Capítulo 17: "A confissão"




Algumas coisas permanecem inalteradas, mesmo depois de muitas décadas, ainda que expostas à ação do tempo...
É incrível a visão que se tem das terras da Fazenda Águas Frias a partir da grande Serra, em cujo topo existe a fundação de uma construção muito antiga. As pedras enegrecidas são as mesmas, sem alteração, imutáveis, enormes e bem assentadas. Observam incólumes e perenes o imenso horizonte que se abre após o final abrupto do terreno que termina num barranco altíssimo e íngreme, formando aqui um mirante natural.
Ainda hoje ao olhar daqui do alto, veremos que pouca coisa mudou lá embaixo. As casinhas dos agregados são pontinhos minúsculos pintadas de branco, salpicando aqui e ali a imensidão verde dos vales e montanhas. A Sede se apresenta minúscula, a sudoeste do grande topo.
Mais além se pode ver o Arraial, com a Torre que comporta dois sinos de bronze e o muro do Cemitério. As velhíssimas palmeiras que ladeiam a Igreja e as ruínas de uma Olaria, onde tempos atrás fizeram os tijolos que ergueram a Igreja. Está abandonado desde aqueles tempos, pois não conseguiu concorrer com a tradição local, onde os camponeses continuaram construindo suas casas com tijolos de adobe. E ainda um pouco mais longe se enxerga o colar líquido, formado pelo lago prateado que rodeia Acemira. Da cidade pouco se distingue por causa da distância que há. Mesmo assim a torre da Igreja é bem visível, contrastando com o fundo azul do céu, que há por detrás do espigão de terra.
As reentrâncias da terra, nas ondulações do terreno montanhoso em volta da grande Serra, escondem com sua mata ciliar as margens dos riachos, que escolheram os pés de serra para escoar suas águas até os dois grandes rios que alimentam o colar de Acemira. As curvas das estradas em seu cascalho amarelo parecem rabiscos, riscados contra o verde do chão.
Daquele tempo para hoje, a diferença eram os campos, as plantações e as terras aradas, alternando entre si as fatias de terra. Lavouras bem cultivadas e imensas áreas de pasto para o gado.
Hoje pouco se distingue o que é pasto e o que é lavoura, visto que tudo ficou abandonado e o mato selvagem toma conta de tudo pouco a pouco. Das casas mais próximas, dava ainda para ver a partir desse mirante natural o fumegar da chaminé dos fogões a lenha. Hoje dessa distância não se vê quase nada da presença humana, exceto um fumegar aqui e ali, muito longe. Olhando daqui do alto, os pontinhos brancos das casas não conseguem mostrar quais estão vivas e quais já foram abandonadas. Há também aqui, neste mirante, uma enorme figueira, centenária talvez, que cresce ao lado dessa enorme base de pedras brutas. Esta figueira é o refúgio de muitos pássaros, que vêm aqui para fazer o seu ninho, aumentar a prole e buscar refúgio contra os temporais. Sustenta em seus enormes galhos os diversos tipos de ninhos: desde o ninho do João-de-barro, até os ninhos de Guacho, que são compridos e pendurados, feitos de pequenos gravetos. Sabiá também faz seus ninhos por ali, e entre as cascas da árvore, nas reentrâncias da madeira, a coruja e outros tipos de pássaros se aninham.


