Capítulo 7: "Ananias"




Saindo do Arraial em direção à Fazenda Águas Frias, já no comecinho da estrada está o Cemitério. E após a primeira curva, avista-se o portão da Escola Rural; seguindo mais uma centena de metros, ao lado esquerdo da estrada existe uma trilha estreita e escura, meio oculta entre árvores frondosas e que leva até o casebre de Ananias.
Ananias era um velho mestiço de pele morena, descendente de escravos africanos e senhores brancos. Velho demais, Ananias desconhecia a própria idade, embora a rugosidade da pele indicasse passar há muito dos noventa anos. Acometido pela hanseníase que naquela época se alastrava facilmente pelos sertões mineiros, o ancião vivia isolado do mundo em seu pequeno rancho: um casebre de adobe, coberto de sapé.
Muito bem cuidada, a residência mostrava o capricho do dono, que apesar das dificuldades e limitações impostas pela doença, ainda dava conta de arrumar os feixes de sapé no telhado e consertar as portas e janelas. Vivia só, na companhia de um burrinho manso com idade aproximada de cinquenta anos, e que ele afirmava ter criado desde filhote. O burrinho chamava-se “Aristide”. Não me pergunte o por quê, mas acredito que lhe foi dado nome de gente porque o burrinho estava mais próximo de Ananias do que os próprios humanos...
As crianças do Arraial tinham medo do Ananias, que embora sempre andasse maltrapilho e com faixas de pano enroladas nas mãos, nos braços e nas pernas cobrindo-lhe as chagas, não fazia mal a ninguém. Parece até que o velho compreendia que o seu aspecto inspirava terror nas crianças, que aconselhados pelos pais, jamais se aproximavam dele, com medo de “pegar a doença”. Por isso, pouquíssimas vezes saía do casebre à luz do dia para ir ao Arraial. E quando fazia isso, era hostilizado pelas crianças, que de longe apontavam o dedo para ele, xingando-o de “velho morfético”, enquanto os pais ralhavam com os pequenos, pondo-os para dentro de casa e fechando a porta.
Pobre Ananias! Ainda que o Vigário lhe oferecesse ajuda, propondo tirá-lo de lá, levando-o à Vila Vicentina – um asilo recém-instalado em Acemira, o qual chamavam de “Conferência” – o velho caboclo se recusava a abandonar seu ranchinho. Em Acemira, no asilo, haveria para ele um pequeno quarto e cozinha, duas pequenas peças isoladas e afastadas do restante da construção, onde Ananias poderia passar o final da vida sob a proteção da Paróquia. Mas Ananias não quis. Talvez receasse pelo destino dado ao burrinho, assim que fosse embora para Acemira!
Para sobreviver, além da esmola que as pessoas deixavam ao lado de fora das casas toda vez que aparecia no Arraial, Ananias também vendia as frutas de um pomar que cultivava no fundo do quintal – principalmente o abacaxi, que com muita dificuldade ele transportava em sacos durante a noite até o alpendre da Escola Rural.
Quando isso acontecia, no dia seguinte um dos alunos (que vinha para a Escola de charrete), transportava a carga até a margem do lago, deixando-a ao pé do barranco junto do batelão; que depois as professoras se encarregavam de trazer até Acemira, onde piedosamente se responsabilizavam pela venda, trazendo-lhe o dinheiro na próxima aula, e que era deixado no mesmo lugar, no alpendre.
No Arraial, o velho Ananias sempre fazia as compras ao cair da noite, quando todos já se recolhiam, ficando assim, quase sem nenhum contato com os humanos – exceto com o dono do armazém e mais duas pessoas:
O Vigário, que na sua fé, sem temer a enfermidade de Ananias, ia no casebre visitá-lo de vez em quando para tomar sua confissão;
E Maurício, que sem noção do perigo que a enfermidade de Ananias representava, sempre o visitava, para ouvir suas histórias.
