Algumas
coisas permanecem inalteradas, mesmo depois de muitas décadas, ainda
que expostas à ação do tempo...
É incrível a visão que se tem das terras da Fazenda Águas Frias a
partir da grande Serra, em cujo topo existe a fundação de uma
construção muito antiga. As pedras enegrecidas são as mesmas, sem
alteração, imutáveis, enormes e bem assentadas. Observam incólumes
e perenes o imenso horizonte que se abre após o final abrupto do
terreno que termina num barranco altíssimo e íngreme, formando aqui
um mirante natural.
Ainda hoje ao olhar daqui do alto, veremos que pouca coisa mudou lá
embaixo. As casinhas dos agregados são pontinhos minúsculos
pintadas de branco, salpicando aqui e ali a imensidão verde dos
vales e montanhas. A Sede se apresenta minúscula, a sudoeste do
grande topo.
Mais além se pode ver o Arraial, com a Torre que comporta dois sinos
de bronze e o muro do Cemitério. As velhíssimas palmeiras que
ladeiam a Igreja e as ruínas de uma Olaria, onde tempos atrás
fizeram os tijolos que ergueram a Igreja. Está abandonado desde
aqueles tempos, pois não conseguiu concorrer com a tradição local,
onde os camponeses continuaram construindo suas casas com tijolos de
adobe. E ainda um pouco mais longe se enxerga o colar líquido,
formado pelo lago prateado que rodeia Acemira. Da cidade pouco se
distingue por causa da distância que há. Mesmo assim a torre da
Igreja é bem visível, contrastando com o fundo azul do céu, que há
por detrás do espigão de terra.
As reentrâncias da terra, nas ondulações do terreno montanhoso em
volta da grande Serra, escondem com sua mata ciliar as margens dos
riachos, que escolheram os pés de serra para escoar suas águas até
os dois grandes rios que alimentam o colar de Acemira. As curvas das
estradas em seu cascalho amarelo parecem rabiscos, riscados contra o
verde do chão.
Daquele tempo para hoje, a diferença eram os campos, as plantações
e as terras aradas, alternando entre si as fatias de terra. Lavouras
bem cultivadas e imensas áreas de pasto para o gado.
Hoje pouco se distingue o que é pasto e o que é lavoura, visto que
tudo ficou abandonado e o mato selvagem toma conta de tudo pouco a
pouco. Das casas mais próximas, dava ainda para ver a partir desse
mirante natural o fumegar da chaminé dos fogões a lenha. Hoje dessa
distância não se vê quase nada da presença humana, exceto um
fumegar aqui e ali, muito longe. Olhando daqui do alto, os pontinhos
brancos das casas não conseguem mostrar quais estão vivas e quais
já foram abandonadas. Há também aqui, neste mirante, uma enorme
figueira, centenária talvez, que cresce ao lado dessa enorme base de
pedras brutas. Esta figueira é o refúgio de muitos pássaros, que
vêm aqui para fazer o seu ninho, aumentar a prole e buscar refúgio
contra os temporais. Sustenta em seus enormes galhos os diversos
tipos de ninhos: desde o ninho do João-de-barro, até os ninhos de
Guacho, que são compridos e pendurados, feitos de pequenos gravetos.
Sabiá também faz seus ninhos por ali, e entre as cascas da árvore,
nas reentrâncias da madeira, a coruja e outros tipos de pássaros se
aninham.
Mas voltemos à história: O dia amanhecera claro e bonito, e o Sol
aquecia o lugar. Levantaram-se todos muito cedo, e Leandro quisera
levá-los logo à Sede, antiga morada do avô.
Leandro cavalgava na dianteira, tendo ao seu lado Adriana que não
parava de falar. Ela conversara bastante durante a noite com Cecília,
quando se retiraram para o mesmo quarto de dormir, onde Irene
preparou duas camas às amigas. E nas conversas, percebeu algum
suspense no ar, quando às vezes se referiam a Maurício. Adriana era
muito esperta e percebia logo as coisas. E estava cada vez mais certa
de que em breve as famílias poderiam se unir em algum casamento...
Não o seu, claro, pois não alimentava por Leandro nenhum sentimento
especial, além da amizade sincera. E sabia que o rapaz também não
nutria nenhum sentimento por ela. Mas se houvesse algum casamento,
seria o casamento de Cecília e Maurício, talvez. E Adriana
pressentiu que isso era algo que estava próximo de acontecer.
Cecília e Maurício seguiam logo atrás, com a moça dando sinais de
entusiasmo e contentamento por estarem ali. E Maurício... hum! O
rapaz estava muito feliz!
Chegaram por fim à Sede, e enquanto Leandro procurava os documentos
necessários, Cecília e Adriana abriam as janelas da casa, para
deixar o Sol entrar. Maurício limitou-se a observar o grande
terreirão, explorando as dependências que existiam em volta da
construção, como o paiol, a tulha e o grande curral.