Mas voltemos à história: O dia amanhecera claro e bonito, e o Sol aquecia o lugar. Levantaram-se todos muito cedo, e Leandro quisera levá-los logo à Sede, antiga morada do avô.
Leandro cavalgava na dianteira, tendo ao seu lado Adriana que não parava de falar. Ela conversara bastante durante a noite com Cecília, quando se retiraram para o mesmo quarto de dormir, onde Irene preparou duas camas às amigas. E nas conversas, percebeu algum suspense no ar, quando às vezes se referiam a Maurício. Adriana era muito esperta e percebia logo as coisas. E estava cada vez mais certa de que em breve as famílias poderiam se unir em algum casamento... Não o seu, claro, pois não alimentava por Leandro nenhum sentimento especial, além da amizade sincera. E sabia que o rapaz também não nutria nenhum sentimento por ela. Mas se houvesse algum casamento, seria o casamento de Cecília e Maurício, talvez. E Adriana pressentiu que isso era algo que estava próximo de acontecer.
Cecília e Maurício seguiam logo atrás, com a moça dando sinais de entusiasmo e contentamento por estarem ali. E Maurício... hum! O rapaz estava muito feliz!
Chegaram por fim à Sede, e enquanto Leandro procurava os documentos necessários, Cecília e Adriana abriam as janelas da casa, para deixar o Sol entrar. Maurício limitou-se a observar o grande terreirão, explorando as dependências que existiam em volta da construção, como o paiol, a tulha e o grande curral.
Cecília foi ao seu encontro, perguntando-lhe se já tinha visto o moinho e o monjolo. O avô tinha feito um pequeno açude, e era dali que se represava o riacho, que descia para alimentar o carneiro (ou bomba d'água), o moinho e o monjolo...
Voltando do açude, Maurício parou perto do poço que havia próximo à cozinha e tirou do bolso uma moeda. Cecília curiosa prestava atenção.
Com ar solene, porém brincalhão, Maurício falou:
__Cecília, vou jogar aqui esta moeda. Feche os olhos e escute o som. A moeda vai cair e você deve fazer um pedido, pensar num desejo antes da moeda tocar as águas. Se conseguir imaginar um desejo antes de escutar o som da moeda mergulhando n'água, o teu pedido poderá ser atendido!
Aproximou-se da boca do poço e de olhos fechados abriu a mão, deixando cair dentro a moeda. Cecília sorriu e disse:
__Consegui pensar num desejo antes da moeda tocar na água!
__Ótimo! – respondeu Maurício – agora é só aguardar o tempo certo, e tudo se há de cumprir.
Começaram a subir novamente o terreno, em direção à porteira, felizes, enquanto Cecília contava os planos da família em reformar e reativar a Sede. Pensavam em trazer outra vez a vida e a alegria para aquele lugar.
De repente, Cecília perguntou a Maurício porque no dia da Missa na Capela o moço tinha desaparecido...
Maurício esperava que esse episódio fosse esquecido, mas Cecília resolveu descobrir o que havia acontecido, pois esperara poder vê-lo durante o dia todo, queria lhe contar que tinha decorado a redação e conseguia recitá-la em todos os detalhes, com todos os pontos e vírgulas... Mas o moço tinha simplesmente desaparecido da festa!
Maurício ficou embaraçado e sem saber o que responder, num deslize acabou confessando aquilo que seu coração temia revelar:
Disse à moça que sabia da visita de Heitor na casa de Irene, e que sabia que tinha ido lá lhe pedir a mão em casamento...
A moça soltou uma gargalhada e falou:
__Mas você sabe que não aceitei, não é? E porque esse episódio foi motivo para você desaparecer? – provocou Cecília.
Maurício já não sabia mais o que dizer, limitou-se a encolher os ombros, rubro de vergonha e olhou para o chão.

Então avançando os últimos passos em silêncio, chegaram os dois ao pé do cactus. Cecília apontou-lhe a cicatriz na casca do vegetal e disse:
__Poucos dias antes da festa, eu subi até este lugar e desenhei duas letras ali. Hoje noto que em volta delas tem um coração desenhado. É um mistério para mim, porque eu só desenhei as iniciais! Quem poderia ter feito isso?
Maurício respondeu de forma oblíqua:
__E qual foi o motivo de você escrever tais letras? O que significam para você “M e C”?
__Significam “Maurício e Cecília” – respondeu firme a moça, olhando-o nos olhos e lendo dentro deles a tempestade emocional que se formara no rapaz.
Maurício encorajou-se e revelou:
__Pois no dia da festa, eu notei as iniciais gravadas no cactus quando subi sozinho até a porteira... E resolvi circular com o desenho de um coração. O desenho, portanto, fui eu mesmo quem fez. Acabou-se o mistério.
Seguiu-se um longo silêncio entre os dois, onde até o caminhar das formigas poderia ser ouvido – ou até as batidas do coração, que naquele momento não batia – galopava!...
Mas alguém precisava quebrar tal silêncio, e foi Cecília quem o fez:
__E porque fez o desenho, Maurício? – Cecília já tinha certeza, mas queria ouvir a resposta.
__Porque... porque eu te amo! – respondeu o jovem.
Foi uma curta resposta, mas com efeitos significativos...
A palavra “te amo” tem que ser venerada. É uma palavra que deveria ser sagrada em todos os tempos, por todas as gerações, e não banalizada como é agora! Hoje se ouve um “eu te amo” falado de qualquer jeito: Os casais se declaram a todo instante, e amanhã não se lembram mais um do outro; e a vida segue adiante, trazendo sempre um novo alguém, a quem as pessoas dirão outra vez: “eu te amo”...
Mas o “eu te amo” de Maurício foi de fato verdadeiro, pois foram palavras arrancadas do lugar mais íntimo do seu coração, e Cecília soube disso desde o primeiro momento.
__E você, porque desenhou nossas iniciais aqui? – foi a vez de Maurício perguntar, sentindo as artérias no pescoço latejando, com o bombear forte do coração, na expectativa da resposta.
__Desenhei-as porque foi justamente aqui que nos encontramos pela primeira vez. Nunca mais esqueci daquele dia e sempre desejei que nossos encontros continuassem, mas você foi embora para Acemira... Maurício, acho que eu te amo desde aquele dia!
Maurício se aproximou de Cecília, envolvendo-a num abraço gostoso e desejado. E então, deu-lhe o primeiro beijo.