Maurício que sempre foi curioso, desceu certa vez pela trilha que vai até a casa do Ananias – só para ver o que havia por lá. Era ainda criança quando conheceu o velho Ananias. Naquele dia voltava do Arraial, onde sua mãe pedira-lhe que comprasse alguma coisa.
A casa estava fechada, e parecia não ter ninguém, porém “Aristide”, percebendo a presença do menino, zurrou lá no quintal, nos fundos da casa. Apoiando-se na bengala, Ananias logo surgiu, pois estava limpando as covas de abacaxi, que plantava perto do pomar...
Apesar da advertência do velho, que de longe lhe acenou mostrando as mãos deformadas e roídas pela lepra, Maurício se aproximou do lugar.
Após se identificarem, conversaram por quase uma hora, com o velho contando-lhe parte de sua história, a cada pergunta curiosa do menino. E assim, nasceu a partir dali uma grande amizade entre os dois extremos da vida humana: Entre o início de uma vida e o final de outra...
Maurício visitava Ananias com frequência. Ajudado por Adriana, o menino tirava da cozinha de sua mãe doces e biscoitos, colocando-os num embornal, para levá-los depois à casa do velhinho. Sua mãe nunca soube disso, é claro. Nas ausências do menino, pensava que ele estava brincando nos campos ou sentado debaixo de alguma árvore escrevendo textos, como era seu costume.
Ananias que sentia por Maurício o amor de um avô pelo neto que nunca teve, certa vez presenteou o menino com um bodoque (estilingue), fazendo-o prometer que jamais faria uso do brinquedo atirando nos passarinhos, mas que o usaria apenas para derrubar as frutas mais altas do pomar. Embevecido com o “neto de criação”, contava-lhe as histórias, lendas e crendices daquele lugar, ilustrando-as ricamente com a imitação da voz dos personagens.
Maurício, que o ajudava na manutenção do pomar e da plantação de abacaxis, ouvia fascinado as histórias que o velho contava. Ananias era analfabeto, mas sabia contar histórias como ninguém! Não só as lendas Ananias contava, mas até mesmo algumas histórias bíblicas ele conhecia. E a sua predileta era a história de Lázaro – o leproso...
Maurício prestando a máxima atenção, ao voltar para casa copiava todas histórias do velho em folhas de papel para não esquecer nunca mais. Na verdade, eram os textos que sua mãe viu o menino escrever sentado debaixo das árvores do quintal.
E se hoje todos esqueceram o velho hábito de contar e ouvir estórias – pelo menos naqueles tempos o melhor exercício para a imaginação era a propagação das lendas e do folclore. A observação da Natureza despertava a imaginação, criando personagens e belíssimas estórias que eram passadas de uma geração à outra... E Ananias, mesmo analfabeto, sabia contar todas elas: Falava do Saci-pererê, do Curupira, da Yara mãe-d’agua, do Caipora, do Negrinho do Pastoreio, Sereia e tantos mais...
Algumas dessas lendas foram trazidas pelo povo africano, dentro dos navios negreiros. Outras nasceram aqui mesmo, na boca do povo indígena ao redor das fogueiras acesas no meio do terreiro, que à noite mantinham as feras longe da tribo. E outras, vieram com os colonizadores europeus. Como as lendas têm uma forte ligação com a natureza, qualquer característica interessante dos animais já era um motivo que fizesse nascer uma estória, e que dentro de algum tempo se tornava uma lenda, da qual ninguém mais pode afirmar se realmente aconteceu, se tudo que se diz é verdade ou apenas fantasia.
Assim foram criadas as estórias que falam de lobos, do boto cor-de-rosa, da coruja, do pássaro uirapuru, etc. E inclusive da gralha, que é um pássaro da família dos corvos. E por falar em gralhas, você por acaso conhece este pássaro? Ananias contava uma história interessante sobre eles. Esse pássaro, que já existiu desde a Zona da Mata na Região Sudeste do Brasil, até os planaltos do Paraná na região das Araucárias, é pouco visto agora, por aqui. Antes era abundante, mas a civilização foi extinguindo pouco a pouco seu habitat. E a gralha – mas não só ela, como outros pássaros e outros animais também – quando não se extinguiram junto com seu habitat, se viram então obrigados a migrarem para regiões distantes. É uma pena que se foram, porque com eles também se vão as estórias que o povo conta...