Cecília foi ao seu encontro, perguntando-lhe se já tinha visto o
moinho e o monjolo. O avô tinha feito um pequeno açude, e era dali
que se represava o riacho, que descia para alimentar o carneiro (ou
bomba d'água), o moinho e o monjolo...
Voltando do açude, Maurício parou perto do poço que havia próximo
à cozinha e tirou do bolso uma moeda. Cecília curiosa prestava
atenção.
Com ar solene, porém brincalhão, Maurício falou:
__Cecília, vou jogar aqui esta moeda. Feche os olhos e escute o som.
A moeda vai cair e você deve fazer um pedido, pensar num desejo
antes da moeda tocar as águas. Se conseguir imaginar um desejo antes
de escutar o som da moeda mergulhando n'água, o teu pedido poderá
ser atendido!
Aproximou-se da boca do poço e de olhos fechados abriu a mão,
deixando cair dentro a moeda. Cecília sorriu e disse:
__Consegui pensar num desejo antes da moeda tocar na água!
__Ótimo! – respondeu Maurício – agora é só aguardar o tempo
certo, e tudo se há de cumprir.
Começaram a subir novamente o terreno, em direção à porteira,
felizes, enquanto Cecília contava os planos da família em reformar
e reativar a Sede. Pensavam em trazer outra vez a vida e a alegria
para aquele lugar.
De repente, Cecília perguntou a Maurício porque no dia da Missa na
Capela o moço tinha desaparecido...
Maurício esperava que esse episódio fosse esquecido, mas Cecília
resolveu descobrir o que havia acontecido, pois esperara poder vê-lo
durante o dia todo, queria lhe contar que tinha decorado a redação
e conseguia recitá-la em todos os detalhes, com todos os pontos e
vírgulas... Mas o moço tinha simplesmente desaparecido da festa!
Maurício ficou embaraçado e sem saber o que responder, num deslize
acabou confessando aquilo que seu coração temia revelar:
Disse à moça que sabia da visita de Heitor na casa de Irene, e que
sabia que tinha ido lá lhe pedir a mão em casamento...
A moça soltou uma gargalhada e falou:
__Mas você sabe que não aceitei, não é? E porque esse episódio
foi motivo para você desaparecer? – provocou Cecília.
Maurício já não sabia mais o que dizer, limitou-se a encolher os
ombros, rubro de vergonha e olhou para o chão.
Então avançando os últimos passos em silêncio, chegaram os dois
ao pé do cactus. Cecília apontou-lhe a cicatriz na casca do vegetal
e disse:
__Poucos dias antes da festa, eu subi até este lugar e desenhei duas
letras ali. Hoje noto que em volta delas tem um coração desenhado.
É um mistério para mim, porque eu só desenhei as iniciais! Quem
poderia ter feito isso?
Maurício respondeu de forma oblíqua:
__E qual foi o motivo de você escrever tais letras? O que significam
para você “M e C”?
__Significam “Maurício e Cecília” – respondeu firme a moça,
olhando-o nos olhos e lendo dentro deles a tempestade emocional que
se formara no rapaz.
Maurício encorajou-se e revelou:
__Pois no dia da festa, eu notei as iniciais gravadas no cactus
quando subi sozinho até a porteira... E resolvi circular com o
desenho de um coração. O desenho, portanto, fui eu mesmo quem fez.
Acabou-se o mistério.
Seguiu-se um longo silêncio entre os dois, onde até o caminhar das
formigas poderia ser ouvido – ou até as batidas do coração, que
naquele momento não batia – galopava!...
Mas alguém precisava quebrar tal silêncio, e foi Cecília quem o
fez:
__E porque fez o desenho, Maurício? – Cecília já tinha certeza,
mas queria ouvir a resposta.
__Porque... porque eu te amo! – respondeu o jovem.
Foi uma curta resposta, mas com efeitos significativos...
A palavra “te amo” tem que ser venerada. É uma palavra que
deveria ser sagrada em todos os tempos, por todas as gerações, e
não banalizada como é agora! Hoje se ouve um “eu te amo” falado
de qualquer jeito: Os casais se declaram a todo instante, e amanhã
não se lembram mais um do outro; e a vida segue adiante, trazendo
sempre um novo alguém, a quem as pessoas dirão outra vez: “eu te
amo”...
Mas o “eu te amo” de Maurício foi de fato verdadeiro, pois foram
palavras arrancadas do lugar mais íntimo do seu coração, e Cecília
soube disso desde o primeiro momento.
__E você, porque desenhou nossas iniciais aqui? – foi a vez de
Maurício perguntar, sentindo as artérias no pescoço latejando, com
o bombear forte do coração, na expectativa da resposta.
__Desenhei-as porque foi justamente aqui que nos encontramos pela
primeira vez. Nunca mais esqueci daquele dia e sempre desejei que
nossos encontros continuassem, mas você foi embora para Acemira...
Maurício, acho que eu te amo desde aquele dia!
Maurício se aproximou de Cecília, envolvendo-a num abraço gostoso
e desejado. E então, deu-lhe o primeiro beijo.