavam o dedo para ele, xingando-o de “velho morfético”,
enquanto os pais ralhavam com os pequenos, pondo-os para dentro de
casa e fechando a porta.
Pobre Ananias! Ainda que o Vigário lhe oferecesse ajuda, propondo
tirá-lo de lá, levando-o à Vila Vicentina – um asilo
recém-instalado em Acemira, o qual chamavam de “Conferência” –
o velho caboclo se recusava a abandonar seu ranchinho. Em Acemira, no
asilo, haveria para ele um pequeno quarto e cozinha, duas pequenas
peças isoladas e afastadas do restante da construção, onde Ananias
poderia passar o final da vida sob a proteção da Paróquia. Mas
Ananias não quis. Talvez receasse pelo destino dado ao burrinho,
assim que fosse embora para Acemira!
Para sobreviver, além da esmola que as pessoas deixavam ao lado de
fora das casas toda vez que aparecia no Arraial, Ananias também
vendia as frutas de um pomar que cultivava no fundo do quintal –
principalmente o abacaxi, que com muita dificuldade ele transportava
em sacos durante a noite até o alpendre da Escola Rural.
Quando isso acontecia, no dia seguinte um dos alunos (que vinha para
a Escola de charrete), transportava a carga até a margem do lago,
deixando-a ao pé do barranco junto do batelão; que depois as
professoras se encarregavam de trazer até Acemira, onde piedosamente
se responsabilizavam pela venda, trazendo-lhe o dinheiro na próxima
aula, e que era deixado no mesmo lugar, no alpendre.
No Arraial, o velho Ananias sempre fazia as compras ao cair da noite,
quando todos já se recolhiam, ficando assim, quase sem nenhum
contato com os humanos – exceto com o dono do armazém e mais duas
pessoas:
O Vigário, que na sua fé, sem temer a enfermidade de Ananias, ia no
casebre visitá-lo de vez em quando para tomar sua confissão;
E Maurício, que sem noção do perigo que a enfermidade de Ananias
representava, sempre o visitava, para ouvir suas histórias.
Maurício que sempre foi curioso, desceu certa vez pela trilha que
vai até a casa do Ananias – só para ver o que havia por lá. Era
ainda criança quando conheceu o velho Ananias. Naquele dia voltava
do Arraial, onde sua mãe pedira-lhe que comprasse alguma coisa.
A casa estava fechada, e parecia não ter ninguém, porém
“Aristide”, percebendo a presença do menino, zurrou lá no
quintal, nos fundos da casa. Apoiando-se na bengala, Ananias logo
surgiu, pois estava limpando as covas de abacaxi, que plantava perto
do pomar...
Apesar da advertência do velho, que de longe lhe acenou mostrando as
mãos deformadas e roídas pela lepra, Maurício se aproximou do
lugar.
Após se identificarem, conversaram por quase uma hora, com o velho
contando-lhe parte de sua história, a cada pergunta curiosa do
menino. E assim, nasceu a partir dali uma grande amizade entre os
dois extremos da vida humana: Entre o início de uma vida e o final
de outra...
Maurício visitava Ananias com frequência. Ajudado por Adriana, o
menino tirava da cozinha de sua mãe doces e biscoitos, colocando-os
num embornal, para levá-los depois à casa do velhinho. Sua mãe
nunca soube disso, é claro. Nas ausências do menino, pensava que
ele estava brincando nos campos ou sentado debaixo de alguma árvore
escrevendo textos, como era seu costume.
Ananias que sentia por Maurício o amor de um avô pelo neto que
nunca teve, certa vez presenteou o menino com um bodoque
(estilingue), fazendo-o prometer que jamais faria uso do brinquedo
atirando nos passarinhos, mas que o usaria apenas para derrubar as
frutas mais altas do pomar. Embevecido com o “neto de criação”,
contava-lhe as histórias, lendas e crendices daquele lugar,
ilustrando-as ricamente com a imitação da voz dos personagens.
Maurício, que o ajudava na manutenção do pomar e da plantação de
abacaxis, ouvia fascinado as histórias que o velho contava. Ananias
era analfabeto, mas sabia contar histórias como ninguém! Não só
as lendas Ananias contava, mas até mesmo algumas histórias bíblicas
ele conhecia. E a sua predileta era a história de Lázaro – o
leproso...
Maurício prestando a máxima atenção, ao voltar para casa copiava
todas histórias do velho em folhas de papel para não esquecer nunca
mais. Na verdade, eram os textos que sua mãe viu o menino escrever
sentado debaixo das árvores do quintal.
E se hoje todos esqueceram o velho hábito de contar e ouvir estórias
– pelo menos naqueles tempos o melhor exercício para a imaginação
era a propagação das lendas e do folclore. A observação da
Natureza despertava a imaginação, criando personagens e belíssimas
estórias que eram passadas de uma geração à outra... E Ananias,
mesmo analfabeto, sabia contar todas elas: Falava do Saci-pererê, do
Curupira, da Yara mãe-d’agua, do Caipora, do Negrinho do
Pastoreio, Sereia e tantos mais...