Por exemplo, a lenda do Boto Cor-de-Rosa: Divulgada na bacia do Rio Amazonas – onde está o habitat do boto – conta a saga desse animal, que em noites de festa sai do rio disfarçado de gente, e misturando-se no meio do povo seduz as meninas desacompanhadas, engravidando-as depois. Era uma forma de explicar a origem da gravidez fora do casamento... Na Região Sudeste não se conta a lenda, pois aqui ninguém conhece o Boto. Portanto, aqui, qualquer gravidez antecipada será mesmo o fruto de uma aventura entre duas pessoas, dois seres humanos!
Por aqui ainda resistem as estórias sobre a Coruja: Dizem que à noite quando ela pia tristemente e faz aquele barulho característico com as asas, o pássaro está anunciando a morte de alguém. O barulho imita o som de uma pessoa rasgando um véu de mortalha – aquele pano com que se cobre os corpos dentro do caixão. As corujas ainda são vistas por aqui em grande quantidade, e à noite encontramo-las pousadas sobre os cupins e mourões de cerca. E são pássaros temidos e respeitados até por pessoas adultas, ao menos pelos mais supersticiosos!
E afinal, porque as pessoas creem em algumas lendas, mas desprezam outras? Qual a diferença entre elas? A diferença é que conhecemos a coruja, mas nunca vimos o boto!... O fato é que, conhecendo-se o personagem da lenda, a estória em torno dele resiste por mais tempo também.
Ainda há outros casos, como a estória da revoada dos pássaros (geralmente os quem-quem) quando, sem nenhum motivo aparente, alçam voo com grande alarido – o bando inteiro – sumindo depois na distância, por detrás das montanhas... Quando isso acontece, diz-se por aí que a alma de alguém exalou um último suspiro e se foi, atravessando em desabalada carreira os campos cheios de animais e assustando o bando de pássaros. Outros dizem que o alarido é provocado pelos pássaros que levam em suas asas a alma pesada de alguém, que de peso, não conseguiu subir por si só.


Mas quem acreditaria hoje na estória da gralha, se contássemos que as pessoas quando morrem sem cumprir algum desígnio da vida – e sendo este desígnio algo muito importante à pessoa – elas estão condenadas a se transformarem nesse pássaro e recomeçar o ciclo da vida como espectador ou protagonista de alguma história (agora num corpo de gralha) até que seu objetivo seja alcançado, e então lhe concedam o descanso final? Com a raridade do pássaro já quase extinto nessa região, ninguém sequer lembra da pobre gralha, e muito menos vai se lembrar de suas lendas também! E olha que antigamente esse pássaro lindo, com plumagem de um azul-escuro brilhante e peito totalmente branco, já foi até criado como “bicho de estimação”! De uma inteligência extremamente aguda, e curiosíssima por natureza, a gralha tinha o estranho hábito de esconder pequenos objetos em frestas de madeira, buracos no chão ou entre as pedras – objetos como os anéis, pulseiras, botões e qualquer objeto pequeno de metal brilhante que lhe chamasse atenção. Porém hoje, é raro de se ver uma gralha por aqui.

Maurício que já tinha lido na biblioteca da Escola alguns contos e lendas do nosso folclore, desconfiava que algumas das estórias de Ananias foram inventadas por ele mesmo. Mas o velho sempre afirmou que não eram invenções dele, mas eram a sabedoria do povo, repassada de pai para filhos por muitas gerações. Enfim, foram essas as estórias contadas por Ananias e absorvidas pela atenção de Maurício...
Ou não seriam apenas estórias? Pois como eu já disse, com o tempo as estórias viram lendas, e chega o dia que não se sabe até que ponto tudo aquilo que se contou é verdade ou fantasia!