Algumas dessas lendas foram trazidas pelo povo africano, dentro dos
navios negreiros. Outras nasceram aqui mesmo, na boca do povo
indígena ao redor das fogueiras acesas no meio do terreiro, que à
noite mantinham as feras longe da tribo. E outras, vieram com os
colonizadores europeus. Como as lendas têm uma forte ligação com a
natureza, qualquer característica interessante dos animais já era
um motivo que fizesse nascer uma estória, e que dentro de algum
tempo se tornava uma lenda, da qual ninguém mais pode afirmar se
realmente aconteceu, se tudo que se diz é verdade ou apenas
fantasia.
Assim foram criadas as estórias que falam de lobos, do boto
cor-de-rosa, da coruja, do pássaro uirapuru, etc. E inclusive da
gralha, que é um pássaro da família dos corvos. E por falar em
gralhas, você por acaso conhece este pássaro? Ananias contava uma
história interessante sobre eles. Esse pássaro, que já existiu
desde a Zona da Mata na Região Sudeste do Brasil, até os planaltos
do Paraná na região das Araucárias, é pouco visto agora, por
aqui. Antes era abundante, mas a civilização foi extinguindo pouco
a pouco seu habitat. E a gralha – mas não só ela, como outros
pássaros e outros animais também – quando não se extinguiram
junto com seu habitat, se viram então obrigados a migrarem para
regiões distantes. É uma pena que se foram, porque com eles também
se vão as estórias que o povo conta...
Por
exemplo, a lenda do Boto Cor-de-Rosa: Divulgada na bacia do Rio
Amazonas – onde está o habitat do boto – conta a saga desse
animal, que em noites de festa sai do rio disfarçado de gente, e
misturando-se no meio do povo seduz as meninas desacompanhadas,
engravidando-as depois. Era uma forma de explicar a origem da
gravidez fora do casamento... Na Região Sudeste não se conta a
lenda, pois aqui ninguém conhece o Boto. Portanto, aqui, qualquer
gravidez antecipada será mesmo o fruto de uma aventura entre duas
pessoas, dois seres humanos!
Por
aqui ainda resistem as estórias sobre a Coruja: Dizem que à noite
quando ela pia tristemente e faz aquele barulho característico com
as asas, o pássaro está anunciando a morte de alguém. O barulho
imita o som de uma pessoa rasgando um véu de mortalha – aquele
pano com que se cobre os corpos dentro do caixão. As corujas ainda
são vistas por aqui em grande quantidade, e à noite encontramo-las
pousadas sobre os cupins e mourões de cerca. E são pássaros
temidos e respeitados até por pessoas adultas, ao menos pelos mais
supersticiosos!
E
afinal, porque as pessoas creem em algumas lendas, mas desprezam
outras? Qual a diferença entre elas? A diferença é que conhecemos
a coruja, mas nunca vimos o boto!... O fato é que, conhecendo-se o
personagem da lenda, a estória em torno dele resiste por mais tempo
também.
Ainda
há outros casos, como a estória da revoada dos pássaros
(geralmente os quem-quem) quando, sem nenhum motivo aparente, alçam
voo com grande alarido – o bando inteiro – sumindo depois na
distância, por detrás das montanhas... Quando isso acontece, diz-se
por aí que a alma de alguém exalou um último suspiro e se foi,
atravessando em desabalada carreira os campos cheios de animais e
assustando o bando de pássaros. Outros dizem que o alarido é
provocado pelos pássaros que levam em suas asas a alma pesada de
alguém, que de peso, não conseguiu subir por si só.
Mas
quem acreditaria hoje na estória da gralha, se contássemos que as
pessoas quando morrem sem cumprir algum desígnio da vida – e sendo
este desígnio algo muito importante à pessoa – elas estão
condenadas a se transformarem nesse pássaro e recomeçar o ciclo da
vida como espectador ou protagonista de alguma história (agora num
corpo de gralha) até que seu objetivo seja alcançado, e então lhe
concedam o descanso final? Com a raridade do pássaro já quase
extinto nessa região, ninguém sequer lembra da pobre gralha, e
muito menos vai se lembrar de suas lendas também! E olha que
antigamente esse pássaro lindo, com plumagem de um azul-escuro
brilhante e peito totalmente branco, já foi até criado como “bicho
de estimação”! De uma inteligência extremamente aguda, e
curiosíssima por natureza, a gralha tinha o estranho hábito de
esconder pequenos objetos em frestas de madeira, buracos no chão ou
entre as pedras – objetos como os anéis, pulseiras, botões e
qualquer objeto pequeno de metal brilhante que lhe chamasse atenção.
Porém hoje, é raro de se ver uma gralha por aqui.
Maurício
que já tinha lido na biblioteca da Escola alguns contos e lendas do
nosso folclore, desconfiava que algumas das estórias de Ananias
foram inventadas por ele mesmo. Mas o velho sempre afirmou que não
eram invenções dele, mas eram a sabedoria do povo, repassada de pai
para filhos por muitas gerações. Enfim, foram essas as estórias
contadas por Ananias e absorvidas pela atenção de Maurício...
Ou
não seriam apenas estórias? Pois como eu já disse, com o tempo as
estórias viram lendas, e chega o dia que não se sabe até que ponto
tudo aquilo que se contou é verdade ou fantasia!